Sem Sol - Regresso à Guiné-Bissau

Em “Sans Soleil”, um homem conta as viagens que fez e as coisas que viu. Como se fosse uma longa carta, este filme de 1982 tem no seu autor – Chris Marker – o remetente da mesma. Sans Soleil é a posta-restante das imagens e memórias de uma volta ao mundo. O homem e a sua câmara estiveram em muitos lugares: na Islândia, no Japão, na América, em Portugal, Cabo Verde e na Guiné-Bissau. O homem regressou a esta terra africana e aos seus arquipélagos para fazer uma pergunta. “Porque é que um país tão pequeno e tão pobre havia de interessar o mundo? Porque eles fizeram aquilo que podiam. Libertaram-se.” Foi nos mercados de Bissau que encontrou uma resposta, quando as mulheres o olharam de igual para igual. “Mas os problemas começaram e continuaram, e ainda continuam. Problemas pouco excitantes para os romantismos revolucionários: trabalhar, produzir, distribuir, vencer o cansaço da guerra, as tentações do poder e dos privilégios.” No conforto do seu mundo,  Marker  sabia que não era possível entender a fome e a sede. Mesmo assim, era preciso “olhar para trás” . Voltar às suas memórias para construir outras novas.

Chris Marker, Sans Soleil, 1983 Chris Marker, Sans Soleil, 1983

Hoje, no regresso a esse lugar, o problema continua a ser o mesmo. “Cinco Áfricas/Cinco Escolas”, a representação portuguesa na 8ª Bienal de Arquitectura de São Paulo, reflecte as diferentes realidades dos países africanos cuja língua oficial é a portuguesa. Para  cada um deles, um protótipo de escola desenvolvido por outras tantas equipas de arquitectura. Para a Guiné-Bissau, Pedro Maurício Borges projectou uma Escola Básica na cidade de Cacheu. Num contexto de pobreza extrema, a possibilidade de construir uma escola será uma acção suficiente para suspender qualquer outro tipo de consideração crítica. Não obstante, para lá do eventual valor humanitário da iniciativa, fica a arquitectura. Num lugar onde ela se cinge – como tudo o resto – ao limiar do que existe, é necessário fazer com pouco. Mas também com muitas outras coisas: com as memórias de um país que interessou o mundo.
A 26 de Julho de 2009, Pedro Maurício Borges partiu para a Guiné-Bissau acompanhado dos seus colaboradores, Filipe Ferreira e Paulo Vaz. Durante os cinco dias da sua estadia visitaram o local do projecto, contactaram os principais interlocutores e definiram o programa da escola. A intervenção do Embaixador de Portugal, Doutor António Ricoca Freire, e do Governador da Região do Cacheu, Coronel Pedro Pereira Barreto, tornou real esta possibilidade. A 29 de Julho de 2009 foram anunciados os resultados da segunda ronda das eleições presidenciais do país, que decorrera três dias antes. Com a recente tomada de posse do seu vencedor – Malam Bacai Sanhá  – nada mais resta esperar que a urgente pacificação da Guiné-Bissau. Talvez uma nova escola básica para as suas crianças possa ser um pequeno sinal disso mesmo.

A cidade de Cacheu tem menos de dez mil habitantes e fica no noroeste, ao largo do rio com o mesmo nome. Na outra margem, para lá de São Domingos, está o Senegal. Foi em Cacheu que os portugueses estabeleceram a sua primeira feitoria no território, no ano de 1588. Durante um século serviu como entreposto de mercadorias e escravos, exportados para a Metrópole, Ultramar e Américas. Desses tempos resta o fortim, construção militar junto à foz do rio. Como num romance de Joseph Conrad, o estuário e os tarrafes  lembram ainda essas partidas e chegadas. Como noutras pequenas cidades – Bolama, Bissorã ou Canchungo – o núcleo urbano de Cacheu é muito pequeno e disperso. Regra geral, as casas e os edifícios estão dispostos de forma aleatória por entre extensões de mata e arvoredo.
A Escola Básica será implantada no Bairro do Campo, para sul da costa, onde se encontram também a Escola 25 de Junho (em desuso), a Escola Bartolomeu Simões Pereira e a Escola Chinesa. Executada inteiramente sem materiais nem mão-de-obra guineense, esta oferta do Governo da República Popular da China não deixa também de ser um exemplo do seu “capitalismo avançado.” A nova Escola Básica situa-se depois deste conjunto, junto a três pavilhões dispostos em U que a comunidade local construiu (um dos quais em ruína) e a uma mata de cajueiros. É ladeada pelo cruzamento de dois caminhos, um que atravessa a mata na direcção este-oeste, e outro que passa por um campo de futebol (a reposicionar) na direcção norte-sul. O programa inclui seis salas de aula, uma sala para a Oficina da Língua Portuguesa (no âmbito do PASEG ), recreio coberto, refeitório com cozinha, latrinas e cisterna. Inclui ainda uma casa para o director, de tipologia T2. Com esta habitação, um professor residente pode garantir a vigilância e a manutenção do edificado.  

Porque a Escola Básica deve ser inteiramente executada com materiais e mão-de-obra guineense, foi feito um levantamento dos recursos disponíveis. As contingências determinaram uma configuração genérica, constatada em muitas outras construções no país. Uma plataforma de terra compactada é contida por blocos de betão e nivelada com uma betonilha. O arranque das paredes também é feito com blocos de betão, aos quais se sobrepõem blocos de adobe (ou taipa). Plataforma e paredes são da cor da terra, avermelhada. A cobertura tem uma estrutura de tubos de ferro (ou pau de cibe ) e é forrada a chapa de zinco ondulada. Ela projecta-se para lá das paredes e cobre toda a plataforma, onde tubos de ferro verticais suportam o beirado. Portas e portadas fecham os vãos. Não existem caixilhos no mercado e o seu uso não se aconselha, por risco de furto ou dano.

