O futuro já começou?

Transições políticas e afirmação identitária entre os pastores kuvale (herero) do Sudoeste de Angola

Que sentido faz ainda hoje adiantar, em relação a Angola, expressões como “transições liberais” e “novo dado para os grupos sociais”, quando elas são referidas a uma situação em que as políticas nunca deixaram de ser as da guerra e as da disputa do poder pela força? 

“Liberalização” versus sobrevivência

Projectando de imediato esta “liberalização” para o terreno concreto da maioria dos “grupos sociais angolanos”, o seu efeito mais sentido e palpável talvez se tenha manifestado através do agravamento do abastecimento alimentar mínimo. O Estado, pondo de parte a sua política monopolista e a sua vocação providencialista, retirou a protecção que exercia sobre os produtos chamados de primeira necessidade e abandonou ao privado as funções do comércio, com efeitos imediatos sobre os preços e os circuitos. Abdicou das responsabilidades que vinha, deficientemente, claro, assumindo nesse domínio como noutros e cedeu o seu lugar a um capital exterior experiente neste género de situações, ou ao aventureirismo de uma mal apetrechada improvisação empresarial angolana. O mercado paralelo, expressão da criatividade social posta ao serviço da luta pela sobrevivência por parte da população comum, soube garantir a continuidade, é verdade, mas não é de espantar que essa nova perturbação no sistema dos comércios locais tenha dificuldade em encontrar a plataforma de articulações necessária à satisfação das funções visadas. Nos meios urbanos a manifestação mais evidente desta nova face da crise talvez seja a amplitude crescente que assume o abismo entre o custo dos produtos e o poder de compra do consumidor. Em certos meios rurais menos afectados pela guerra que outros para os quais não há recursos fora da assistência institucionalizada, a ruptura continua a manifestar-se, parece-me, sobretudo no que diz respeito aos circuitos de distribuição. E é tanto assim que há hoje em Angola populações a que assiste uma certa prosperidade no domínio do que produzem e que ainda assim benificiam de ajuda alimentar por parte de organismos internacionais sem que, paradoxo primeiro, nada lhes seja pedido em troca, como veremos adiante.

Prosperidade versus assistência

No interior da província do Namibe, que tenho vindo a frequentar no âmbito da pesquisa que levo a cabo sobre os pastores kuvale, casas comerciais isoladas à beira das estradas que servem zonas pouco frequentadas, na imensa extensão daquela plataforma desértica e semidesértica, e que durante o tempo em que o Estado assumia o monopólio, ou quase, do comércio, serviam como entrepostos de armazenamento e troca, encontram-se hoje, na sua maioria, abandonadas. Os poucos comerciantes mandatados para a sua exploração reconverteram-se, na sua maioria e sem hesitação, a uma exclusiva e absorvente actividade urbana, extraordinariamente vitalizada por toda a ordem de operações e de articulações paralelas a que também as importações ligadas ao auxílio internacional têm vindo a dar aso. A intensificação do comércio citadino, constantemente acrescido de consumidores na decorrência da guerra e da inviabilidade rural que cronicamente se acentua desde a independência, bem como a canalização de mercadorias para um interior que é, de justiça, o alvo prioritário para as ajudas humanitárias, mobiliza por inteiro esses agentes (alguns deles transformados em simples transportadores mas pagos em dólares americanos) e faz com que o mercado menos denso ligado às populações do próximo interior se veja menosprezado. Acontece mesmo que comerciantes obrigados a servir estas zonas através de compromissos formais que lhes dão acesso a contingentes de mercadorias para esse efeito, as canalizam, depois de levantadas nas sedes dos municípios, para a capital da província, onde lhes podem extrair maiores rendimentos. A situação é tanto mais aberrante quanto se sabe que certas populações, nomeadamente aquelas que aqui nos irão ocupar, estão em condições de fornecer contrapartida interessante a quem se proponha abastecê-las. Pode entender-se que haja fome onde os currais regurjitam de bois e de cabritos? Fome de quê, havendo carne em abundância e leite? De cereais, bem entendido.

Os Kuvale, a quem me refirirei quase exclusivamente neste artigo, são pastores que fundamentam a sua prática global num sistema produtivo e de representações muito próximo dos modelos entendidos como clássicos em relação às sociedades pastoris que desenvolvem a transumância. Ocupam um espaço territorial que se situa entre a faixa desértica da costa e os contrafortes do planalto interior do Sudoeste de Angola, dos 13˚30’ aos 16˚30’ de latitude Sul, sensivelmente, e constituem, com os “Mundombe” e os Kwando, a norte, os Nguendelengo, a nordeste, os Hakahona e os Ndimba, a sudeste, e os Kwanyioka e os Himba, a sul, as formações sociais de língua e referência herero que hoje, após a partilha colonial e a formação dos Estados de agora, se acham afectas ao território angolano. Os Himba repartem-se dos dois lados do rio Kunene, fronteira entre Angola e a Namíbia. 

Entre os Kuvale, a carne dos bois só é consumida, praticamente, no período que vai de Junho a Agosto e a coberto de operações rituais. Durante o resto do ano o abate de qualquer cabeça de gado, ligado sobretudo àquilo a que chamarei o complexo terapêutico-religioso, revela-se mais esporádico e o consumo da carne fica restringido a essas ocasiões ou à disponibilidade fornecida pela morte natural de algum animal. Quanto aos cabritos, o seu consumo constitui tabu para um grande número de famílias e o cabrito é sobretudo considerado um capital em permanente reserva para intervir oportunamente em eventuais operações de troca. São razões culturais, bem entendido, mas que constituem aqui, em grande medida, imperativos da prática social. Quando de Outubro a Fevereiro, por usura das pastagens, o leite escasseia e acaba por ver-se restringido ao consumo das crias e das crianças, a generalidade das populações kuvale com que tenho trabalhado passa mal. Seria a altura de fazer intervir no regime alimentar maiores quantidades de cereal. Ora se as chuvas dos últimos anos têm sido suficientes para manter e reproduzir o gado, segundo as técnicas de um pastoreio sábio, o mesmo não tem acontecido em relação à produção de milho ou mesmo de massango (Pennisetum echinurus), cereais cultivados nas placas aluviais dos rios que definem os pontos de convergência do povoamento típico da zona. Seria a altura, então, de aguardar a intervenção de um comércio que nem sempre se manifesta.

