"A Construção da Nação e a Consciência Nacional", entrevista a Ruy Duarte de Carvalho

Este texto resulta da entrevista concedida por Ruy Duarte de Carvalho a Nuno Vidal, em Luanda a 12 e 15 de Julho de 1998. A entrevista dividiu-se por dois dias e foi gravada em cassete áudio; a transcrição e edição são da responsabilidade de Nuno Vidal que a inseriu na publicação de homenagem da Associação Cultural Chá de Caxinde ao grande intelectual e escritor Ruy Duarte de Carvalho: Tudo o que não ficou por dizer. 

Como achas que está a consciência de Nação em Angola?

A consciência de Nação existe, forjou-se, sedimentou-se pela negativa, em grande parte pela guerra, não é nada de exaltante, antes pelo contrário, todos nós sofremos a condição de ser angolanos, mas é assim que é entendido.

Os militares gostam de enfatizar o papel das FAPLA enquanto instituição que em grande medida serviu para reforçar uma consciência nacional porque integrava indivíduos de vários pontos do país.

Numa Angola que passa a existir como país, mas não como nação, tudo o que articule os cidadãos nas mesmas instituições tem importância para reforçar a consciência nacional, como tem a língua portuguesa, também têm as redes e os circuitos informais, que articulam Zairenses com outros, à partida é isso que constitui uma consciência nacional. Passamos a perceber que estamos implicados numa mesma substância nacional quando nos sentimos implicados nas mesmas instituições quer sejam formais ou informais. O exército sempre jogou um papel importante, inclusivamente já no tempo colonial, em que o exército congregava pessoas de todos os cantos da então colónia, ensinando os recrutados a ler etc. e que depois viria também a jogar um papel importante na tomada de uma consciência nacionalista. Julgo que isso está necessariamente implícito num organismo, uma instituição, com uma vocação que se estende a todo o território.

Mas mais do que o exército, insisto que a própria guerra terá sido um processo central, um processo em que estamos todos implicados, as questões de fronteira e dos refugiados. Mesmo quando a vida de uns foi determinada por incidências de uma parte e a de outros por incidências de outra parte, estão todos dentro do mesmo processo. Há dois ou três anos eu estive no Huambo a trabalhar com a FAO e fomos a zonas da UNITA, encontrámos populações angolanas que desde o fim do tempo colonial só se tinham apercebido de incidências da UNITA, mas a conversar com eles, nós todos sentíamos que estávamos implicados no mesmo processo e que isso é que fazia de nós angolanos, independentemente de toda a gente saber que eu vinha do outro lado. Julgo que a questão das nacionalidades em África ainda há de mexer muito e algumas dessas alterações nós estamos a ver, dentro e fora de Angola. Mas ao mesmo tempo, haja o que houver, todos estes processos, sejam de guerra, prosperidade, progresso ou outros, todos eles se exercem a partir do factor tempo, o factor tempo joga. Nós arranjámos maneira de domesticar tudo, o espaço – eu trabalho sobre a domesticação do espaço aqui na faculdade de arquitectura –, mas a domesticação do tempo é mais difícil, o tempo segue inelutável o seu percurso. Mesmo que seja uma experiência desastrosa, destas em que nós nos aferimos como compatriotas pela negativa, porque se abateu sobre nós a mesma desgraça, o tempo deixa a sua marca.

Em que medida é que essa identidade nacional se relaciona na cabeça e na prática das pessoas com identidades étnicas, regionais etc.?

A identidade nacional está em curso. As identidades étnicas e regionais exercem-se, porque Angola conheceu um processo de encapsulização geral. Todas as sociedades, mais ou menos rurais e mesmo algumas urbanas, para sobreviver tiveram que contar com os seus próprios recursos, não chegava lá nada, nem abastecimento exterior nem vias de escoamento do que lá se produzia. Tiveram que se organizar a partir dos seus próprios recursos. Dado que estas sociedades não são completamente auto-suficientes, como é o caso dos pastores, que nunca produzem cereais em abundância, articularam-se com populações vizinhas para troca de gado por cereais. Portanto, em certa medida reconstituem-se circuitos de compensação, que nalguns casos até poderão corresponder a configurações pré-coloniais. É aí que as identidades étnicas voltam a jogar o seu papel, têm de jogar o seu papel. Portanto, eu julgo que há um processo de reafirmação das identidades étnicas sempre que isso constitui um argumento, um instrumento de sobrevivência.

