Festival de Sines: uma explosão à última noite

O mau tempo, a crise, a aposta de agendar os nomes mais acessíveis para o primeiro fim-de-semana - tudo contribuiu para que Sines só explodisse na última noite.
Antes disso, quem olhasse, lá pela uma da manhã, para um dos horários dos concertos do Festival de Músicas do Mundo de Sines e depois levantasse a cabeça para o palco ficaria certamente confuso. Oficialmente, deveria estar ali a dupla jamaicana Sly & Robbie, magos do baixo e da bateria, mas eles tinham tocado às 23h15 no lugar de Nathalie Natiembé. Desta, por sua vez, nem sinal. Tinha-se dado aquilo a que em futebol se chama a substituição perfeita: Azizs Sahmoui e os University of Gnawa, que estavam previstos para a tarde, tinham saltado para o encerramento da noite no castelo. E deram “O” concerto do festival - um festival que até aí, por melhor música que tivesse conhecido, ainda não tinha visto corpos em agitação.


A música de Sahmoui, que é magrebino, baseia-se quase toda em instrumentos de cordas - das proverbiais guitarras à kora, passando por um guembri - quase sempre em duelo entre si. Rendilhados criam harmonias belíssimas, sendo que a beleza nem sequer é o cerne desta música que facilmente adquire contornos de rock explosivo. Tudo ali é acerca de intensidade, percussões que pulsam cada vez mais rápidas, linhas melódicas que crescem de força, tudo a subir rumo a uma explosão que nunca se concretiza, criando assim ainda mais tensão. Tensão que encontrou eco numa multidão, anteontem sim, em grande número, enchendo não só o castelo, mas também as zonas circundantes, como a Avenida da Praia, algo que tinha estado longe de acontecer nos dois dias anteriores.
Sines estava a precisar de um concerto assim, porque o cartaz deste último fim-de-semana era tudo menos óbvio, com as opções mais acessíveis já longe no fim-de-semana anterior. Não que não tenha havido bons concertos. Na quinta-feira, Vishwa Mohan Bhatt, aluno de Ravi Shankar, ofereceu um daqueles concertos que num dia apinhado teria ficado para a história. A sua slide-guitar, um instrumento tão particular que é um híbrido criado pelo próprio, soltou faíscas durante uma hora, em movimentos de ascensão e queda de pura beleza, enquanto a seu lado o quinteto Divana Ensemble percutia como quem foge à morte.
Falta de entusiasmo
No dia seguinte, sexta-feira, houve mais uma grande surpresa, as Ayarkhaan. Trio feminino vindo da Iacútia (na zona asiática da Rússia), não precisam de mais que as vozes e que o khomus, um berimbau de boca, para provocar encantamento. Não se trata de fazer canções, isto é outra coisa, música que está em directa ligação com a natureza e permanece inalterável há centenas de anos. Um concerto como o das Ayarkhaan é uma experiência quase mística e exige uma atenção rara, semelhante à pedida pela música de uma Mari Boine. Ali, entre a morrinha e a casa semicheia, o som perdia uma parte do seu encanto milenar - fenómeno que foi menos notório no concerto dos açorianos O Experimentar Na M”Incomoda, porque o seu cruzamento de electrónica com canto açoriano se revela bem dançável. A máquina, agora, parece bem afinada e seria uma pena se estes moços passassem despercebidos.
Uma boa parte de alguma falta de entusiasmo - face ao habitual em Sines - com que os músicos foram recebidos na quinta e na sexta deveu-se à casa apenas semicheia e ao tempo frio. E quando não foi assim, houve tiros no pé inesperados, como no concerto dos Tuba Project, na Avenida da Praia, quinta-feira. Enquanto avançaram pelos territórios de New Orleans, ou foram ao funk e mesmo até ao hip-hop, não só cumpriram com extremo cuidado a função de fazer dançar como mereceram palmas extra pelas harmonias dos metais. Mas depois, e sem que nada o fizesse prever, resolveram enveredar pelas baladas, o que, num concerto que começa às três da madrugada, não é boa política. A aproximação ao universo de Kenny G esfriou de imediato a juventude, o que é compreensível.
O grande dia
Mário Lúcio Mário Lúcio Também houve alguns erros de casting: Nomfusi, a sul-africana que fechou a noite de quinta do castelo, esteve mais próxima de uma Tina Turner dos anos 1980 do que de uma Miriam Makeba, que homenageou - mal. Os Dissidenten, grupo de fusão de rock com música marroquina, resvalaram algumas vezes para o excesso de azeite nas guitarras.
Pelo que o grande dia acabou por ser a noite de sexta-feira, única em que aquela mistura geracional e de classes típica de Sines se fez sentir, em que a electricidade fluiu no ar. Ajudou ter tido Mário Lúcio, o ex-líder dos Simentera a abrir a noite. Apostado numa carreira a solo, Lúcio, senhor de uma grande voz, foi o primeiro a pôr as gentes a darem-se ao abanico, mercê dos tremendos ritmos que saltavam da sua guitarra. Lúcio tem vindo a dar a conhecer géneros cabo-verdianos que têm permanecido à sombra das mornas e das coladeras e foi curioso verificar a boa recepção que aquela música mais rude teve.


E Sly & Robbie, claro, podiam ter estado ali a noite inteira. Na realidade, nem precisavam de ter trazido mais músicos: bastava ficar ali a apreciar a ligação entre cada corda do baixo e a tarola ou os pratos-de-choque, cada mudança rítmica. Fizeram aquilo a que se chama um espectáculo em ritmo de cruzeiro: uma série de temas clássicos do rocksteady, sempre em velocidade de cruzeiro, sempre no alvo.
A coisa acabou em apoteose com a música frenética dos Kumpania Algazarra - que por vezes parecem estar a fazer a banda- sonora de um desenho -animado criado por um sujeito viciado em anfetaminas - mas o grande momento mágico já tinha passado graças ao improvável Aziz Sahmaoui. Felizmente, ainda a tempo.

publicado no suplemento Ipsilon do jornal Público 1/8/2011

por João Bonifácio
Palcos | 6 Agosto 2011 | festival, Mário Lúcio, músicas do mundo, Sines