Pode aparecer ainda algum funcionário mais ou menos arrojado, desesperado ou aventureiro, que desvia mercadorias à sua guarda e vem procurar escoá-las aqui. Mas ele vai exigir uma contrapartida em dinheiro e aqui não há dinheiro, “o nosso dinheiro são os bois e o troco são os cabritos”. Recolher bois e cabritos implicar-lhe-ia montar um dispositivo de encaminhamento dos animais para os centros urbanos de abate ou de escoamento e ele não arrisca, apesar do “liberalismo” que reina, expôr-se a tanto. Colidiria provavelmente não com uma legalidade que é de facto contornável, mas com os interesses, talvez, de outros mais bem colocados que ele. Os comerciantes legais, por seu turno, estão como já vimos euforicamente implicados no fervilhante mercado urbano do momento e invocam a prática do roubo (de que os Kuvale são sistematicamente acusados, desde sempre) para justificar o seu desinteresse pela zona. Não se tratará do roubo da mercadoria que transportam, mas sim do gado que passará à sua posse após a troca. Não o escoam imediatamente e esse gado, na realidade, permanecendo no local da transação à guarda não do seu novo proprietário mas de um qualquer assalariado deixado no local, acabará muito provavelmente por ser de facto “recuperado” pelos seus antigos donos. Porque não o transportam imediatamente dali, então? Talvez, quem sabe, para dar testemunho da sua presença comercial no terreno, preservando-a para um qualquer futuro mais interessante ou ainda, porque não, para dar corpo ao argumento de que o roubo lhes justifica a actual falta de assiduidade. Existe ainda assim um outro tipo de comerciantes que sempre aparece e sabe contornar o problema dos roubos. Eles vêm sobretudo do Lubango e os camiões (velhas “IFA” adquiridas ao exército por ex-militares, na sua maioria) que utilizam, escoada a mercadoria transportada, regressam no mesmo dia, carregadas com os animais que resultaram da transacção. E aparecem também Mwílas, de um grupo agro-pastoril vizinho, tangendo burros carregados de produtos. Que transportam uns e outros, os camiões dos primeiros, os burros dos segundos ? Algum milho ou massango, é verdade, mas sobretudo álcool, aguardente, licores da produção do Lubango e “makao”, bebida fermentada de produção artesanal.

Era este o panorama que reinava no terreno da minha observação até Abril de 1993. Depois começou a chegar o milho do Programa alimentar mundial (PAM). Responde pelo nome de “milho da seca” e é distribuído a coberto da insuficiência das quedas pluviométricas ocorridas nas últimas estações. Não me sinto nem obrigado nem estimulado a discutir o bem fundamentado da operação, tanto mais que é facil conjecturar que se o milho não chegar lá por esta via acabará por não haver qualquer milho e as populações voltarão a ter fome. Mas não posso deixar de incomodar-me perante o facto de este milho ser distribuído gratuitamente. É uma circunstância capaz de acarretar consequências sociais desinteressantes para a própria população beneficiada e que a coloca, a ela também, numa situação de perplexidade. Dispõem de cabritos e de bois para trocar pelo milho e esses animais poderiam vir a ser canalizados, inclusivamente, para populações mais afectadas pela guerra e que de facto nada produzem, só podem mesmo sobreviver a partir do que se lhes dá. E esse não é o caso aqui. 

Crises globais versus crise específica

Esta incursão pelos terrenos do comércio, imcompleta como aparece, coloca ainda assim aspectos significativos do funcionamento e das “lógicas” da economia angolana, vista aqui na sua vertente “micro” (matéria ao que parece à margem das preocupações maiores dos nossos economistas, inteiramente mobilizados pelo quebra-cabeças da finança nacional). Enquanto antropólogo prioritariamente investido na intenção, entre outras, de observar o “caso angolano” a partir de uma colocação excêntrica em relação à capital do país, foco de quase todas as atenções, internas e externas, retenho a evidência de não haver de facto escoamento para uma produção local cativada para esse fim. Vive-se uma situação de aberrante e crónica crise de abastecimento num momento da história dos Kuvale em que é da mesma forma particularmente evidente a sua prosperidade produtiva.

Mais uma sociedade pastoril em crise, dir-se-ia, portanto, numa época que é de crise para todos as sociedades pastoris assinaláveis pelo mundo fora. Aqui, porém, a crise é diferente. Ela inscreve-se numa crise nacional muito específica também (justificada quase sempre pela guerra e traduzida, por exemplo, nesta incapacidade para aproveitar recursos alimentares locais quando praticamente tudo o que se consome é importado ou provém da ajuda internacional) e pouco ou nada tem a ver com as crises que normalmente assistem às sociedades pastoris. Para as lógicas dominantes, quer económicas quer estatais, de um mundo regularmente implicado em projectos de modernização económica e política, as sociedades pastoris clássicas desenvolvem uma prática económica “irracional” (não destinam ao mercado integrado a muita carne que produzem e situam-se fora dos circuitos de consumo que fundamentam o sistema económico mundial). Elas são de igual forma politicamente difíceis de controlar (movimentam-se muito, são nómadas!) e escapam assim tanto à função administrativa como ao exercício das políticas, quer locais quer centrais. Por isso os sinais de mudança que é comum assinalar no seu seio decorrem, sobretudo, das propostas de desenvolvimento e das acções de intervenção administrativa que as visam tendo prioritariamente em conta a sua integração económica e política, o seu controle global, em suma.