Queres então dizer que as dinâmicas sub-nacionais articulam-se e coexistem com a dinâmica nacional?

Sim, e não se anulam uma a outra. O facto de haver processos de afirmação étnica e até de reconstituição étnica que estão em curso, incluindo processos de elaboração de identidades étnicas que não existiam antes e que estão em curso, não significa que isso ponha em causa ou que se confronte com uma condição de identidade nacional, não colidem, articulam-se, complementam-se. É evidente que se houvesse um sistema nacional a funcionar, em termos de comércio, de economia, de instituições, etc. os eventuais processos de afirmação étnica perderiam terreno, neste caso ganharam terreno.

Não é uma encapsulização que comporte apenas um grupo, porque esse grupo para sobreviver tem de se articular a outros, o que se criam é articulações regionais, e isso é interessante do ponto de vista sociológico, porque há populações que a par do modelo globalizante Ocidental que vai contra tudo em termos de longa duração, estão em curso em Angola processos de assimilação de uns grupos aos modelos de outros grupos e mesmo modelos pré-coloniais. Eu estudei nos meus pastores – todos os antropólogos falam assim, é um vício –, processos de assimilação de populações Cuissi ao modelo Cuvale, ao mesmo tempo que o modelo Cuvale sofre perturbações por influência do modelo Ocidental. Não é unívoco, há processos de assimilação a modelos exógenos parcelares.

É claro que isto acaba por interessar só mesmo aos antropólogos, porque os outros estão-se nas tintas e ninguém está muito preocupado, o que leva a que se façam muitos disparates e nem é sequer da parte do governo, que sequer actua, é da parte das ONGs, que estão cada vez mais a ser postas em causa. Houve aqui um período de plena euforia das ONGs que era confrangedor, porque apesar de vermos os erros que estavam a ser cometidos também não podíamos dizer parem, porque senão as populações ficavam sem comer. Isto é que são as situações angustiantes nacionais, que também ninguém fala nelas porque senão ainda vamos complicar mais e isto já está complicado que chegue.

Mas consideras que mesmo nos locais mais remotos e sem grandes meios de comunicação as populações têm uma noção forte de que são Angolanas? Mesmo aquelas populações que não comungam da língua portuguesa?

Sim, posso-te garantir que têm, a língua comum não é condição suficiente para aferir essa consciência. Eu costumo contar uma história de um amigo que já morreu que era das FAPLA e que passados 10 anos da independência foi para o Kwando-Kubango com o seu pelotão. Ao chegarem a certa aldeia foram recebidos pelas populações como se fossem tropa portuguesa, não sabiam de todo que a situação tinha mudado e ele para provar que as coisas tinham mudado teve que mostrar notas de dinheiro com o rosto impresso do Agostinho Neto e disse-lhes “como vêm este dinheiro não é o dinheiro antigo, antes tinha um branco e agora tem um negro”. No entanto, isto não impede que eles não tivessem consciência de pertencer a uma administração, que é dinamizada a partir de Luanda. É por essa via que podemos aferir se as pessoas têm a noção de pertencer a uma totalidade de Angola ou não. É como se referem ao ponto de onde emana o poder.

Para os pastores com que eu trabalho, a noção apreensível de espaço vai até Benguela, daí para a frente é o mundo, é o mundo que vem ter a Luanda onde manda o Mwene Puto, o senhor de Portugal. Apesar de essa expressão ter perdido esse sentido, essa carga semântica, ainda hoje o governo de Luanda é o Mwene Puto, ainda hoje se lhe referem como o Mwene Puto.

Também na Namíbia, quando as pessoas Hereros estão a falar de Angola, é o Puto, é de onde vem o poder do Mwene Puto. Portanto, nem sempre o facto de não falar português implica essa falta de consciência. Se perguntares de onde é que está a vir o Estado que está a mandar, está a vir de onde? Ele vai-lhe dizer, ou que está a sair de Windhoek ou de Luanda. Quando ele lhe disser que está a sair de Luanda a substância Angola está presente, e é mais ou menos assim que não comporta nenhuma carga nacionalista.

