O país que nasceu meu pai, novo álbum

Este trabalho, estas palavras, estas melodias e sonoridades são originalmente o que me sobrou da perda de meu pai, da perda do meu pai e de todas as memórias que se avivaram em mim depois dessa perda. Dos lugares, dos cheiros, do tempo que tinha muito mais tempo dentro de si, mas principalmente das pessoas. Das pessoas de meu pai, assim crédulas, próximas umas das outras. Avivaram-se memórias dos casamentos de três dias em que o meu pai tocava (dj) nos quintais da cidade…

Luanda cidade que nos nasceu, que nos cuspiu e que nos renasceu tantas vezes, tantas vezes nos sentimos assim…Vivos, mais uma vez e outra.
Este disco traduz os sons e os tons e os ritmos que me acordavam enquanto dormia debaixo das mesas, os passos das pessoas na cadência da dança, o som do arrastar dos passos vistos assim do avesso.

Este disco é originalmente do avesso. Do avesso porque foi assim que comecei a sentir e a olhar a vida nestes quintais de três dias em que o meu pai era o artista da festa, o “discotequeiro” e às vezes, quando a luz bazava em tempos de recolher obrigatório, ele ficava horas contando histórias de acender os silêncios e tudo acontecia na mesma: os flirts, as amizades que se consolidavam, as que acabavam, até à próxima festa, no próximo fim-de-semana.

E do avesso porque era assim essa geração que fez a Angola livre.

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E porque nem tudo é só musica

Lembro-me de ouvir jazz, funk, música latino-americana, semba, samba, tango, baião, boleros, a rumba angolana, a rumba cubana, a bossa-nova… Era incrível essa geração e a sua abertura para o mundo. Era incrível toda a predisposição para a miscigenação, seja ela musical, poética, ou até amorosa.

Este disco é uma memória viva de toda essa geração que acreditava que seríamos “nós todos”; negros, brancos e mulatos filhos do mesmo chão, a fazer a diferença. Já éramos livres, agora faltava fazer o país de novo.
Este disco homenageia a memória de todos os pais deste país, todos aqueles que foram (muitos escolheram ir), não queriam fazer parte, não queriam assistir impotentes à metamorfose da identidade por eles libertada, quase como se tivessem sido mudados apenas os donos; grandes quadros, grandes cérebros submersos numa tristeza profunda… Deixaram-se ir de forma consciente pois não sabiam viver sem a alegria de quem sonha que um dia teria necessariamente que ser “nós todos”.

Estas músicas, estas palavras, falam destas pessoas, ou da minha memória delas.
Este disco, são eles ainda tentando falar; homenagem sentida, sincera e merecida aos pais do país que nasceu meu pai.

2013 

por Paulo Flores
Palcos | 29 Novembro 2013 | angola, música angolana, Paulo Flores, semba