Ora se se têm manifestado incidências da acção estatal sobre as populações kuvale, elas não tem sido exactamente orientadas nesse sentido. As atenções que os Kuvale têm merecido do poder central dizem sobretudo respeito a cativações de ordem militar e partidária. Isso ajudará a explicar o surpreendente percurso vivido pelos Kuvale da independência até hoje, quer dizer, nestes últimos vinte anos de densíssima precipitação histórica (afastamento da potência colonial, lutas armadas pelo poder estatal, intervenção cubana e sul-africana, cobertura dada à SWAPO, tréguas, eleições, guerra civil de novo…) vivida muito intensamente nesta região e com uma participação muito activa por parte dos Kuvale. Durante este período teve lugar, de facto, um surpreendente processo de reabilitação, confirmação e consolidação de um modelo económico, social e cultural que o próprio curso da história em condições menos particulares normalmente condena. Nova perturbação interpretativa, assim, que talvez contenha em si os elementos que irão ajudar a entender os termos da especificidade crítica que é a nossa.

Precipitação histórica versus “tradição” 

Em Fevereiro de 1992 o reconhecimento que eu então fazia na região, procurando ao mesmo tempo recuperar uma visão de conjunto e estabelecer os contactos que me permitissem definir uma estratégia de inquérito, levou-me em direcção à Muhunda, que encosta à serra e faz fronteira com os platôs dos Gambos, donde descem Hakahona e “Mundimba”, “primos” dos Kuvale, Herero também. Gado a beber levou-me a fazer alto num rio de areia, o Viruí, antigo bebedouro de elefantes e hoje referência importante nas rotas da transumância. Era cerca do meio-dia e haveria com certeza gente por perto, garantindo o abeberamento do gado e aproveitando a oportunidade para controlá-lo, que nessa época do ano muitos dos animais pastam de noite, não recolhem aos currais e só são praticamente visíveis à hora de vir beber. De facto, pouco depois de termos parado o carro, homens armados foram saindo da mata circundante e um dos meus acompanhantes foi-lhes justificando a minha presença ali. Um miúdo foi despachado para pedir a comparência de um mais velho, “activista da zona”, que me fora recomendado na sede do município como eventual informante. Segiu-se uma espera de mais de três horas sem que o activista comparecesse e durante esse tempo, apesar dos esforços dos intérpretes circunstanciais que me acompanhavam, apenas alguns monossílabos foram arrancados aos pastores presentes, homens jovens que ora, a pouca distância, escavavam a areia do leito do rio para que a água fluísse e os bois bebessem, ora vinham colocar-se à nossa frente, de cocóras, fixando-nos mudos durante quartos de hora inteiros para depois voltarem à sua tarefa de fazer subir a água, para os animais. Numa dessas interrupções à serrada observação de que estávamos, eu sobretudo, a ser alvo, um dos meus companheiros recomendou-me que fixasse um deles, sobre quem viria depois a falar-me. Nada o distinguia dos outros, todos grandes e pouco solícitos. Quando concluímos que o velho jamais viria e que os outros aguardavam a nossa partida para se retirarem também, despedi-me e parti, perguntando-me se alguma vez mais voltaria ali.

Este bloqueamento comunicativo daria, evidentemente, para desen-volver a propósito um texto longo e complicado. Não é essa agora a minha intenção. Referi a circunstância apenas para reproduzir o que esse meu companheiro de viagem tinha para me revelar : alguns dos pastores ali presentes eram militares das FAPLA, longe dos seus quartéis talvez porque já desmobilizados, e aquele que me fôra particularmente apontado era oficial, sub-tenente, grande combatente e chefe de uma unidade de artilharia anti-aérea. Falava e entendia perfeitamente o português, escrevia e lia, conhecia Luanda e talvez mesmo o estrangeiro… Não abrira a boca e a sua expressão, embora sem hostilidade, fora sempre a de quem apenas vigia, altivamente desinteressado de tudo o que me dissesse respeito e que excedesse a minha condição de intruso. O incidente ilustra, julgo, a conjugação de pelo menos três elementos que me interessa por ora reter : a participação extensiva de jovens kuvale nas forças do MPLA desde as primeiras horas da sua intervenção na zona ; a sua praticamente generalizada e sem dúvida eficiente reinserção nos seus contextos de origem mesmo quando, e era esse o caso, foram longe na apreensão de sistemas marcadamente diferentes dos seus ; e, talvez também na decorrência disso, a capacidade de auto-preservação dinâmica do grupo com que se identificam e são identificados, ainda quando este se vê confrontado a incidências externas e a perturbações internas de grande impacto. Tais comportamentos confirmam traços já antes assinalados, nomeadamente após a repressão que os Kuvale sofreram no início da década de 1940 e que é necessário referir aqui, em meu entender, para que possa interpretar-se a actualidade que agora vivem. Sobre eles incidiu uma acção de extermínio físico, que acabou com muitos, e de deportação, que projectou grandes contingentes de homens, mulheres e crianças para as ilhas de São Tomé e do Príncipe e para lugares dispersos do Norte e Nordeste da então colónia de Angola. Todos os que por sua vez sobreviveram a este exílio terão sido mandados regressar, segundo os testemunhos orais que recolhi, dois, três ou quatro anos mais tarde, ao que se segiu, da sua parte, uma imediata e espectacular recuperação sócio-económica cujo processo me parece estender-se até aos dias de hoje.