O problema do nacionalismo não é assim muito burguês, não tenhas dúvida nenhuma. A este respeito sempre cito o Amílcar Cabral, que de todos os teóricos, de todos os ideólogos, é o único que subsiste, e que a respeito das identidades nacionais e outras dizia que quem se preocupa com as identidades é quem quer apreendê-las, quem as vive não se preocupa com elas, quem as vive é. Isto é fundamental. Quando vim da Namíbia para aquela conferência sobre a Angolanidade onde tu estavas presente lembras-te que o X1 disse “Ah, afinal é o Ruy Duarte de Carvalho, a quem tanta gente contesta a condição de Angolanidade, que nos vem explicar o que é ser Angolano?” e eu respondi-lhe “querido amigo, quem se preocupa com a minha condição de Angolano é porque não está muito seguro da sua própria condição de Angolano”. Portanto isso é-me completamente indiferente.

Um Cuvale ou um Cuissi, não está nada interessado em provar se ele é Angolano ou não, a percepção que ele tem da condição de angolano é a de saber quem é que manda nele; se ele pagasse imposto pagava aonde? O que eu vejo por aí fora, começando por aqui pelo Mussulo onde eu fiz a minha tese, a realidade não tem este peso do ser angolano ou não ser angolano, ele está integrado numa sociedade onde está ou não está inserido e em que ele funciona ou não funciona.

Mas ele em relação aos grupos vizinhos como é que se identifica?

Aí não lhe serve de nada dizer que é Angolano ou não é angolano. Ele é Kwanhama, o outro é Cuvale o outro é Mumuíla, etc. e jogam com isso. E como é evidente, todos se sentem orgulhosos dessa identidade, como poderia ser se não fosse assim?

Aí ele não tem necessidade de afirmar ou infirmar a sua condição de Angolano. Quando muito terá em relação ao outro lado da fronteira, mas aí entram outros factores, há vários jogadores angolanos a jogar na selecção de futebol da Namíbia, eles são Kwanhamas, são de um lado ou de outro, jogam pela selecção que os agarrar primeiro. Tal como é o caso de vários Zairenses que estão a jogar nas equipas de futebol em Angola. No fim, por questões pragmáticas, as identidades sempre encontram uns termos de articulação que não passa pelos sentimentos de pertença, passa por sentimentos de querer pertencer a qualquer coisa que possa ser interessante para a vida de cada um. Acho que as coisas são muito mais pragmáticas do que aquilo que nos parecem a nós teóricos, observadores destas realidades.

E a realidade de Cabinda?

Não sou especialista em Cabinda, mas na minha opinião pessoal a situação de Cabinda tem de facto algumas diferenças e há-de ser explorada nesse sentido. No entanto, para os próprios Cabindenses, não sei se estão a agir sensatamente, porque podem até conseguir separar-se de Angola, mas o Zaire passa a exercer o domínio. Trocam por uma dependência, que apesar de tudo aqui é negociável e articulável, por uma dependência que pode não o ser. Às vezes ocorre-me outro caso, o de São Tomé, que é quase tão dependente de Angola como Cabinda. Não somos profetas e eu não vou viver o tempo suficiente para assistir a nada disso, mas não me custa imaginar num futuro, não próximo mas conjecturável, qualquer federação que não inclua só Angola e Cabinda, mas também São Tomé. Poderá existir uma tendência nesse sentido. Hoje ainda pode parecer chocante uma conjectura deste tipo, mas daqui a cinquenta anos será algo que passará por evidências pragmáticas.

A questão que se me coloca é a necessidade de elaborar a categoria de consciência nacional. Quanto a mim continua a corresponder a um trabalho à posteriori. A experiência no fim é que dita as práticas e aí, num país que está tão carente de instituições, é evidente que o fenómeno há de seguir outras vias que não só aquelas que as instituições formais vão assegurar.

A consciência nacional, é uma coisa que se faz, que se desfaz, que se acelera e desacelera, que depende, é uma construção e desconstrução, é algo dinâmico e corresponde ao tempo que se vive. Mesmo na Europa, dos poucos países onde existe alguma coesão é mesmo em Portugal, porque mesmo na Espanha é relativo. Por exemplo, um Basco em determinadas situações poderá sentir-se mais espanhol do que noutras e joga com isso. Os franceses também, ou é mais bretão ou menos bretão conforme outras coisas estão em jogo.

 …mas a questão aqui é de saber se isso constitui um potencial de ruptura, de

desagregação?

