Da injustiça da escravidão dos negros, considerada em relação aos seus senhores - PRÉ-PUBLICAÇÃO

Reduzir um homem à escravidão, comprá‑lo, vendê‑lo, retê‑lo na servidão, tudo isso são verdadeiros crimes, e crimes piores que o roubo. Com efeito, esbulha‑se o escravo não somente de qualquer propriedade mobiliária ou fundiária, mas da faculdade de a adquirir, da proprie­dade do seu tempo, das suas forças, de tudo o que a natu­reza lhe deu para conservar a sua vida ou prover às suas necessidades. A este mal junta‑se o de retirar ao escravo o direito de dispor da sua pessoa.


Ou não há moral de todo, ou é necessário convir neste princípio. Bem pode a opinião não estigmatizar este tipo de crime, bem pode a lei do país tolerá‑lo, nem a opinião nem a lei podem alterar a natureza das acções: e mesmo que esta opinião fosse a de todos os homens e o género humano reunido tivesse, a uma só voz, aprovado esta lei, tal crime permaneceria sempre um crime.

No que se segue, compararemos frequentemente com o roubo a acção de reduzir à escravidão. Estes dois cri­mes, embora o último seja muito menos grave, têm gran­des relações entre eles; e como um sempre foi o crime do mais forte, e o roubo o do mais fraco, encontramos todas as questões sobre o roubo resolvidas de antemão, e de acordo com os bons princípios, por todos os moralistas, enquanto o outro crime nem sequer tem o seu nome nos seus livros. É necessário exceptuar, contudo, o roubo à mão armada, que se chama conquista, e outras espécies de roubos em que é igualmente o mais forte a esbulhar o mais fraco. Os moralistas também fazem vista grossa a estes crimes, bem como o de reduzir seres humanos à escravidão.

ii razões alegadas para desculpar a escravidão dos negros

Diz‑se, para desculpar a escravidão dos negros compra­dos em África, que estes infelizes são ou criminosos con­denados ao derradeiro suplício, ou prisioneiros de guerra que seriam executados, não fossem eles comprados pelos Europeus.

De acordo com este raciocínio, alguns escritores apresentam‑nos o tráfico dos Negros como sendo quase um acto de humanidade. Mas observaremos:

1. Que este facto não está provado e nem sequer é vero­símil. O quê? Antes de os Europeus comprarem os Negros, os Africanos degolavam todos os prisioneiros! Matavam não somente as mulheres casadas, como era, diz‑se, outrora uso entre uma horda de ladrões orientais, mas até as raparigas não casadas, coisa nunca antes relatada acerca de nenhum povo. O quê? Não fôssemos nós buscar negros a África, e os Africanos matariam os escravos que destinam agora a ser vendidos! Cada um dos dois parti­dos preferiria espancar até à morte os seus prisioneiros a trocá‑los! Para acreditar em factos inverosímeis são necessários testemunhos idóneos, e aqui temos apenas os das pessoas empregadas no comércio dos Negros. Nunca tive a ocasião de os frequentar, mas havia, entre os Romanos, homens que se consagravam ao mesmo comér­cio, e o seu nome é ainda uma ofensa.1


2. Supondo que se salva a vida do negro que se com­pra, não seria menos criminoso comprá‑lo, se fosse para revendê‑lo ou reduzi‑lo à escravidão. Seria uma acção igual à de um homem que, depois de ter salvo um infeliz perse­guido por assassinos, o roubasse. Ou então, se supusermos que os Europeus levaram os Africanos a deixar de matar os prisioneiros, seria a acção de um homem que tivesse conseguido dissuadir salteadores de assassinarem os tran­seuntes, e os tivesse persuadido a satisfazerem‑se com roubá‑los com ele. Dir‑se‑á, numa ou noutra destas supo­sições, que este homem não é um ladrão? Um homem que, para salvar outro da morte, lhe desse do seu necessário, estaria sem dúvida no direito de exigir uma compensação; poderia adquirir um direito sobre os bens e até sobre o trabalho de quem salvou, descontando, contudo, o que é necessário à subsistência do obrigado: mas não poderia sem injustiça reduzi‑lo à escravidão. Podem adquirir‑se direitos sobre a propriedade futura de outro homem, mas nunca sobre a sua pessoa. Um homem pode ter o direito  de forçar outro homem a trabalhar para ele, mas não o de o forçar a obedecer‑lhe.

3. A desculpa alegada é tanto menos legítima, quanto é, pelo contrário, o infame comércio dos bandidos da Europa que faz nascer entre os Africanos guerras quase contínuas, cujo único motivo é o desejo de fazer pri­sioneiros para os vender. Frequentemente, os próprios Europeus fomentam estas guerras mediante dinheiro ou intrigas, de modo que são culpados não somente do crime de reduzir homens à escravidão, mas ainda de todos os assassínios cometidos em África para preparar este crime. Têm a arte pérfida de excitar a cupidez e as paixões dos Africanos, de levar o pai a entregar os filhos, o irmão a trair o irmão, o príncipe a vender os súbditos. Deram a este infeliz povo o gosto destrutivo dos licores fortes. Comunicaram‑lhe este veneno, que, escondido nas florestas da América, se tornou, graças à activa avi­dez dos Europeus, um dos flagelos do globo; e ainda se atrevem a falar de humanidade!