O tratamento histórico do caso é até agora escasso e as versões correntes que subsistem em meios não kuvale talvez veiculem hipóteses muito distantes de uma qualquer verdade subjacente. Segundo os próprios Kuvale a repressão de 1941 não terá visado tanto a neutralização de um levantantamento politicamente fundamentado, dotado dos seus líderes e de uma consciência colectiva orientada nesse sentido, quanto a manifestação da brutalidade de uma política colonial incapaz de controlar-se a si mesma face a populações tradicionalmente reconhecidas como indóceis, ladrões de gado, avessos ao pagamento do imposto e à prestação de serviço braçal. Uma tentativa, talvez, de “domesticação” de um grupo que insistia em manter-se à margem da ordem colonial numa altura em que importava já, à administração portuguesa, dar provas da sua “acção civilizadora”. São-me referidas, de facto, figuras como Tyindukutu, por exemplo, que adquiriram projecção na época e cujo aniquilamento se justapõe à repressão em causa. Os factos estarão ligados, sem dúvida, mas aos historiadores que vierem a ocupar-se do caso talvez interesse saber que tal como é referido hoje, tanto Tyindukutu como outros seus contemporâneos que a tradição regista andavam ocupados com a sua vida e alheios ao problema de imposto que terá desencadeado a guerra. A perturbação que acrescentavam à agitação que então se vivia, e é essa convergência crítica que se impõe tratar, advinha, muito provavelmente, das acções de razia que desenvolviam sobretudo junto das populações vizinhas do norte, os Tyilengue, vítimas preferenciais, desde sempre e até hoje, de operações de apropriação de gado feitas a coberto da condição de dyiai, homens da guerra, a qual se adquire através de um culto de possessão específico. As próprias populações temiam Tyindukutu e, embora a sua memória seja guardada com todo o respeito, é-lhe atribuida mais uma influência negativa indirecta no desenrolar do processo, ao contribuir para uma concentração de forças coloniais, do que um papel de liderança na articulação de uma resistência organizada. 

De qualquer maneira os Kuvale regressados das plantações de São Tomé e do Príncipe, pelo menos, quando voltaram ao seu espaço de origem traziam consigo o dinheiro acumulado de salários referentes aos serviços ali prestados, que a administração portuguesa decidira entregar-lhes já em território angolano. Pensariam os gestores da política colonial que isso bastava para convertê-los massivamente, dinheiro na mão e memória fresca, à ordem visada ? Não contavam certamente que todo esse dinheiro acrescido do que estrategicamente os Kuvale apurariam a partir daí cedendo a sua força de trabalho a privados, às obras públicas, ao porto de mar da cidade de Moçâmedes, mais o milho que passaram a produzir intensivamente, mais as calças, os vestidos e as panelas de ferro que constituíam o espólio de exílio, tudo fosse imediatamente reconvertido em bois, de tal forma que escassos anos depois o grupo se via já de novo em condições de recusar investir-se em tudo quanto não fosse a prática da sua pastorícia transumante, de uma agricultura mínima de sobrevivência e não mais do que uma semana de trabalho anual na estiva do porto para garantir o numerário bastante ao pagamento do tal imposto. 

À data da independência a recomposição social e produtiva do grupo estava já satisfatoriamente assegurada e o livre exercício da sua prática apenas se via de novo dificultado por uma implantação, no terreno, de tentativas de exploração pecuária empresarial que nalgumas zonas o retalhavam com vedações de arame farpado. Era uma inciativa que remontava na maior parte dos casos ao início da década de 1950 e que mais do que afectar os Kuvale no que dizia respeito à ocupação de pastagens, lhes era lesiva porque dificultava ou impedia os percursos adequados da transumância e bloqueava o acesso a alguns pontos de água, abalando assim o fundamento das suas técnicas produtivas. Mas os colonos foram embora, os terrenos ficaram, as vedações perderam o sentido e os Kuvale deixaram de sofrer qualquer entrave à afirmação do seu domínio sobre o meio e o seu próprio destino, tal como verificaremos. E ficaram os bois, também, que os colonos deixaram. Veio a guerra, bem entendido, mas ela poupou até    hoje, grosso modo, o espaço em causa. E o Estado que se instalou, ocupado com a guerra e com outros interesses, não desenvolveu a acção que seria de esperar da parte de qualquer Estado moderno, fosse qual fosse a sua cor política. As populações kuvale, enquanto sociedades pastoris, foram de facto poupadas a uma acção, a uma atenção que, implicando desenvol-vimento, “racionalização” de aproveitamento de recursos e enquadramento administrativo como acontece habitualmente, os haveria, sem recurso, de perturbar seriamente, tal como aconteceu e acontece noutros países africanos que vêm neste tipo de sociedades um sério problema nacional. A tudo quanto o Estado lhes pediu os Kuvale responderam bem e isso lhes garantiu a possibilidade (a chuva ajudando porque afinal seca grande só talvez a de 1981) de manter hoje em exploração um rebanho talvez jamais tão extenso e luzídio. 

Aliança versus distância

Decorridos alguns meses sobre o episódio que atrás relatei, na manhã, para ser mais exacto, do dia de Natal de 1992, eu encontrava-me na sede do município acompanhado por uma delegação de notáveis a quem facultara transporte para se deslocarem ali vindos de cerca de quarenta quilómetros a oeste, local onde então acampava junto do homem mais importante da hierarquia kuvale, após ter interrompido o meu trabalho em Abril e voltado à região havia pouco. A razão daquela deslocação ligava-se aos acontecimentos que então decorriam na capital da província, a viver nessa altura as “limpezas” que se seguiram à expulsão da UNITA de Luanda no princípio da nova fase da guerra, depois das eleições, e conferiram ao conflito angolano uma feição que desmentia à saciedade a presunção politicamente brandida de que, pelo menos para uma das partes, a componente “étnica” não estava em jogo. O problema em questão e que os notáveis queriam discutir com a “autoridade tradicional” mais imediatamente ligada à administração estatal e por isso ali residente, ligava-se à atitude a tomar perante a ameaça que pesava, da parte de jovens ex-militares, sobre uma casa comercial da sua zona, explorada por um “Munano” (ver infra) que se deslocara à cidade antes dos acontecimentos, não voltara entretanto e não se sabia portanto se ali re-gressaria. A reunião teve lugar no quintal da residência da autoridade em causa, nas traseiras da sede do “partido”, à sombra da bandeira do MPLA e a poucos passos da bandeira da República, hasteada no quintal da administração, ao lado. Entre as pessoas circunstancialmente concentradas ali, familiares e visitas do soba grande atraídos pela hospitalidade festiva que o seu estatuto garantia, achava-se um homem jovem vestindo como outros uma T-shirt da propaganda eleitoral do candidato preservado na presidência do Estado pelo desenrolar dos acontecimentos. Quando, respondendo à sugestão que me fazia para o transportar a outros quarenta quilómetros dali, desta vez para norte, onde exercia por sua vez funções de soba também, me escusei a fazê-lo, encerrou a conversa perguntando se isso é que era democracia.