Penso que não, mesmo que a actual configuração não se perpetue e que se acabe por construir outro modelo - porque há uma Angola com vários poderes -, ainda assim a ideia de Angola vai prevalecer. Para um tempo que não será o meu nem o teu, há-de haver inevitavelmente muito conflito em África e daí resultarão novas fronteiras políticas. A actual configuração das fronteiras em África é instável, mas é uma instabilidade que se fundamenta numa legitimidade que a situação colonial instalou e que a OUA aceitou, e mesmo a dinâmica das relações internacionais prefere que seja assim e há-de mantê-la enquanto puder.

Mas, por outro lado, os movimentos migratórios de que falaste terão também servido para reduzir um pouco o sentimento de regionalismo e de pertença a um grupo localizado?

Não sei, isso é tão remoto… se eu me lembrar do que vi em 1961 quando começou a sublevação no Quitexe… eu estava lá. Se eu me lembrar do que lá se passou, tenho que reflectir muito maduramente sobre o que é possível conciliar ou não.

Eu não sei em relação a outros países africanos o que será consciência nacional, por exemplo na Nigéria, países grandes que têm populações que se deslocam com relativa facilidade. Há novas formas migratórias e de transumâncias, falo aqui de transumâncias em sentido lato, não somente as transumâncias que normalmente associamos às sociedades pastoris, mas de exercício económico que abrange quase o continente todo. Se viajamos para a África do Sul,

Namíbia, etc. encontramos Sras. do Quénia, da Nigéria, do Zaire, etc. que dão a volta ao continente com o seu comércio. Portanto, tudo isso são formas que ainda não estão incluídas nas equações que nós fazemos.

Para Angola, aquilo que talvez seja diferente a este nível é que emergiu mais tarde esta necessidade de uma afirmação negra e há uma burguesia nacional negra que continua a valorizar muito os valores culturais europeus e a persegui-los, ao contrário do que se passa noutras elites africanas.

Essa elite é eminentemente pró-MPLA?

Não necessariamente. As elites das missões do planalto central, que não são necessariamente do MPLA, mesmo quando têm de disfarçar, também não valorizam uma afirmação cultural fundamentada em traços que se vão elaborando ao longo destes últimos anos.

A grande parte dos equívocos que ocorrem, e em relações mais próximas e menos públicas eu chamo a atenção para isso, é que por vezes se exibem como sinais de uma africanidade de raiz, apenas os sinais de uma africanidade que assimilou traços islâmicos – os vestidos das Senhoras, os Bubus dos homens –, que saem do Norte, de uma África de incidência islâmica.

Isso é assumido como afirmação de uma africanidade de raiz, mas que são expressões resultantes de outros processos de assimilação. Portanto, tudo isto é muito forjado e elaborado, é uma manifestação de cultura de assimilação.

Então dizes que consegues também encontrar a assimilação de valores pró-Ocidentais no planalto?

Sim, o mesmo tipo de aferição de capacidades ou de potencial de intervenção aferido a partir do grau de valores ou expressões europeias, não tenho dúvida nenhuma a esse respeito.

Encontras no Huambo e noutros locais do planalto um tipo de quadro, de pessoa instruída, humilde, são outras maneiras de manifestar a sua integração, mas que tem muito cuidado de exibir uma assimilação europeia. O que ocorre aí é que não é necessariamente pela incidência portuguesa, passa a ser pela incidência americana daqueles que foram os seus tutores, mas no fim traduz-se da mesma maneira em termos de comportamento.

Então e aquele discurso da UNITA do regresso à Angola profunda…?

 Isso é um discurso de intervenção política que não tem outro fundamento. Funcionamos todos a partir de meia dúzia de lugares comuns que se adoptaram e quando penetramos nas coisas e dedicamos outro tipo de atenção percebemos que está tudo por colocar em causa.

