KUDURO, a batida de Luanda

Sebem no documentário 'Kuduro - fogo no musseque', de Jorge António

O Kuduro é um género de música e dança emergido em Luanda no início da década de 90. O som é originado por uma fusão de influências que vão do Semba angolano ao Zouk congolês, ao Soca das Caraíbas, ou ao Techno, Hip-Hop e o House Music americanos. A esta mega-fusão rítmica são associadas letras apropriadas da linguagem oral urbana de Luanda, um calão também ele de fusão linguística sobretudo de kimbundo e português, mas também algum lingala e inglês.

A dança Kuduro, tão ou mais importante que a música, foi inspirada, segundo Tony Amado (um dos seus inventores), num filme onde o actor belga Jean-Claude Van Damme dança embriagado. Movimentos de dança angolana são associados ao Break-dance e ao Popping, em verdadeiras performances individuais ou em grupo, muito teatralizadas. Apesar de ter uma base de movimento comum, na dança kuduro prima-se a individualidade onde cada um representa uma acção própria, com forte uso de expressão facial.

O ritmo acelerado da cidade, nas suas dimensões económica, política e social, reflecte-se neste fenómeno de cultura urbana, de base rítmica também acelerada, não só no seu aspecto formal, mas também na velocidade com que diariamente re-inventa, aporta e propõe novas palavras, ritmos e movimentos.

O Kuduro é criado e produzido nos musseques de Luanda e rapidamente difundido nos Kandongueiros. Diariamente surgem novas músicas que alimentam o vocabulário de Luanda de novas dicas (expressões), novas batidas (ritmos / sons), e novos toques (movimentos). Esta criação frenética de linguagens urbanas tem uma expressão importante na sociedade angolana actual e sobretudo nos mais jovens.

Segundo o escritor angolano José Eduardo Agualusa num comentário sobre Kuduro “Talvez nunca antes em toda a história de Angola um outro fenómeno cultural tenha conseguido ganhar tanta expressão.”1

Certamente por essa razão o Kuduro tem sido alvo de tanta polémica na sociedade angolana. Uns criticam a sua forma musical por fugir à “tradição” melódica da música angolana, outros criticam a sua linguagem e mensagem agressiva, associando o Kuduro à violência e Gangs dos musseques, outros sentem algum incómodo com as suas palavras cáusticas e de crítica social. Exemplo disso é a letra da música de Dog Murras, "Angola bwé de caras":

(...) Angola do petróleo, do diamante e muita madeira
Angola do paludismo, febre tifóide e muita diarreia
Angola dos talé bosses comem sozinho e muita ambição
Angola que é da gasosa, corrupção tapa visão
Angola dos herdeiros que não fazem nada e tem bwé de massa
Angola do kota honesto, que bumba bwé e não vê nada
 (...)

Citando novamente José Eduardo Agualusa no mesmo artigo sobre Kuduro:

“Um dos aspectos mais interessantes tem a ver com a forma como se vem afirmando, não apenas à margem do poder, mas em muitos casos, contra o poder instituído.”2

 

Musseques de Luanda, espaços de resistência, inovação e criatividade

O Kuduro surge nos musseques de Luanda, onde é criado, produzido e difundido. Os CD’s gravados são vendidos pelos zungueiros (vendedores ambulantes) nas ruas da cidade e internacionalizados através da internet sobretudo no YouTube e no Myspace.

“Os musseques foram o centro de criação da música popular urbana angolana, e do imaginário da nação e da história contemporânea do país.” (Moorman, 2008: 28)3

Aí habita a maioria da população da cidade que, em fases distintas, tem sido caracterizada por um crescimento explosivo iniciado depois da 2ª Guerra Mundial e, com características e efeitos muito diferenciados, exponenciado durante a guerra civil de Angola.

“Durante a luta pela independência, os musseques foram a plataforma onde o imaginário nacional foi feito e refeito, o lugar principal de mobilização da resistência contra o Estado Colonial. Mais do que apenas uma etapa no processo da modernidade ou urbanização, os musseques foram um lugar onde várias gerações, classes, etnias, raças e sexos, conheceu e imaginou um novo mundo, nas práticas da vida quotidiana.” (Moorman, 2008: 55).

Contudo, a guerra contra o regime colonial, iniciada em 1961, foi adensando divisões internas (fortemente apoiadas no contexto político internacional da Guerra Fria) que, com a revolução de Abril em Portugal, em 1974, e o prenúncio da independência, deram origem a uma luta pelo poder entre as três forças políticas angolanas MPLA, UNITA e FNLA.

À proclamação de independência em Luanda pelo MPLA, em 1975, sem acordo pacífico com as restantes forças, seguiu-se uma guerra civil que terminou apenas em 2002, com a morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi.