Novo episódio, portanto, ilustrativo a mais de um título da expressão que assumem neste terreno os termos da actualidade política, inclusive no que possa dizer respeito à “transição” : uma predisposição da parte dos Kuvale para aderir de forma nunca desmentida, e que remonta a 1974-1975, a tudo quanto constitua acção, proposta, orientação ou ordem do MPLA, associado incontornavelmente à própria legitimidade do Estado ; a articulação efectiva deste pressuposto ao papel jogado pelas “autoridades tradicionais”, todas saídas da linhagem hegemónica que prevale, antes “activistas”, no tempo dos “comités marxistas-leninistas”, hoje de novo designadas sobas, como no tempo colonial que teve de inventá-las no caso desta sociedade, tipologicamente identificável como acéfala, segmentária, sem dispositivos institucionais que designem poderes centralizados ; a correspondente percepção da UNITA, em bloco, como inimigo a combater por todos os meios ; finalmente a presença de uma ideia muito particular de democracia, associada sem dúvida a uma expressão de direitos adquiridos mas neste caso muito ligados ao exercício de um poder que encontra nela a via da sua continuidade.

A continuidade, precisamente, merece, quanto a mim, ser entendida aqui como um elemento chave. A memória das “guerras do Nano”, acção desenvolvida por raziadores que desciam, sobretudo na segunda metade do século passado, do planalto central para actuar com maior incidência nos territórios da Huila mas que também alcançavam a plataforma semi-desértica do Sudoeste, por um lado, e muito mais insistentemente das repressões sucessivas que incidiram sobre os Kuvale já em pleno séc. XX e de que a guerra de 1941 terá sido a última e mais significativa manifestação, colocam os “Munano”, gentes do alto, numa situação difícil perante esta região. Foram eles os agentes directos das primeiras e são identificados aos efectivos de tropa indígena das forças coloniais que consumaram as segundas. Ora hoje, em toda a província, qualquer Cimbundu é identificado como “Munano”.

A proposta de abrangência supra-étnica que o MPLA sempre invocou e ainda hoje vigorosamente sublinha, terá desde o início sugerido aos Kuvale uma garantia securizante contra uma eventual e temida revivalização de intervenções por parte dos “Munano”, tão próximos no terreno e na memória. Esta opção pressupõe, bem entendido, uma identificacão, por parte dos Kuvale, entre a UNITA e os Ovimbundu. Mas quem poderá afirmar, em consciência, que assim não acontece desde sempre e, de facto, para a maioria dos Angolanos, inclusive aqueles que adoptaram e adoptam essa formação como a expressão da sua vontade política? Assim, creio, a adesão massiva dos Kuvale ao MPLA, traduzida em mobilização militar, primeiro, e em voto, depois, não se tratando embora de um caso de identificação étnica, é desde sempre um indício da incidência de uma componente étnica na substância do conflito angolano. Bastará para tanto admitir que neste caso não se trata na realidade de um caso de identificação ou de filiação (o MPLA é antes identificado a Luanda, e Luanda está muito longe, geográfica, “étnica”, e culturalmente), mas sim de aliança. De uma aliança entendida nestes termos e nestas circunstâncias, precisamente, terá o MPLA, conscientemente ou não como parece que lhe acontece às vezes, sabido extrair as suas vantagens.

Posso hoje talvez conjecturar também que o MPLA terá sido entendido pelos Kuvale, à partida, como o herdeiro “natural” daquele poder distante, exercido por agentes “outros”, que a história impusera como pano de fundo à prática do grupo. Tanto assim que a acção política do MPLA ao tempo das suas primeiras manifestações locais fez imediatamente apelo aos tais notáveis da estratificação interna a que também, em muitos casos, e desde sempre, a administração colonial recorrera. O MPLA investiu-os na qualidade de seus representantes emblemáticos, efectivos e privilegiados. A formação de delegações por eles constituídas para receber em Luanda, à sua chegada, as figuras de topo do movimento, que finalmente vinham ocupar uma função política sancionada pelas autoridades portuguesas ainda em presença, poderá de facto ter jogado um papel mobilizador tanto junto dos próprios agentes assim destacados como perante as populações kuvale com os olhos postos neles. Atentos ao desenrolar dos acontecimentos e às lições da sua história recente, os Kuvale terão entendido sem dificuldade que por um lado o MPLA lhes garantia cobertura em relação à ameaça que mais imediatamente pressentiam, da parte do Nano, de novo, e pelo outro que uma aliança entre o poder central (que agora em Luanda passava de mãos e para as do MPLA, como a breve trecho se viria a verificar) e os seus notáveis, à imagem dos acontecimentos de 1941, poderia vir a ser uma plataforma de alto interesse pragmático. Esses notáveis tinham sido poupados ao massacre, à pilhagem e à deportação coloniais e haviam preservado a sua riqueza em bois, factor importante para a reposição dos efectivos bovinos, ainda à data em curso, através das malhas da circulação social do gado. Tais conjecturas não se revelariam erradas e a mobilização militar que se seguiu, à qual os jovens kuvale acorram em massa, veio a contribuir, embora não me pareça ser essa a razão exclusiva, para que a região se tenha visto livre, até agora, de confrontos maiores se exceptuarmos os seus limites a norte, e para que a sua reabilitação produtiva e social se visse de facto reforçada em meios e em possibilidades. O enquadramento no MPLA viria na realidade a facilitar a apropriação do gado deixado pelos colonos e não poucas operações militares desenvolvidas nas periferias viriam a confundir-se com acções de razia a coberto de um código culturalmente muito marcado (e não só entre os Kuvale, claro) que entende o direito sobre despojos como uma decorrência legítima da guerra. A justaposição, aliás, dos conceitos de guerra e de razia e o ressurgimento, ou pelo menos a sua reactivação presente, de cultos ligados à aquisição da qualidade de dyiai, homem da guerra, a que já aludi, faz parte das questões a incluir no desenvolvimento do meu trabalho.