Ainda que a desculpa que alegámos umas linhas acima desculpasse o primeiro comprador, não poderia descul­par nem o segundo comprador nem o colono que fica com o negro, porque não têm agora o motivo de subtrair à morte o escravo que compram. São, em relação ao crime de reduzir à escravidão, o que é, em relação a um roubo, aquele que divide o saque com o ladrão, ou antes, o que encarrega outrem de um roubo, e que compartilha com ele o produto. A lei pode ter motivos para tratar diferen­ciadamente o ladrão e o seu cúmplice, ou o seu instigador; mas, em moral, o delito é o mesmo.

Por último, esta desculpa é absolutamente nula para os negros nascidos na fazenda. O senhor que os cria para os deixar na escravidão é criminoso, porque o cuidado que lhes dedicou na infância não pode dar‑lhe qualquer apa­rência de direito sobre eles. Com efeito, porque tiveram necessidade dele? É porque arrebatou aos seus pais, com a liberdade, a faculdade de cuidar do seu filho. Será, pois, pretender que o primeiro crime pode dar direito a come­ter o segundo. Aliás, suponhamos mesmo que a criança negra foi abandonada livremente pelos seus pais: pode o direito de um homem sobre uma criança abandonada que criou ser o de a reduzir à escravidão? Daria uma acção de humanidade o direito a cometer um crime?

A escravidão dos criminosos legalmente condenados também não é legítima. Com efeito, uma das condições necessárias para que a pena seja justa é que seja determi­nada pela lei, quer quanto à sua duração, quer quanto à sua forma. Assim, a lei pode condenar a trabalhos públicos, porque a duração do trabalho, o alimento, as punições em caso de preguiça ou revolta, podem ser determinados pela lei; mas a lei nunca pode sentenciar um homem a ser escravo de outro homem em particular, porque a pena, dependendo então em absoluto do capricho do senhor, é necessariamente indeterminada. Aliás, é tão absurdo como atroz atrever‑se a aventar que a maior parte dos infelizes comprados em África é constituída por crimi­nosos. Será que se teme que o desprezo por eles não seja suficiente, que não sejam tratados com bastante dureza? E que como é que se pode supor a existência de um país onde se cometessem tantos crimes, e onde, no entanto, se fizesse uma justiça rigorosa?

iii

da pretensa necessidade da escravidão dos negros, considerada em relação ao direito que dela pode resultar para os seus senhores

Pretende‑se que é impossível cultivar as colónias sem os negros escravos. Admitiremos aqui esta alegação, supo­remos que esta impossibilidade é absoluta: é claro que não pode tornar a escravidão legítima. Com efeito, se a necessidade absoluta de conservar a nossa existência pode autorizar‑nos a lesar o direito de outro homem, a violência deixa de ser legítima no preciso momento em que esta necessidade absoluta cessa igualmente: ora, não está aqui em causa este tipo de necessidade, mas apenas a perda da fortuna dos colonos. Assim, inquirir se este interesse torna a escravidão legítima é inquirir se me é permitido conservar a minha fortuna mediante um crime. A necessidade absoluta que eu pudesse ter dos cavalos do meu vizinho para cultivar o meu campo não me daria o direito de lhos roubar; mas então porque teria eu o direito de o obrigar a ele próprio, pela violência, a cultivar para mim? Esta pretensa necessidade não altera, pois, nada aqui, e não torna a escravidão menos criminosa por parte do senhor.

 

REFLEXÕES SOBRE A ESCRAVIDÃO DOS NEGROS 
Tradução e prefácio
João Tiago Proença

ANTÍGONA


 

Em 1781, o iluminista Condorcet escrevia um violento libelo contra a escravatura, que se converteria numa obra clássica de denúncia. Ensaio intemporal, famoso pela posição veemente do autor e publicado sob pseudónimo, «Reflexões sobre a Escravidão dos Negros» é, em última instância, uma condenação das injustiças e um apelo ao fim da indiferença social, para que cessem os ultrajes aos princípios que norteiam a Humanidade. A presente edição inclui ainda os textos «Ao Corpo Eleitoral, contra a Escravidão dos Negros», destinado a apaziguar os receios económicos dos colonos da época, e «Sobre a Admissão de Deputados dos Plantadores de São Domingos à Assembleia Nacional», que põe em causa o direito dos esclavagistas à representação parlamentar.

 

  • 1. Leno começou por significar apenas mercador de escravos, mas como estes mercadores vendiam belas escravas aos voluptuosos de Roma, a designação revestiu‑se de outro significado. Ora aqui está uma conse­quência necessária do ofício de mercador de escravos: aliás, mesmo nos países suficientemente bárbaros para que tal profissão não fosse considerada criminosa, nunca ela deixou de ser considerada infame.
Translation:  João Tiago Proença

por Condorcet
Mukanda | 21 Janeiro 2014 | escravatura, negros