Há comunidades negras com aspectos interessantes do ponto de vista cultural, como os Kimbari do Namibe, não é uma etnia é uma categoria sociológica. A designação de Kimbar aplicava-se a todos os negros que adoptavam o modelo cultural e mesmo económico europeu, eram os auxiliares dos tráficos vários, portanto acabava por significar africano europeizado, hoje ninguém se refere a isso, é uma categoria que hoje perdeu pertinência, porque todos os africanos se europeizaram, mas no Namibe constituiu-se um grupo a partir dos servos, dos escravos que foram entregues aos colonos europeus, muitos vieram do Brasil. Houve no Brasil nos anos trinta/quarenta do século XIX uma revolta contra comerciantes portugueses e o governo português de então enviou esses servos e escravos para o Namibe. Eles não conseguiam utilizar a mão-de-obra local para a agricultura que tentaram fazer e foram fornecendo trabalhadores, sobretudo de proveniência M’Bundu e Ovimbundu, acabando por produzir uma língua, uma modalidade linguística, uma mistura entre Kimbundu, Umbundu, línguas locais e português, que vigora ainda hoje. Foram-se especializando em ofícios vários e hoje constituem as elites locais. É uma comunidade negra diferente destas todas porque aí encontras até uma certa devoção em relação ao fado e a expressões imediatamente portuguesas, de tal modo que ninguém está de acordo que se tenha mudado o nome de Moçâmedes para Namíbe. Eu escrevi sobre isto, inclusive um artigo para a TAAG2.

Isto é um produto angolano, tal como o são estas elites crioulas. Há aqui sectores importantes que por vezes nos escapam, a Christine3 aflorou e o Michel Cahen sem cá vir também aflorou.

São sectores de mestiços produzidos neste espaço de Luanda que se podem associar ao corredor de Malange, Catete, Golungo Alto. De entre as classes dirigentes, a entourage presidencial, etc. muitos saem de lá. Há um poder e há uma solidariedade, uma coesão que se fundamenta nisso de serem Luandenses desta zona, Bairro Operário, Cruzeiro, Makuluso, etc. e comunicam uns com os outros, são cúmplices no exercício do poder.

Se olhas para o MPLA vês esse background todo de história e informação e depois verificas que, em termos de acção do presente, continua a manifestar-se, … quem vem de Benguela, os mestiços do Kwanza Sul que accionam um negócio com uma facilidade espantosa, etc. etc. Também continuamos a ver que há uma rede de Catetes, há sim senhor, que não corresponde nada às expressões de há vinte anos atrás, do princípio do MPLA, é outra coisa hoje, mas é essa realidade que toda agente dá conta que existe, mas que ninguém estudou ou trabalhou, mesmo dentro do MPLA.

Uma forma muito interessante de se entrar neste assunto é estudar os clubes de futebol, se agarrarmos no Atlético, no Sporting e agora no Progresso e no 1º de Agosto, ficas na posse de uma percepção da grelha de poder em Angola de há vinte, trinta ou mesmo quarenta anos a esta parte. O Sporting e o Atlético são um manancial. Aqui há uns anos atrás eu ia à Biker4 porque ainda estavam aí uns velhos, o velho Colosso, que era uma figura notável. Eu puxava sempre a conversa do futebol e eles falavam nas diversas pessoas envolvidas e aquilo tudo se articulava e relacionava com política, as rivalidades, o papel de grupos de futebol, etc. O próprio José Eduardo dos Santos estava muito ligado ao Futebol Clube de Luanda que era a delegação do Futebol Clube do Porto. Se tiveres tempo tenta, vais ver que com os tipos do futebol vais perceber muito da política. Se falares com muitos dos nossos políticos ligados ao futebol, sem lhes perguntares política chegas lá directo só falando de futebol.

Alguns dos nossos escritores fazem um grande esforço de se colocar nas peles e nas cabeças de vários grupos sociais, regionais, linguísticos, etc., mas até que ponto é que o conseguem e isso ajuda a perceber melhor esses diferentes génios ou o génio Angolano?

Sem fazer nenhuma apreciação à qualidade literária de vários autores, há um esforço realmente de ajudar a criar uma consonância, mas ou isso era servido por uma grande literatura que era ela que a instaurava ou então a literatura está a visar uma configuração que não existe. Expressões literárias que dêem uma noção disso é cedo ainda para se analisar, para fazer esse balanço. Em que termos é que há-de se manifestar uma expressão angolana em literatura? É através da língua portuguesa ou de malabarismos da língua portuguesa? Para isso é preciso um enorme talento, para lhe dar a volta, a volta que o Luandino lhe deu, a volta que o Mia Couto lhe deu, para isso é preciso um enorme talento, que nem é mérito da pessoa, é daquelas coisas que é imanente e é extremamente perigoso, porque a determinada altura corre-se o perigo de tornar-se num malabarismo de palavras. Penso que a literatura vive um tempo em que é cada vez mais marketing, cada vez mais escritores estão rendidos a isso, encontrei um escritor português há tempos no Brasil que me disse claramente que isto é marketing, eu sei mais ou menos aquilo que eles querem.