Com o desmoronamento do Bloco Socialista e o fim da Guerra Fria, houve no início dos anos 90 uma série de reformas políticas e económicas em Angola, concretamente a abertura para um sistema democrático pluripartidário e uma economia de mercado livre.

Estas profundas e rápidas transformações políticas, associadas, no caso de Luanda, à progressão geométrica do crescimento demográfico, transformaram radicalmente a capital. Em 1975 a população de Luanda somava cerca de 700 mil habitantes e em 2007 ascendia os 4 milhões, cerca de 1/4 da população total do país (estimativa ONU _ Urban Agglomerations 2007).

“Os subúrbios cresceram sem parar, densificaram-se, de novas e muitas gentes vindas de muitas partes e de construções sem fim, estenderam-se devorando os campos adjacentes, encheram-se de muita azáfama, muitas relações, intenso tráfego, uma vida efervescente.” (Oppenheimer e Raposo, 2007: 106)É neste contexto que surge o Kuduro: uma capital densa, sobrelotada e caótica, de um país, em plena guerra civil, que viveu os constrangimentos políticos de um sistema partidário único e que se abre a uma liberalização económica e política. O estado diminui a interferência directa na produção cultural (concretamente deixa de suportar os grupos de música) num momento de abertura a novas influências, novas liberdades, novas tecnologias.

No panorama musical mundial, nos anos 90, vive-se a massificação da música electrónica, e em Luanda, ouve-se Hip-Hop, House Music, Techno, Rap, etc.

O Hip Hop, de grande influência no Kuduro, surgiu em Nova Iorque, no bairro  Bronx, no final dos 70, como revindicação social da juventude marginalizada da periferia, habitada essencialmente por imigrantes e afro-americanos. Não é de estranhar o impacto deste movimento nos jovens angolanos dos bairros peri-urbanos.

"As sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca. A ideia de que esses são lugares fechados – etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados pelas rupturas da modernidade – é uma fantasia ocidental sobre a alteridade: uma fantasia colonial sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como puros e de seus lugares exóticos apenas como intocados”. (Hall, 2003:  79-80)

Em Luanda surgiram grupos de Hip-Hop, uns mais underground e com maior consciência social4, e outros mais comerciais, mais agressivos e sexistas, com toda a parafernália consumista que lhe está associada (as marcas de ténis, de roupa, etc).

Mas apesar das influências, o Kuduro não é Hip-Hop. O Kuduro é um género  próprio de Luanda, espontâneo e imprevisível, resultante da fusão da cultura local e global, aquilo a que a se pode chamar por cultura Glocal.

Contrariando algumas críticas à hegemonia ocidental das culturas locais, o Kuduro pode ser um exemplo de como a tensão gerada pela globalização no encontro das culturas locais pode produzir novos factos, novas dinâmicas, novas afirmações. Como nos propõe Stuart Hall podemos fazer uma nova leitura da pós-modernidade:

“Em vez de se pensar o global como substituto do local deve pensar-se numa nova articulação entre o global e o local.” (Hall, 2003: 77)
   
Kuduro: dos musseques para os Kandongueiros, do YouTube para o mundo

Interessa destacar a importância do acesso às novas tecnologias que permitiram uma rápida difusão e proliferação do Kuduro não só a nível nacional como nas pistas de dança europeias e entre os grupos de música e Dj’s de todo o mundo.5 

As últimas décadas do século XX, foram caracterizadas pelo aumento da informação e da sua velocidade de circulação.

Estas novas possibilidades abriram um caminho fundamental na liberdade criativa e autonomia dos novos processos e dinâmicas de produção, mercantilização e difusão. Rivalizando com os processo tradicionais do mercado musical das editoras e fugindo ao controlo do estado e das instituições, estes fenómenos periféricos conseguem não só uma produção e difusão nacional em grande escala, como ainda uma internacionalização, que no caso do Kuduro, trouxe a sua legitimação: da informalidade ao mainstream.

No caso do Kuduro, a importante expressão (de adesão e polémica) na população angolana, é de extrema relevância na reconstrução e questionamento da sociedade actual.

Se, como nos diz Marissa Moorman, durante a luta pela independência os musseques foram a plataforma onde se construiu o imaginário nacional e o lugar principal de mobilização da resistência contra o Estado Colonial, na Luanda de hoje, estes espaços continuam a ser os pilares da expressão social e da construção de uma critica activa às tensões actuais.

Citando o músico angolano Paulo Flores, no documentário "Kuduro, Fogo no Musseke"6:

“O Kuduro representa uma voz de uma nova Angola. Uma Angola que quer ser ouvida, e mais que isso, tem de ser ouvida. Angola dos jovens, Angola dos bairros, da periferia... Angola que tem uma mensagem para dizer e para contar. Parece-me que a única forma de nos conhecermos a nós próprios é se tivermos esse espaço para ouvir os outros.”