Mudança versus continuidade

A mudança, assim, viria a inscrever-se numa continuidade que até hoje, de facto, garantiu a distância. Uma distância que, afinal, tem servido aos Kuvale e não põe em causa uma adesão generosamente manifestada ao MPLA nas eleições. Trata-se de uma adesão que, no entanto, insisto, parece assumir mais os contornos de uma aliança, que, como todas as alianças, merece uma atenção adequada. As alianças nunca perdem de vista os termos que as fundamentam e podem sempre ser postas em causa perante a formulação de novas equações.

Disponho de testemunhos que expõem muito francamente o reconhecimento de um défice na contrapartida que seria de esperar da parte do governo face ao apoio que os Kuvale lhe têm prestado. A ineficácia na resolução do problema alimentar foi-me por muitos sugerida com uma brecha capaz de perturbar relações de compromisso antes que o “milagre” do PAM, que já referi, viesse amenizar a situação. Mas o tom, a substância e o fundo destas contestações não me parecem, passe a subjectividade possível da minha apreciação, capazes de por em causa o status quo que até aqui tem vigorado. Elas referem-se a situações que são entendidas como uma insuficiência e não como uma agressão directa ou uma traição da parte do Estado. Não põem imediatamente em causa os termos da aliança, termos esses que, para os Kuvale, serão sobretudo a intocabilidade do seu gado e do seu sistema produtivo. Se uma incrementação ou reposição de relações de troca com a sociedade mercantil envolvente é desejada, quiçá exigida, ela apenas visa a satisfação de algumas necessidades de consumo (milho quando não o podem produzir, álcool, mantas e panos) a que afinal sempre foi possível dar um provimento mínimo quanto mais não fosse através da troca não mediatizada com os vizinhos. A falta de mercado, que condenou à inacção e à marginalização muitos grupos de agricultores angolanos economicamente dependentes do escoamento da sua produção, não agride aqui directamente nem o móbil da produção nem a própria viabilidade do sistema produtivo. O gado que produzem destina-se globalmente à acumulação desse mesmo gado, não só por razões de capitalização simbólica e social, também em observância a uma racionalidade securizante que tem em conta as condições do meio e ameaças de vária ordem (seca, epizotias, guerra). E se é verdade que uma parte desse gado se destina em princípio à comercialização, não é menos verdade que um pleno funcionamento ou o desenvolvimento de uma incidência mercantil accionada, coberta ou estimulada pelo Estado e que pretendesse fazer introduzir nesse circuito categorias de gado produzidas com outra finalidade, viria a constituir perturbação bem mais grave do que a actual e quase total ausência de comércio. 

Vive-se hoje uma euforia do gado. Neste momento e mais do que nunca, estou em crer (embora hesite referi-lo), qualquer atitude ou acção que possa bulir com o gado deverá ser encarada com a maior prudência. Poderia suscitar uma resposta pronta e de consequências graves, precisamente da parte de uma juventude kuvale sem dúvida enérgica e turbulenta, educada e instruída na guerra e que hoje, para além de se ocupar do gado que é ainda dos seus pais ou dos seus tios, zela também pelos seus próprios bois, a que teve acesso não através dos dispositivos de sucessão ou outras modalidades estatutárias de circulação do gado, mas a coberto da guerra, precisamente. Poder-se-à por outro lado deixar de ter em conta que, tanto quanto o passado nos revela, sugere ou induz a inferir, o gado se situa no centro de todos os conflitos em que os Kuvale se têm visto envolvidos, incluindo a guerra actual? E que, dada a especificidade da sua prática, tudo quanto se lhes refira acabará por interferir com o gado, ou vice versa? 

Arrisco introduzir neste texto uma terceira ilustração extraída também do próprio exercício do inquérito. Ela não documenta comportamentos ou situações, como os anteriores, mas apreende um dado de consciência que eu entendo pertinente para a análise. Têm-se tornado muito frequentes em certos meios de Luanda, nos últimos tempos, referências a uma barragem que há-de construir-se no rio Kunene para servir simultaneamente os interesses de Angola e da Namíbia e que afectará, de um e de outro lado da fronteira que o rio define, populações himba, herero como os Kuvale, que desenvolvem uma prática sócio-produtiva regida pela mesma matriz cultural. Introduzida no meu inquérito a hipótese de uma situação equivalente referida aos Kuvale, verifico que uma interferência possível com o espaço produtivo não constituirá obrigatoriamente um problema maior. Para as sociedades pastoris e transumantes, de facto, o espaço produtivo será sempre comum e vago, embora identificado, passível portanto de arranjos alternativos de gestão dentro de limites que não percam de vista os recursos em pastos e em pontos de água. Foi o que aconteceu com a instalação de fazendas, ao tempo do colono, na actual província do Namibe. O mesmo não se passa porém em relação ao espaço doméstico, que se converte em território. E no caso em questão um desalojamento conjecturável de populações não colidiria certamente tanto com a residência dos vivos. Esta também pode alterar-se, é aliás o que ocorre no comum, faz parte do sistema. É antes a residência dos mortos, os cemitérios, parte integrante do espaço doméstico, intransferível por definição, que pode levantar o problema. Dado cultural entre os que o são, poderia um aspecto tão “economicamente irracional” como este (já que ele será infalivelmente confrontado à argumentação de que se trata de uma barragem vantajosa para todos, incluindo os futuros desalojados) pôr em causa a estabilidade de um compromisso ? 