Também há casos angolanos. Está-se a fazer literatura angolana em Lisboa que situa a acção aqui, e para quem estiver em Lisboa ou Londres ou noutro lado até pode parecer adequado, mas quem está aqui lê e percebe que, por exemplo, se está a situar uma cena no largo do Kinaxixi, mas que não tem nada a ver com o largo do Kinaxixi, a não ser a soca da estátua, não é assim que se anda lá. Mas quem se apercebe disso são os escassos que aqui estão e que lêem, mas como são tão poucos os que lêem, passa despercebido e é dado como Angolano, e nós sabemos que não é, pode ser o que quiserem… Se um dia quiseres falar mais de literatura temos muito que conversar…5

 

Processos Políticos e Exercício do Poder


Como é que entendes o processo de centralização e concentração política em Angola, que factores lhe estão na base?

A minha opinião não corresponde de forma nenhuma a uma análise política, continuo a pensar que as formas de exercício de poder em contextos como estes não são necessariamente, ou necessariamente não são.

Quais são as dinâmicas que geram, determinam, consolidam, legitimam os regimes centralizados? Temos aqui vários factores, incidências internas e externas. Não sei exactamente de que forma é que isso emergiu daquele MPLA da luta e libertação, até que ponto foi uma necessidade num contexto de preparação dos poderes necessários para confrontar a situação colonial e posteriormente levar a cabo políticas de desenvolvimento planificado no pósindependência.

No entanto, alguns dos que hoje denunciam esses processos de centralização foram eles que os promoveram, fez parte das estratégias do movimento, da ideologia nacionalista e até de algumas estratégias pessoais desses próprios agentes. Isso reproduziu-se depois ao longo dos anos da história do MPLA e da história da República.

Penso que as modalidades de exercício de poder centralizado correspondem, por um lado, a formas de exercício do poder que têm de se adaptar às circunstâncias e, por outro lado, fazem parte de estratégias que podem não ser propriamente de quem depois centraliza e assume o centro do poder.

Julgo que em todos estes contextos africanos desde sempre a centralização foi uma necessidade, que a necessidade se exceda e passe a constituir um abuso é da própria dinâmica do exercício da política. Nós sabemos que também não há apenas uma expressão de centralização, há várias.

Eu continuo a achar que mesmo no contexto actual, do panorama político africano, fala-se em democracia e na sua implementação, mas há sempre maneira de mascarar a centralização e concentração do poder, isso são as próprias dinâmicas do exercício da política. Acho que todas as formas de exercício do poder acabam por degenerar em coisas que se traduzem na arbitrariedade do exercício do poder.

Outro dia o Kabila dizia “acusam-me de estar a exercer o poder como o Mobutu, mas será possível exercê-lo de outra maneira?”. Não respondo que sim, não digo que não, mas fico a pensar…

Fala-me da lógica no seio do poder dirigente e da forma como se consegue esta “união da grande família” na manutenção do poder.

Colocando de lado a hipótese de produzir um modelo que se adapte a todos – isso são as nossas veleidades das ciências sociais, de andarmos a produzir modelos – creio que está toda a gente muito de acordo. A transição de poderes, do poder colonial para o poder independente, havia de dar oportunidade a determinadas elites, trata-se portanto de uma questão de elites. É uma questão de determinada elite que se identifica por razões regionais, por razões de educação, por razões de solidariedades várias e depois tem lá remotamente, mas muito remotamente, um batuque ideológico, que se adaptou a esta configuração, que é a configuração de Angola e agora é uma questão de preservação desse poder. Esta é a minha opinião.

O que se passa na cabeça da elite dirigente é que passou tempo suficiente para se apossar de um poder real e há-de fazer o quanto puder para o manter, mesmo que tenha que dar umas coisas aos outros, que é o que está a fazer. O controlo mantém-se e para se manter articula-se também com o exterior, com angolanos no exterior. Existe muita gente fora, Angolanos a trabalhar no exterior para garantir o envolvimento externo, garantem uma agilidade de contactos e de negócios e de adaptações. São Angolanos que não fazem parte do contexto imediatamente interno, trabalham para Angola no exterior e beneficiam dos resultados que as elites de Angola distribuem entre si. Londres está cheio de gente dessa. É gente que hoje não saberia viver em Angola, de todo, e quando cá vêm é de visita, ficam num hotel e depois vão-se embora.