 

Bibliografia

Amaral, Ilídio (1968), “Luanda (Estudo de Geografia Urbana)”, Lisboa, Memórias da Junta de Investigações do Ultramar, 2ª ser. Nº 53.
António, Jorge,  “Kuduro, Fogo no Museke” Produção Mukixe e Lx Filmes, 2007, vídeo documentário (DVD) (60 min.).
Bertrand, Monique (1998), “Villes africaines, modernités en question”, “Tiers-Monde”, volume 39, 156, pp. 885-904.
Conceição, Simone Ribeiro (2008), “Movimento Kudurista: uma nova linguagem na  Expressão Cultural Urbana de Angola”, comunicação apresentada no XI Congresso Internacional da ABRALIC “Tessituras, Interações”, Convergências, realizado na Universidade de São Paulo, de 13 a 17 de julho de 2008, São Paulo, Brasil.
Hall, Stuart (2003),  “A identidade cultural da pós-modernidade”, Rio de Janeiro, DP&A Editora, p. 07-22.
Lança, Marta (2007), “Luanda está a mexer! Hip Hop Underground em Angola”, Jornal Público, Lisboa, 06.07.2007.
Magalhães, Ana e Inês Gonçalves (2009), “Moderno Tropical – Arquitectura em Angola e Moçambique, 1948-1975”, Lisboa, Edições Tinta-da-China.
Mbembe, Achille (2001), “Formas Africanas da Escrita de Si”, artigos (online), disponível em: www.artafrica.info
__________, e Sarah Nuttall (2004), “Writing the World from an African Metropolis”, Public Culture, 16 (3) pp. 347-372.
Moorman, Marissa (2008) “Intonations: a social history of music and nation in Luanda, Angola, from 1945 to recent times,” Ohio, Ohio University Press.
Nogueira, Nok de (2009), “História do kuduro”, (online), disponível em:
http://kuduro-de-angola.blogspot.com/
Servant, Jean-Christophe (2008), “Angola: o kuduro restaura a consciência de classe”, Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa.
Oppenheimer, Jochen e Isabel Raposo [coord.] (2007), "Subúrbios de Luanda e Maputo", Lisboa, Edições Colibri e CESA.
Ribeiro, António Pinto (2009),  "À Procura de Escala. Cinco exercícios disciplinados sobre cultura contemporânea", Lisboa, Edições Cotovia.

Webgrafia

Natalia Viana, 2009, "Kuduro, a voz da periferia de Angola":
http://operamundi.uol.com.br/reportagens_especiais_ver.php?idConteudo=1517
Ikonoklasta, 2010, "Um dia da gravação, no Santuário, Sambizanga". Luanda:
http://www.youtube.com/watch?v=fBdU5noNmNI
Richardson, John E, 2002, "Towards a theory of Hip-Hop"   http://www.vanguard-online.co.uk/archive/politicsandculture/roots02c.doc
www.akwaabamusic.com/
www.myspace.com/batida
http://www.myspace.com/saborosafofa
http://www.radiofazuma.com/
http://www.dogmurras.com.br/
http://kuduro-sound-system.blogspot.com/
www.myspace.com/burakasomsistema

  • 1. Parte 2: Kuduro, a voz da periferia de Angola 10/10/2009, Natalia Viana, São Paulo http://operamundi.uol.com.br/reportagens_especiais_ver.php?idConteudo=1517
  • 2. Parte 2: Kuduro, a voz da periferia de Angola 10/10/2009, Natalia Viana, São Paulo http://operamundi.uol.com.br/reportagens_especiais_ver.php?idConteudo=1517
  • 3. Em termos musicais, o exemplo mais emblemático desta época foi o grupo N’Gola Ritmos, cujos principais iniciadores, Liceu Vieira Dias, Amadeu Amorim e Zé Maria dos Santos, foram presos, em 1959, acusados de conspiração contra as autoridades coloniais portuguesas.
  • 4. Destaca-se o estudante de filosofia MC Kapa, que se tornou um símbolo de resistência em Angola, depois de um jovem de 27 anos, ter sido morto, pela guarda presidencial, por cantar uma das música do seu primeiro álbum: Trincheira de Ideias (ou Petróleo Bruto para os piratas), 2002.
  • 5. De destacar o sucesso do grupo Buraka Som Sistema, sobretudo com a musica Sound of Kuduro (do disco Black Dimond, 2007) com a participação da artista britânica M.I.A. entre os Kuduristas angolanos: DJ Znobia, Puto Prata e Saborosa. Destaca-se também o recente álbum Kuduro Sound System, (2007) do músico francês Frederic Galliano, com a participação de Dog Murras, Pai Diesel, Tony Amado, Gata Agressiva, entre outros.
  • 6. Kuduro, Fogo no Musseke, documentário de Jorge António, Luanda, 2007.

por Francisca Bagulho
Palcos | 1 Junho 2010 | kuduro, música popular, musseque