O culto dos antepassados é nestas comunidades o texto de um código de comportamentos, incluindo os da produção, da distribuição e do consumo. A sua colocação em causa pode abalar todo o sistema comportamental e logo assim as articulações que lhe garantem a viabilidade. Um dos factores integrativos que em meu entender garantem à sociedade dos Kuvale, para o caso, a sua sobejamente demonstrada capacidade para preservar-se, adaptar-se, reproduzir-se e produzir riqueza num meio hostil e frágil, preservando-o embora, é a observância de um modelo de articulações sociais e económicas de que a expressão simbolizada, representada, ritualizada e actualizada mais imediatamente apreensível na sua condensação é o culto do fogo, associado aos antepassados próximos. A ameaça da banição pesa sobre qualquer indivíduo que ofenda tabus ligados ao fogo e ele não pode furtar-se a esse modelo se quer preservar o seu lugar social e, logo assim, o acesso à plena qualidade de pessoa (a palavra elao designa o altar ligado ao culto do fogo e significa ao mesmo tempo sorte) e à riqueza (o banido é colocado fora dos dispositivos de circulação e reprodução social dos bois), ao pleno exercício da prosperidade pessoal conjecturável, ao prestígio, ao poder efectivo, em suma, que a posse de gado representa. Não falo do modelo que o antropólogo constrói para projectar uma situação ideal que o presente poderia ter desmentido já. Falo do que se passa hoje e é ilustrado pelos ex-militares que aqui regressam e não distingo de quaisquer outros pastores mesmo depois de alfabetizados no exército e ocidentalizados a todos os níveis pelos contextos urbanos que frequentaram. É em referência a esse texto que os ex-militares se reintegram, neutralisando assim o efeito desestruturante sobre o próprio sistema produtivo que poderia ter constituído a sua iniciação junto de um sistema outro, pela via da sua incorporação no exército. Não vou pretender que daí não advenham perturbações, e graves, questão que referirei e tratarei da maneira que me for possível noutra oportunidade. Mas a prática da maioria sugere-me a consciência da sua parte de que nada do que deixaram para trás lhes pode propor uma alternativa mais interessante de prosperidade pessoal, mesmo se tentados a encarar as modalidades de consumo que o mercado urbano lhes propõe. Um simples boi dentre os muitos a que o sistema produtivo em que vêm reintegrar-se lhes dá acesso dotá-los-à de mais poder de compra ou de investimento do que muitos salários auferidos no exército ou no mercado de trabalho. Mas para isso, teoricamente, é preciso obedecer ao “texto”, reintegrar o sistema, não investir fora dele.

A questão metodológica que se me põe, assim, é precisamente a de indagar da estabilidade ou da fragilidade das ordens prevalecentes e que garantem a tal continuidade que é simultaneamente a do sistema e a da aliança com o Estado, a que regula as relações dentro do grupo e a que assiste às suas relações com o exterior, quer dizer, ao efeito que as transições, incluindo as “liberais” enquanto novo dado, poderão vir a ter sobre este grupo social e, à sua imagem, sobre outros.

Etnia versus etnicidade

O desenvolvimento da situação angolana há-de conduzir a uma qualquer paz (também não há guerras eternas) mesmo se ela hoje parece ainda sugerir que as partes envolvidas no conflito, ou quem as lidera, ou quem as dirige ou orienta, de perto ou de longe, não investem toda a sua vontade, ou estratégia de interesses, nesse sentido. A guerra então deixará de mobilizar todas as directivas, todas as políticas, as explicações e as justificações da acção do Estado e ele terá que manifestar-se nos outros terrenos de intervenção que por definição lhe cabem, incluindo o controle das populações, que passará normalmente de militar a político. E nessa altura os Kuvale verão necessariamente abalada a sua relação com o Estado, porque ela se fundamenta, hoje, afinal e desgraçadamente, numa situação de guerra, e passarão, na melhor das hipóteses, estou em crer, da condição de “etnia” à do exercício de uma problemática “etnicidade”.

Não é altura de introduzir um debate teórico sobre a etnia, a etnicidade, a afirmação identitária. Nos meios especializados a reflexão a tal res-peito tem suscitado sucessivos desenvolvimentos, segundo vários ângulos de observação, de interpretação e de análise, e o campo está ainda aberto à polémica. Nem traria para aqui a questão se não achasse que ela é de facto indispensável ao tratamento de um presente como o dos Kuvale, o grupo de um lado e a guerra (o mundo) do outro, insidiosa guerra, obcessiva e castrante, obscura patrona das nossas vidas. Fá-lo-ei brevemente, assim, apenas quanto baste para formular uma interrogação final.

O presente que vivemos, o tempo que o mundo vive à dimensão da sua globalidade e pelo qual procuramos aferir a nossa condição de observadores e de analistas, é sem dúvida mais o das etnicidades do que o das etnias, quer dizer, o da diferença identitária jogada como afirmação política. Mas para nos situarmos numa tal plataforma de interpretação é sem dúvida necessário apreender os termos que poderão idendificar as categorias pertinentes. Etnia parece tão difícil de definir quanto nação mas uma proposta que entenda “grupo étnico” como uma convergência de indivíduos reconhecida pelos próprios e pelo exterior como uma comunidade de interesses cimentada por factores tanto culturais como sociais e eventuamente físicos, língua, origem, passado comuns, sistemas produtivos diferenciados, grelhas de articulação social específicas, território, por exemplo, estes e/ou outros, nem sempre os mesmos mas necessariamente desta ordem, tem-me servido até agora e, embora disponível para isso, não vejo razões que me levem a pô-la de parte. Os Kuvale enquanto grupo enquadram-se nesta proposta de caracterização teórica e se procurar assinalar os termos através dos quais se auto-identificam, verificarei que um Kuvale se diz kuvale porque é filho de Kuvale e isso o integra num universo de circulação de pessoas, de bois e de símbolos povoado por indivíduos que se dizem e são ditos kuvale pelas mesmas exactas razões e no interior do qual ele próprio se acha abrangido por um corpus de direitos e de obrigações que só implicam quem se entenda e seja entendido como inteiramente kuvale (existem de facto no interior do grupo indivíduos noutras condições, que por sua vez e por isso constituem grupos diferenciados, questão a que não poderei alargar-me aqui, seria entrar no detalhe das razões do sangue e da cultura). Essa é a realidade que para ele vigora. É evidente que esta circulação de pessoas, bois, símbolos, direitos e obrigações pressupõe, no caso dos Kuvale, um espaço geográfico, uma língua e um passado comuns. Mas isso não me será dito se eu não orientar o inquérito nesse sentido. O grupo, entendido e dito por si mesmo no seu próprio contexto, existe de facto, nas condições presentes, mais como um universo “político” e de trocas referido ao seu exercício interno do que às suas relações com o exterior. É nisso que reside a diferença da sua diferença. A “diferença ” é vivida, mais do que “dita”. 