Não querendo generalizar ou caricaturar, julgo que o que se passa nas cabeças das elites dirigentes é que Angola é eles e quem quiser ser Angolano que se sujeite a isso. Não anda longe disto, Angola é eles.

Mas esta realidade é percebida por todos?

Há um abismo total entre o querer perceber ou não querer mesmo perceber, ou preferir não perceber, e as pessoas preferem não perceber, preferem não entender. Se cada um fizesse um esforço para se situar em relação a esta realidade…, mas não, não há sequer isso, fazem um esforço máximo para participarem da coisa. O esclarecimento é algo perfeitamente dispensável e julgo que não é só aqui, de uma maneira geral é assim. Há uma grande argúcia e um grande sentido das oportunidades e toda a gente sabe quando é que é altura de investir para um lado ou investir para outro. Também não vou dizer que é aí que reside a nossa força, a nossa capacidade, o nosso génio, se calhar outros nas mesmas condições reagirão da mesma maneira.

Existe um argumento que perpassa vários membros da elite dirigente segundo o qual é mais fácil surgirem alternativas de poder credíveis – tendências - dentro do MPLA do que surgirem fora do MPLA.

Estou de acordo, mas não aparecem porque as circunstâncias não o facilitam nem o estimulam e também por isso é que é cultivado um inimigo a esta dimensão. A UNITA com a dimensão que tem é algo que também tem sido estimulado. Há as tendências todas do MPLA, mas cada vez que toca a combate não há ninguém que hesite, nem eu nem ninguém, vamos embora, é uma causa comum. Isso é uma força política enorme. É um instrumento político de extrema importância e é assim que funciona.

De todos os partidos com que tenho contactado, para além do MPLA e da UNITA, o PRS deixou-me a impressão de ter um discurso muito estruturado e organizado, baseado em argumentos identitários fortes e localizados que lhes permitem uma força que não se encontra nos restantes.

São essencialmente os Tchokwe, que têm gosto pela discussão, pela disputa política, pela lógica, que depois se transforma numa lógica estranha. É muito instrutivo ler o que escreveu o Henrique Carvalho sobre as Lundas há cem anos atrás, está cheio de referências ao carácter Tchokwe e julgo que sim, que os Tchokwe têm no ethos deles o exercício da política como prática antiga e consolidada - a política em si, a resolução através da discussão, da argumentação, do negócio, do compromisso. A política vista nesses termos é uma prática Tchokwe imemorial. Os Tchokwe expandiram-se a caçar elefantes, chegavam a qualquer chefe Lunda ou Lwena e de outros lugares e faziam contratos dando uma percentagem das presas de elefantes que capturavam, com vantagem absoluta dos potentados locais. Passados dez anos nesses potentados não se resolvia nada sem a participação política dos Tchokwe e passados vinte anos eram os Tchokwe que decidiam e o potentado estava anulado. Isso é de uma enorme capacidade política, nunca com intervenção militar, só com a expressão da sua capacidade política, isso hoje mantém-se.

A nível do Sul, não encontras nenhum fenómeno equivalente?

Que eu conheça não. O Sul que eu conheço e trabalho é MPLA por estratégia, opção e acerto político, porque a grande ameaça são os do Nano6, contra os do Nano estamos todos juntos e se pudemos escolher entre ter alguém a mandar aqui ao lado ou lá longe, é melhor deixar estar lá longe, é um Mwene Puto, é uma coisa distante remota, e sobretudo não é aquele que veio tirar o boi aos teus pais e aos teus avós e com quem tens contenciosos históricos.

