Uma voz de(s)colonial na paisagem lisboeta, notas em torno de "Não são águas passadas"

Na cena de abertura do curta-metragem de Viviane Rodrigues Não são águas passadas (2025), a câmera se fixa sobre o ritmo das águas que vem e voltam em uma praia qualquer. Como a lembrar de que a memória afro-diaspórica, exigência moral de uma travessia forçada do Atlântico, é um gesto  sem fim, incessantemente retomado sobre fundo de imponderabilidade. De fato, a atitude mais produtiva perante a história parece ser aquela que implica numa exploração inconclusa, num trabalho continuado junto às ressurgências, às sobrevivências. Como se lê em um texto interessado em fazer falar uma particular experiência vivida junto aos restos da história:

“A pedagogia da história é, antes de mais nada, compreender que uma coisa passou e no entanto não passa (isto é, continua travada em nossas gargantas e a atuar em nossos espíritos). É aprender a saber o que é o passado, como isso passou e em que medida se passou em nós e aí ficou travado. Para isso é preciso aprender a olhar os vestígios, a ler os arquivos, a escavar o solo do tempo.”1

Naky Gaglo,Naky Gaglo,

No curta-metragem Não são águas passadas, trata-se sobretudo do enfrentamento da paisagem urbana considerada em sua ambivalência crítica. A Lisboa mostrada pelo guia de turismo Naky Gaglo, imigrante togolês, é a um tempo lugar de passada ignomínia escravocrata, devidamente escamoteada pelos monumentos da antiga grandeza lusitana, e zona de uma errância do olhar implicado em resgates históricos imponderáveis. Trata-se, pois, de fazer um filme a partir desse imponderável; dotar de uma forma política a paisagem fotogênica da Lisboa embelezada pelo dinheiro da comunidade europeia; de uma forma capaz de tornar visível de algum modo a cena decantada de uma violência  histórica que perdura na sociedade, ainda que na forma de esquecimento. Nos deslocamentos que a cineasta propõe o Padrão dos Descobrimentos é silencioso interlocutor de uma voz de(s)colonial que procura por outras versões. À vazante dessa Lisboa monumentalizada, a câmera subitamente se desloca a Lagos, ponto de partida do comércio escravagista, para registrar um cemitério de escravos desprovido de memorial, sob o qual se assentou um clube de golfe. O tom é de desconforto e de desalento perante os ausentes da história.

De retorno a Lisboa, sempre pautada pela voz de ponderadas explicações de Naky, a diretora decide não filmar o crime propriamente, não traz à tona os registros do massacre histórico, mas se demora na paisagem, silenciosamente matizada pela arquitetura vestigial do comércio de escravos. Ali estão o mercado dos corpos, o cais que os recebia, os lugares de seus martírios punitivos, o promontório de onde os corpos eram lançados no chamado “poço dos negros”. Não há, contudo, em todos esses locais, nenhum monumento rememorativo da escravidão. A modernidade encobre tudo, ainda que o protagonista arrisque afirmar que “é fácil imaginar”. “Para recordar é preciso imaginar”, apregoa o historiador2, convicto de que a imagem surge no momento em que a palavra parece inócua em seu viés documental. A imaginação como gesto político explica porque a câmera de Viviane parece procurar por pedaços remanescentes da história.  Um diálogo com os restos, por vezes com o vazio, mesmo da palavra.

Em nenhum momento, contudo, o espectador sente que a diretora entendeu roteirizar, muito menos ficcionalizar, uma investigação. A voz de Naky é explicativa, didática, mas Viviane Rodrigues, talvez inconscientemente,  escolheu tocar na questão crucial do extracampo, na necessidade de perseguir o invisível no próprio visível. Por vezes, sua câmera demora-se em algum aspecto da cidade em clara distonia com o que seu protagonista conta em off. É como se o filme evitasse  uma corriqueira visão saturada e centrípeta do mal. Nesse sentido, Não são águas passadas parece movimentar uma rítmica outra que não aquela das verificações assertivas da história como patrimonialização da cultura . Há, na verdade, certa cumplicidade entre voz e paisagem. Filmar tal cumplicidade visa informar o olhar mostrando o espaço que a cineasta e o espectador, por sua vez,  compartilham com a ação histórica criminosa, a fim de que  se possa, cada qual, reconstruir seu  lugar  particular de resposta e de ação. “O que é informar  um olhar?”, se pergunta Marie-José Mondzain em um ensaio raivoso em torno da perda  de força vinculante das imagens atuais. E a filósofo apressa-se em responder que informar um olhar é “dar sua forma à desordem ao criar a cena de sua visibilidade em conformidade com uma indeterminação radical, isto é, capaz de oferecer sua liberdade à inteligência e à sensibilidade do espectador”3.

Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025

Não são águas passadas não deixa de ser uma proposta fílmica de uma partilha política; em lugar da militância e da tomada de partido, o curta-metragem constrói a “cena onde o visível e o audível  se dão em partilha”. Para tanto, esclarece Mondzain, é preciso um trabalho de deslocamento do “núcleo  brutal daquilo que ocorreu”, modo de ampliação  do quadro em que aconteceram  as coisas  de maneira a permitir “o acesso ao que está invisivelmente presente no coração do evento”. Em outros termos, compete ao filme (à representação em geral) dar abrigo a um espaço comum, onde convivem memória e esquecimento, reivindicação e indiferença. Evitar a imagem panfletária dos corpos vilipendiados não significa exonerar os agentes da ignomínia da responsabilidade pelos delitos cometidos,  mas de dar  ao olhar e à memória coletiva uma consciência mais aguda de um mundo comum onde são compartilhados  sentimentos e olhares por vezes antagônicos. A reparação história prescinde das imagens patéticas. Uma vitrine aburguesada, com manequins de mulheres brancas  na Rua das Pretas de Lisboa, imagem focalizada em Não são águas passadas, talvez diga mais sobre uma cena imaginária das tensões contraditórias que o presente parece  assegurar em sua turbulenta heterogeneidade do que propriamente um registro direto da injustiça histórica. A consciência política há de se nutrir de  visualizações, ainda que indiretas, fortuitas, dos regimes de afetos  que fazem coabitar  os operadores  da reparação e do esquecimento. 

Nesse sentido, não parece desprovido de interesse evocar aqui a atitude do fotógrafo brasileiro Eustáquio Neves, afrodescendente,  diante da paisagem do Cais do Valongo, sítio arqueológico no Rio de Janeiro reconhecido pela UNESCO em 2013 como herança da memória da diáspora africana no mundo. Em seu ensaio fotográfico Valongo: cartas ao mar,  de 2015-2016, Neves prescinde do registro indicial das ruínas históricas. Pode parecer uma atitude paradoxal, mas não se trata apenas de interrogar o objeto de representação, mas de fazer uma crítica dos valores de uso da representação. O que implica admitir que o passado registrado revela-se insuficiente à sua própria compreensão. O artista, em sua processualidade sui generis, parece admitir uma tensão existente em seus objetos, uma necessidade de anacronismo interno a eles, como se requeressem seu desdobramento nos tempos presentes. A morte da memória do lugar, reurbanizada e revalorizada por conta mesmo do achado arqueológico, repete exclusões passadas. Razão por que Eustáquio Neves prefere aproximar os navios negreiros e a superlotação do transporte público e das moradias da periferia, ocupadas pelos trabalhadores de hoje, na sua maioria da raça negra. Como bem mostrou Walter Benjamin, por meio do Trauerspiel barroco, a desconstrução da representação acompanha uma crítica do poder não menos radical. Valongo: cartas ao mar revela uma visão da história diacrônica e arruinada que, benjaminianamente, a vê como uma repetição e reiteração do poder excludente. A fotografia assim postada de certo modo deslegitima um determinado cronotopo. A fixação da fotografia não é mais garantia de eternidade ou de assimilação regrada do tempo e espaço históricos. Como “cartas ao mar”, contam com respondentes casuais, de fortuna, a suas “mensagens” (as aspas aqui se impõem). Indiretamente, elas retomam a Erfahrung benjaminiana, experiência que se desdobra, viaja (em alemão, viajar se diz fahren), anseia por comunicação e comunidade.

Pergunte-se, pois: as imagens  aumentam ou diminuem nosso poder de agir? Na cineasta Viviane Rodrigues, o crime desaparece de campo e é seu extracampo, a paisagem, que se torna memória sem fim das crises  invisíveis. A questão do horror se desloca para a fala de Naky e seu olhar itinerante pela capital da antiga escravidão, hoje admirada pelos turistas. A paisagem é interlocutora silenciosa de compatibilidades perversas que tornam os gestos da exclusão inseparáveis daqueles da hospitalidade mercantil. Mercados distintos do olhar disputam a primazia. Deste lado da câmera, o espectador avertido sabe que o filme combate justamente as falsas partilhas culturais bem como a fetichização da memória. Nesse tocante, talvez se possa concluir que Não são águas passadas é exemplar do modo como às obras de arte não se pode pedir lições de moral; aos dispositivos críticos a tomada de consciência e/ou um sentimento de culpa. Diga-se, uma vez mais: a voz didática de Naky aparece confrontada pela inércia silenciosa da paisagem filtrada pelo olhar da cineasta.Talvez se possa arriscar, aqui, falar de um conflito de dois regimes de sensorialidade, onde averiguar a eficácia efetiva daquelas imagens que se oferecem ao espectador. Uma redistribuição do visível e do invisível, da palavra e do silêncio, como apregoa Jacques Rancière para a emancipação do espectador, para além “de qualquer relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado”4.

Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025

Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025Fotograma de Não são águas passadas, de Viviane Rodrigues, 2025

  • 1. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 100.
  • 2. DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 43, 2020, p.51-52.
  • 3. MONDZAIN, Marie-José. Confiscação das palavras, das imagens e do tempo. Trad. Pedro Corgozinho. Belo Horizonte: Relicário, 2022, p. 90.
  • 4. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, p.2014, p. 58.

por Osvaldo Fontes Filho
Cidade | 17 Outubro 2025 | Lisboa, Naky Gaglo, presença africana