A Escola Básica no Cacheu, de Pedro Maurício Borges, tem planta triangular, sendo a construção de cada um dos lados idêntica à descrição anterior. Um lado fica para norte, enquanto os outros dois convergem para a entrada a sul. Junto a ela, a casa do director. O recinto é separado do exterior pela forma oval de uma vedação (sebe), na qual o triângulo da escola se inscreve. Dos lados da entrada ficam as salas de aula, separadas entre si. Do outro, a Oficina da Língua Portuguesa, o refeitório e o recreio coberto. Os topos destes pavilhões são em grelha de tijolo, excepto na zona do recreio coberto. Aqui e à volta das salas, por debaixo do telhado de chapa, as crianças podem brincar. Sem sol.
O clima, muito quente e húmido, explica a construção e a implantação. As coberturas projectadas bem como os blocos de betão nas plataformas e nas paredes protegem as salas da estação das chuvas. Os seus ventos dominantes – de sul e sudoeste – bem como os da estação seca – de norte e nordeste – orientam a direcção dos pavilhões. O espaço entre as salas, as portas, janelas e grelhas de tijolo deixam passar o ar.

Mas esta arquitectura também se faz com muitas outras coisas. Com as memórias do seu autor, Pedro Maurício Borges, que regressou à Guiné-Bissau onde esteve na infância quando o pai cumpria serviço militar. Certamente com as memórias de outro arquipélago, os Açores, onde viveu e continua a trabalhar. Como num romance de Joseph Conrad, aí encontrou uma paisagem que é o mapa da vida dos seus homens, onde partidas e chegadas fabricaram um novo mundo.  Estas descobertas exercem sobre Maurício Borges um fascínio evidente: a possibilidade da arquitectura ser o pretexto para uma expedição a terra incognita. Na sua aparência “chã”, os edifícios que projectou e construiu partem da observação como acto científico mas também lúdico. Mais do que uma linguagem, os resultados deste processo aspiram a ser coisas entre as outras coisas registadas no diário de bordo do arquitecto.
Assim, a Escola Básica de Cacheu não resulta apenas das condicionantes climáticas e logísticas. Apesar delas, o espaço de invenção que uma escola deve celebrar é total. Aqui, os pavilhões dispostos em triângulo à volta de um terreiro inventam uma pequena povoação. Como em qualquer aglomerado, esta vive das suas regras e excepções. A casa do director é uma delas, quase uma “brincadeira”. Com as águas da cobertura diagonais à sua planta quadrada, fica junto à entrada para que a comunidade possa zelar pelo seu residente assim como este deve zelar pelas crianças. É no encontro dos lados que estas excepções acontecem, na maneira como os telhados e as plataformas tocam uns nos outros. Ou então na laçada oval da vedação, que é uma pura vontade de desenho.

“Cinco Áfricas/Cinco Escolas” pretende ser uma acção, algo mais que uma simples mostra de desenhos. Mas só estes podem conter todas as memórias que o processo suscitou e construir outras novas, através das escolas. A sua realidade depende de uma consciência “sustentável” das coisas, por oposição a um certo “narcisismo”. Esta atitude não se questiona mas convém lembrar que não só as formas padecem dos “infortúnios da virtude”, as palavras também. No conforto do nosso mundo, o supostamente sustentável produziu uma indústria de conteúdos em franca expansão. Deste modo, também através das palavras, um “capitalismo tardio” absorve os seus eventuais conflitos. Quarenta anos atrás, Manfredo Tafuri resumia este problema: “quanto mais alta é a sublimação dos conflitos no plano da forma, mais escondidas ficam as estruturas que aquela sublimação legitima e confirma.”  A ideologia de uma acção é, portanto, um problema de forma e dos seus termos.
A arquitectura portuguesa foi, em tempos, uma “arquitectura de resistência”. Se alguma coisa permanece dessa resistência talvez seja a capacidade de recordar o seu passado. O resto, como invocar sobre ela a escassez, não passa de um romantismo. Na Guiné-Bissau, onde falta quase tudo, construir uma nova memória como a Escola Básica de Cacheu talvez seja uma acção contra o esquecimento. “A História atira as suas garrafas vazias pela janela fora,” ouve-se em Sans Soleil.

Numa declaração recente, Álvaro Siza defendeu que o mérito da sua profissão é o da resistência cultural. A esse respeito, vale a pena concluir com o sentido universal das palavras de Amílcar Cabral (1924-1973):

O nosso ponto de vista portanto, é que, na nossa cultura devemos fazer resistência para conservar aquilo que de facto é útil e construtivo, mas na certeza de que, à medida que avançamos, a nossa roupa, a nossa maneira de comer, a nossa maneira de dançar, de cantar, tudo tem que mudar aos poucos, quanto mais a nossa cabeça, o nosso sentido nas relações com a natureza, e até as nossas relações com os outros.

 Luísa Ferreira) Luísa Ferreira)

 

Originalmente publicado em CINCO ÁFRICAS / CINCO ESCOLAS, Dias, Manuel Graça (org.), Lisboa: Direcção-Geral das Artes, 2009, pp. 102-105.

por Diogo Seixas Lopes
Cidade | 16 Maio 2010 | Bienal de Arquitectura, Cacheu, Chris Marker, escola, Guiné-Bissau, Pedro Maurício Borges, S.Paulo