Ora o tratamento da questão étnica, hoje, já que o testemunho parece ter passado dos antropólogos aos politólogos tem sobretudo em conta não os grupos que exibem a sua diferença efectiva através de uma prática global mas aqueles que a dizem, que a substantivam através principalmente de um discurso apontado ao exterior do próprio grupo, quando ele existe, como instrumento de acção política, de perturbação de uma “ordem”, perante os desafios que confrontam o grupo a um exterior que é afinal o interior de uma outra categoria colectiva, aquela que o Estado consubstancia. É a “passagem ao político do fenómeno identitário”, a etnicidade. 

Estaremos em ambos os casos perante situações que produzem a diferença, a reproduzem, acrescentam, adaptam, gerem ou geram, mas enquanto na situação dos Kuvale, para o caso, as respostas, as estratégias, as acções, visam sobretudo a auto-insularização do grupo, a preservação de todos os seus sistemas, produtivo, representacional, educativo, jurídico, lúdico, cultural, no caso dos grupos que se fundamentam sobretudo na produção de um discurso, numa expressão de etnicidade, o objectivo é a luta política pelo seu lugar num sistema global, à escala do Estado, que lhes diz respeito precisamente porque diz também respeito a “outros”. 

O que quero dizer, por outras palavras, é que no caso dos Kuvale a afirmação identitária é a resposta de um presente a outro presente, a expressão de uma diferença que para se manifestar não precisa de invocar o passado, apenas exibe uma prática. Ela assume inequivocamente os traços de uma vontade expressa pelo grupo de garantir colectivamente o curso do seu próprio destino, é uma manifestação política também, certo, mas de forma alguma é uma construção, é uma expressão autonomizada em relação às bases sociais que a informam e ao contexto social onde se manifesta, sujeita desde logo a eventuais radicalizaçães por parte de intectuais e de políticos.

A “aliança” dos Kuvale com o MPLA, facto político, parece-me na realidade corresponder a este ponto de vista. Ela constitui uma inegável resposta identitária mas situada à margem da disputa pelo poder em que o MPLA e a UNITA têm estado envolvidos. As ligações, por outro lado, que os Kuvale querem ter e manter com o exterior limitam-se a relações de troca que provenham à satisfação de algumas necessidades internas e não têm minimamente em vista a sua intervenção em quaisquer processos alheios, mesmo comerciais (escoamento da sua produção).

Mudança versus representatividade

Assim, quando atrás, preocupado com a incidência das transições liberais no seu futuro, digo que, na melhor das hipóteses, os Kuvale passarão da condição de etnia à de produtores de etnicidade, o sublinhado decorre das dúvidas que me coloco quanto à presença das condições que possam conduzir a isso. Não se trata, claro, de atribuir à sociedade dos Kuvale um imobilismo ou um dinamismo apenas capaz de conduzir à sua anulação. A adaptação e mesmo a inovação estão presentes e é possível assinalar frequentes sinais e mesmo processos que revelam já ou anunciam para breve, e nem sempre a favor da prosperidade e do concerto circunstanciais que subsistem, perturbações e readaptações, vacilações e reelaborações estruturais dinamicamente equacionadas em relação ao modelo interno. Mas também é evidente que não aferindo pelo exterior o seu lugar em sociedade, a prática que agora desenvolvem os tem abismado sobre si mesmos e cria poucas oportunidades para a emergência de um discurso identitário apto a produzir uma contestação inteligível a uma outra ordem política que o Estado venha a impor-lhes ou mesmo a intervir na cena política nacional quando a necessidade disso vier a ser sentida pelo grupo. E também a exiguidade demográfica dos Kuvale, mesmo se adicionada às de todos os Herero angolanos, e a sua escassa inserção no sistema nacional, ao qual resistirão enquanto o seu próprio sistema lho permitir, fazem correr o risco de jamais a sua representatividade num aparelho democrático, enquanto grupo que defende os seus interesses, vir a ter alguma relevância.

Estarão assim os Kuvale a evoluir para uma condição de minoria nacional privada de representatividade e condenada à exclusão? Não o creio. A seu favor jogarão sempre pelo menos três factores : o gado, o território que ocupam e a capacidade que é a sua de extrair uma alta produtividade da conjugação destes dois elementos num meio difícil e de alto risco para quem esteja menos habilitado a geri-lo.

Futuro versus transições liberais

O prosseguimento de uma reflexão orientada neste sentido exigiria tratar com um certo detalhe o problema da representatividade num sistema democrático como o que se projecta para Angola e que é afinal o que de melhor poderá acontecer aos Kuvale. O mesmo quanto à questão também importante para nós, mas ainda intocada, das minorias nacionais ou mesmo locais. Isso excederia, evidentemente, os limites razoavelmente admissíveis num artigo desta natureza. Inapto, por outro lado, a produzir prognósticos, políticos ou outros, por me faltar para tanto vocação, talento ou convicção ideológica, tudo quanto eu possa conjecturar sobre o desenvolvimento de um futuro kuvale, que em meu entender ainda não começou, terá que fundamentar-se em diligências comparativas que tenham em conta processos, passados ou em curso, relativos a outras sociedades pastoris, por exemplo e obrigatoriamente os Herero da Namíbia e no Botswana, nomeadamente. A haver, portanto. 

 

11 de Novembro de 1994

Universidade de Luanda e CEAN, Bordéus

 

fotografias de Marta Lança, Namibe 2013

por Ruy Duarte de Carvalho
Ruy Duarte de Carvalho | 1 Setembro 2013 | angola, herero, pastores, transição