Lisboa

Lisboa, tenho uma criança a meio da boca que te chora, que diz adocicado o teu nome, uma espátula de cor em suas lágrimas que pintam em mim outro nome. E sinto-a falar-te, devagar e rasante como as aves que te cruzam, como os cheiros que te chegam, como as flores que te vestem. E dentro de mim há um homem que não sou eu, mas que me vive e respira e habita e que dos meus gestos toma conta, e que da minha alma se apodera. Um homem magro que te ama, Lisboa, venal e aberto e que é de certo modo essa crisálida que se abre em meu peito, que expõe a carnal matéria do meu coração, sangrando, pulsando, forte como uma batente de cobre em alguns dos portais com que te vestes e dos meus vejo os seus olhos lacrimejantes e sinto-lhe, invariavelmente, as mãos trémulas, a voz rouca e arfante, o acastanhado latejante da nicotina em seus dedos.

Eu sei que tal como aquela criança que a minha boca soletra, esse homem me vê dos seus olhos o que dos olhos dos dois eu posso ver em mim, as tardes cinzentas que me pesam, o frio acutilante que me procura, o rio que se estende como uma linha longuíssima no que presumo ser o horizonte e os sons das carruagens nas estações, e os cânticos metálicos dos seus eléctricos, e o ladrar dos cães nas casas fechadas, e o roncar dos táxis subindo as calçadas, e as gentes que falam, e os velhos que escarram e o crepitar nervoso do carvão assando castanhas.

Tudo isso é tão profundo e me tempera, tudo isso é um metro azul nas minhas veias, uma artéria esvaindo-se, um grito calando-se e então adensa-se a pobreza que eu sou e que com ela existo, os versos desarrumados nos bolsos sem saberem para onde ir, as palavras, as minhas palavras, Lisboa, se alimentando do corpo que encerro e impotentes para que possa o espírito viver do mesmo que elas e, todavia, é o amor que cresce maduramente em mim como um fruto robusto, como um ananáz, por exemplo, uma anona, um kiwi encerrado no seu verde triste, uma polpa delicada de uma uva, uma azeitona escura. E o amor, percebo, é como se chama aquela criança, sentada e nua na minha boca e que chorando tem os olhos enormíssimos e soluçantes a pedir que a olhes, que a toques, que a beijes, que maternal e liquidamente te deites com ela, e, que, simultâneamente, em tudo isso, esse outro homem que não sou mas me vive, é um poeta e aquele menino a sua poesia e que ambos são a súmula desse amor por ti, dessa visão gigante que os pesa quando te tocam e te cheiram.

Gaveta de Délio Jasse.Gaveta de Délio Jasse.

Lisboa não sei como eu consigo ainda ter em mim todos eles, sendo eles, todos, tudo isto, e como estou ainda vivo e caminho e posso de algumas vezes sonhar e projectar-me, não percebo, palavra, como ainda consigo colher versos, encontrar algum sentido para que eles possam ter sentido quando os penso e como também as minhas mãos encontram força para escrevê-los e a minha cabeça lê-los, não sei como consigo estar sóbrio com todas estas coisas que quero ter vivendo comigo e não quer a vida que o possa fazê-lo, não sei como em meio a tanta revolta exista em mim uma luzinha de esperança a encandear-me, a cegar-me. Não sei, embora tenha a febril consciência que tudo, mas mesmo tudo, me dói de encontro a mim desalmadamente, me fere e me rasga, me mutila e me cala, me retalha e me grita. Não sei como posso partir de ti sabendo eu que te amo tanto e que viverei atormentado por estas visões o resto da vida que sobra em mim para vivê-las e como hei-de dormir, e como hei-de ler e escrever, e como seguramente poderei cheirar uma flôr, colher algum odor do teu rio, se eu morro a cada instante que o tempo me chega, diminuto, pouquíssimo, intransigente, se eu choro com essa criança por uma boca que já não me serve para dizer outra coisa se não o teu nome e se tenho um homem que se mata e se anicotina em nome do que és e se, finalmente, Lisboa, para mim, deixar-te é incontornavelmente deixar de me exercer.

por Eduardo White
Cidade | 15 Janeiro 2011 | Lisboa, Literatura, poesia