Ação "Salazar Caiu"

O partido português «Partido dos Mortos» realizou ações performativas a 3 de agosto, data em que António de Oliveira Salazar caiu da cadeira (em 1968m tendo morrido em 1970). Aqui, não se trata de uma queda metafórica, mas literal — um acidente doméstico, uma contusão na cabeça de um idoso, que levou à rápida decomposição e desmantelamento do regime do Estado Novo. Segundo uma versão, Salazar caiu de uma espreguiçadeira; segundo outra, escorregou no banheiro. Os defensores da segunda versão afirmam que a máquina de propaganda queria apresentar à imprensa a imagem de um ancião sábio, lendo o jornal numa espreguiçadeira e refletindo sobre o destino do Estado, e não a de um velho nu e molhado, que escorregou numa poça na casa de banho.

Não se sabe qual versão do incidente é verdadeira, mas é evidente que os regimes totalitários se baseiam na censura, estetizam os heróis e as narrativas metafísicas. O «Partido dos Mortos» realizou performances no forte de Santo António da Barra e na rua que ainda hoje se chama Doutor Oliveira Salazar. Curiosamente, 51 anos após a Revolução das Cravos, em Portugal, mais de 17 topónimos têm o nome de Salazar e mais de 700 têm nomes de figuras do regime do Estado Novo. O que fazer com essa memória política? É necessário demolir monumentos e renomear nomes geográficos? A questão é complexa, mas a situação atual exige claramente reflexão e comentários.

Os horizontes éticos estão a mudar: aos chamados de descobridores e exploradores, vemos agora como colonizadores e traficantes de escravos; os «pais da pátria» e os nobres cavaleiros — psicopatas que lutavam pelo poder e pelo dinheiro a qualquer custo, sem se importarem com a vida alheia. A história precisa de ser revista. É um trabalho a ser feito para não perdermos a liberdade e não nos tornarmos cúmplices de novos crimes.

O grupo artístico «Partido dos Mortos» foi formado na Rússia em 2017; os seus membros criaram várias performances, trabalhando com o tema da necropolítica do regime de Putin e do seu partido. O artista e membro do grupo Ivan Zagibly descreve a situação na Rússia: «A ditadura não surge instantaneamente; ela dura vinte anos. Primeiro, os meios de comunicação passam para o controlo total do partido, depois — o tribunal e o poder legislativo; as ONGs são fechadas; novas leis que restringem os direitos são aprovadas; recursos independentes da Internet são bloqueados; o número de presos políticos cresce. A maioria das pessoas não percebe isso: a economia cresce, os salários aumentam, todos se acostumam. É semelhante ao alcoolismo: primeiro, torna-se normal beber todos os dias, depois, semanas a fio, e depois viver em curtos intervalos sombrios entre uma bebedeira e outra. Em cada etapa, parece que tudo ainda está sob controlo, e entram em ação a justificação e a normalização do estágio atual de intoxicação.

Após o colapso da URSS, a Rússia passou foi do capitalismo selvagem e do «apagão» do poder, quando o controlo passou para grupos criminosos, a um Estado autoritário rígido, onde tudo é controlado a partir do centro através da repressão, censura e propaganda. Nesse contexto, ocorreu a reabilitação de Estaline: surgiram porta-vozes na mídia afirmando que as vítimas do Gulag foram menos numerosas, que as repressões afetaram apenas criminosos e que o terror pode ser justificado pelo crescimento económico e pela «estabilidade».

Narrativas semelhantes são visíveis não apenas na Rússia: em muitos países, as forças políticas manipulam o público através do ressentimento, voltando o olhar para o poder e as conquistas perdidas, sem mencionar o seu preço. Daí surge a pergunta: as ações carnavalescas do «Partido dos Mortos» não desvalorizam a expressão política? A resposta depende do público. Num contexto museológico ou académico, a expressão pode dissolver-se no capital simbólico, mas para o grande público o gesto artístico funciona como um discurso direto, ainda que ingénuo, ou como um meme. Hoje em dia, os memes e os tweets são muitas vezes mais eficazes do que os manifestos e os discursos em tribunas.

O próprio «Partido dos Mortos» tornou-se mídia: milhares de pessoas seguem os seus canais nas redes sociais, e qualquer pessoa pode criar um crânio «memético» com uma placa de texto e inserir a sua declaração na moldura do partido. É interessante comparar as suas ações com as obras de Artur Barrio, dedicadas às vítimas da ditadura. Na série Situacão T/T, 1 Barrio espalha pela cidade pacotes ensanguentados com carne e ossos, confrontando os transeuntes com a realidade fisiológica da tortura no quotidiano, e não nas páginas dos jornais. Esses pacotes não podem ser chamados de memes: eles provocam uma situação nas ruas, na qual a polícia, os bombeiros e transeuntes casuais se tornam participantes.

A performance «Partido dos Mortos», dedicada à queda de Salazar, não cria uma situação de rua; a sua documentação é publicada nas redes sociais em formato de memes, o que reflete o trabalho dos partidos políticos modernos. De acordo com fontes abertas, Donald Trump gastou cerca de 45 milhões de dólares em publicidade nas redes sociais como parte da campanha de 2024 — um valor provavelmente subestimado, uma vez que parte das compras foi feita através de estruturas terceirizadas que promoviam posts sobre temas criminais envolvendo migrantes ou publicações de blogueiros de extrema direita.

Se a política migra para a Internet, o que fazer com a hipótese de que a Internet é o «reino dos mortos»? Em primeiro lugar, a Internet lembra um arquivo ou um cemitério: grande parte do conteúdo foi criado por pessoas já falecidas ou organizações extintas; grande parte do tráfego é gerado por bots, rastreadores e IA. Assim, o «Partido dos Mortos» simula uma «política zumbi» no «reino dos mortos».

Às vezes, as ações do grupo parecem mais rituais mágicos do que ativismo. No forte de Santo António da Barra, por exemplo, apareceu a mensagem «Putin julga que ainda governa URSS» — uma reinterpretação do título da última entrevista de Salazar, onde o jornalista do L’Aurore observa que o ditador vive no seu próprio mundo e está convencido de que ainda governa o país. Este gesto, aparentemente sem sentido, reúne coincidências de tempos, lugares, fluxos de poder e loucura num único ponto — um gesto de desespero ou um ritual realizado segundo regras obscuras, na esperança de provocar uma nova coincidência e derrubar mais um ditador, físico ou metafórico.

Além desta inscrição, outras frases foram vistas nas placas…

Deus, Pátria, Família, Trabalho, Morte;

A Ditadura Pode Ressuscitar, As Suas Vítimas Não;

Nomes Para As Vítimas, Não Para Os Assassinos;

Os Mortos Não Têm Chefes E Os Vivos Não Precisam Deles;

O Patriarcado Tem De Cair;

A Ditadura Tirou Férias, Mas Pode Voltar;

A Ditadura Chega Devagar; Podemos Não Reparar Enquanto Nos Envenenamos;

Chega De Justificar Ditadores Com O Sucesso Económico;

As Ambições Imperiais Fazem Mortos;

Para Cada Ditador, Um Futuro Escorregadio;

Mais Ditaduras = Mais Mortos;

 

Ricardo de Kores

 

 

por Partido dos Mortos
Mukanda | 4 Agosto 2025 | Partido dos Mortos, Salazar