Sempre entendi o que chocou as pessoas a princípio, quando disse que a adesão massiva que ainda hoje se mantém destes pastores ao MPLA não corresponde a militância nenhuma, corresponde a uma estratégia de aliança. No dia em que o MPLA os trair eles também não lhe obedecem mais. Ali não se coloca sequer a criação de uma formação política localizada, o MPLA serve-lhes muito bem. É a realidade da província do Namibe e da província da Huíla. O Cunene joga com a Namíbia e tem outra configuração, o resto são os N’Ganguelas e o Kwando Kubango, que querem que os deixem em paz. O Leste é outra coisa, e é muito provável que um dia a influência do Leste, dos Kiokos, venha a incidir sobre o Kwando Kubango e o tentem agarrar. O MPLA vai-se mantendo com o corredor de Malange, a faixa costeira, umas alianças Bakongo e chega para manter o poder.

Quanto aos pastores, “sim somos angolanos porque quando temos maka temos de ir ter com o administrador e é lá na administração que obtemos o abastecimento. Se somos do MPLA? Sim, então não somos contra a UNITA? Temos que ser do MPLA”. Mas em meu entender não vai para além disto, mas não vai mesmo. Aqui em contexto urbano é diferente e também aqui ninguém tem dúvida que se a hipótese que ocorre de fazer face à UNITA, que constitui uma ameaça que toda a gente sente como tal, é apoiar o MPLA, então não há dúvida nenhuma. Não tem nenhum fundamento ideológico. Tem um fundamento étnico? Sim terá, sem dúvida. Mesmo em relação aos brancos, o único que dá garantia de ter em conta a sua condição de pessoa é o tal do MPLA, há alguns brancos na UNITA mas são daqueles brancos contra os quais nós lutámos e que são os mesmos que eu agora encontro na Namíbia, é o mesmo tipo. A minha consciência nacionalista primeira é de andar desde os dezanove anos a trabalhar no mato e comecei logo a ver muita coisa e como me repugnavam os brancos que eu via a comer lagostas na ilha ao Domingo, são destas coisas que se fazem as opções quando temos dezassete ou dezoito anos e são alguns desses que nós encontramos na bancada da UNITA, portanto há uma diferença.

O planalto central e a sua relação com a UNITA?

Essa relação passou por fases diferentes, não sei em que forma estará agora, mas se não for UNITA há de ser outra coisa que se oponha ao poder de Luanda, mesmo quando têm dedisfarçar ser de outra forma. Há de ser outra coisa que se oponha a M’Bundus, porque o domínio M’Bundu é associado ao domínio dos Portugueses e à penetração Europeia.

Mas os Ovimbundu é que normalmente são acusados de terem sido submissos aos Portugueses…

Submissos, mas que não beneficiaram da presença dos Portugueses. Os MBundu sempre tentaram extrair benefícios da presença portuguesa, os outros foram-se sujeitando.

Há aqui um problema grave e remoto do planalto central, que é o do trabalho migrante. O Planalto central sempre teve um excedente demográfico, que começou por ser absorvido pelas caravanas, depois passou a ser absorvido pelo trabalho assalariado colonial - o contrato –, sobretudo com as plantações do café no Norte, dinamizador da Angola moderna, e depois passou a ser absorvido pelos exércitos do pós-independência. Esse excedente demográfico sempre existiu. O drama do planalto central é para o próximo século. Se vem a paz, daqui a vinte anos temos outra vez excedente demográfico naquela zona e uma dificuldade de o alimentar. Do ponto de vista agrícola a produtividade naquela região já era muito baixa aquando da independência, os terrenos são muito delgados, eu fui regente agrícola.

Angola só vai conseguir extrair a sua potencialidade da indústria, da agricultura e do comércio, quando se restabelecerem os circuitos migratórios de mão-de-obra, ora isso não é nem para o meu tempo nem para o teu…

  • 1. Por se referir a alguém que já faleceu e cuja identidade também não é essencial para compreender o argumento do entrevistado, o entrevistador e editor optou por omitir o nome da pessoa em causa.
  • 2. TAAG - Empresa de Transportes Aéreos Angolanos.
  • 3. Referência à investigadora francesa Christine Messiant.
  • 4. Cervejaria antiga na baixa de Luanda, frente ao Jornal de Angola.
  • 5. Nota do Editor: infelizmente só voltámos a falar de literatura no último almoço que tivemos juntos em Luanda em Março de 2010, embora sem a extensão e a profundidade que o assunto merecia.
  • 6. Do Alto, i.e. do Planalto Central.

por Ruy Duarte de Carvalho
Ruy Duarte de Carvalho | 17 Setembro 2011 | angola, identidade nacional, movimentos migratórios