Cabo Verde, rap e movimentos sociais

Em Cabo Verde, sobretudo no Mindelo, o termo “movimento” é cada vez mais utilizado pelos rappers para designar a cultura de que fazem parte. Porém, muitos rappers e ativistas culturais com quem tenho conversado, tanto na Praia como no Mindelo, não consideram que estamos perante um movimento social, visto que: falta-lhe os outros elementos da cultura hip-hop; não é estruturado ou organizado; não tem uma ideologia comum; não apresenta uma consciência política coletiva. 

Em termos gerais, o hip-hop, enquanto movimento de protesto cultural que ultrapassa as fronteiras do Estado-nação e, por isso, transnacional, diaspórico e nómada, inscreve-se no chamado movimento global, termo surgido após a batalha de Seattle em 1999 que, segundo Michel Wieviorka, apresentam tanto as caraterísticas dos movimentos sociais clássicos, o operário, quanto dos novos movimentos sociais surgidos no Maio’68. 

No caso do rap cabo-verdiano, num artigo de 2012, baseado nas premissas acima descritas, afirmei que poderia ser um pouco forçado falar dele enquanto um movimento social. Baseando-me na perspetiva wieviorkana, entendi-o como um anti-movimento global, pela sua tendência sectária e dificuldade em organizar ações sociais e políticas fora da esfera institucional, bem como de construir um campo de força na sociedade civil e uma identidade coletiva a partir de interesses comuns, combinando princípios de solidariedades e sociabilidades horizontais, a partir da edificação de uma base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, participando direta e indiretamente da luta política – não partidária – e contribuindo, desta feita, para o desenvolvimento e transformação da sociedade civil e política. 

Na altura, como é evidente, estava a falar do rap praiense, num contexto de intensa disputa por afirmação artística, social e identitária entre o chamado rap consciente, representado pelo rap pan-africanista e o gangsta rap, embora ambos tivessem África como referência. Vivia-se igualmente um período eleitoral em que muitos grupos e rappers de referência deixaram-se facilmente instrumentalizar pelos dois maiores partidos políticos do país, normalmente os seus maiores alvos de ataque.  

Tratar, no entanto, o rap cabo-verdiano como movimento social remete-nos a dois autores: Manuel Castells e Lisa Mueller. Para o primeiro, que pensou os movimentos sociais no contexto urbano das sociedades em rede, uma ação coletiva para ser considerado um movimento social deve apresentar três princípios: 1) identidade, que se refere à sua autodefinição; 2) adversário, que se refere ao seu principal inimigo, conforme expressamente declarado; 3) objetivo/projeto/agenda, que se refere à sua visão sobre o tipo de ordem ou organização social que procura no horizonte histórico da ação coletiva que promove. Para a segunda, que reflete sobre os protestos em África, o uso do termo vaga seria o mais adequado, visto permitir identificar a continuidade dos movimentos socias, não se limitando à observação do seu início e se tem ou não aderência popular. Para a autora, esta forma de olhar permite analisar as transformações na sociedade que incluem o aumento da frequência dos protestos, novas ligações entre os atores e setores envolvidos, surgimento de táticas inovadoras de ação coletiva e possibilidade de revisar os quadros mentais de modo a entender o lugar dos movimentos num possível novo mundo. Com isto demonstra que as vagas de protesto não acontecem num vazio, mas sim num contexto herdado por uma anterior mobilização.

Nesta lógica, se considerarmos que o rap cabo-verdiano, o de cariz panafricano, mesmo o não declarado, tem como referência a identidade africana e que, através da apropriação do discurso cabralista, fala em nome do africano subalternizado; tem como adversário a elite política local que, aliada à oligarquia global, explora o seu irmão; e busca através de suas narrativas e ações contribuir para a descolonização dos espíritos, de modo a alcançar a renascença africana, entendido como o único meio de alcançar a libertação total do povo que integra; então estamos perante um movimento social. 

Contudo, é importante ter em conta que a perspetiva castelliana, embora sirva de referência para estudar os movimentos sociais em contextos urbanos diferenciados, entre os quais o continente africano, assenta em pressupostos paradigmáticos eurocêntricos, visto enfatizar seus aspetos formais, desde as formas organizativas até os ciclos de mobilização, da identidade aos marcos culturais. E, portanto, a sua classificação frequentemente dá-se segundo os objetivos que eles perseguem, o pertencimento estrutural dos seus integrantes, as caraterísticas da mobilização, os momentos e os motivos pelos quais irrompem. 

O rap pan-africanista em Cabo Verde consolida-se apenas na terceira vaga dos protestos africanos (a partir de 2005), em que, tal como noutros contextos do continente, serviu de veículo de mobilização das pessoas. As suas mensagens funcionaram como palavras de ordem dos movimentos. Contudo, o rap em si consolidou-se nos anos de 1990, em plena segunda vaga dos protestos cabo-verdianos, como espaço de resistência e de denúncia, com maior ênfase nas cidades da Praia e do Mindelo, onde tornou visível o mal-estar social provocado pela ideologia neoliberal e proporcionou aos jovens a possibilidade de reformularem as suas críticas, na medida em que se encontravam numa situação de desespero e de desilusão. Para Victor Duarte, rapper mindelense, o rap “não deixa de ser um movimento social, porque retrata muitas vivências (…) nós, desde há muito, fazemos críticas sobre o governo e sobre o que acontece em São Vicente e sobre o que não nos deixa satisfeito com o governo de Cabo Verde de uma forma geral”. Essa ideia é também corroborada por DJ Letra: “No início, preocupávamo-nos sempre com temas ousados, contra o sistema, temas de cariz sociais”. 

Apropriando-se da herança das manifestações culturais e de protesto como o finason e o funaná, no período pré e pós-independência, mas também pós-democrático, hoje, rappers como Hélio Batalha, Ga Da Lomba ou Kuumba Cabral, na Praia, Gol Waine, Victor Duarte ou Niggas D Ponta, no Mindelo, entre muitos outros, quer nas ilhas como na diáspora, inscrevem-se num tipo de rap de protesto que emerge nesta terceira vaga, que faz da classe política um inimigo declarado, através de uma política de indignação, e apela ao regresso de uma política da dignidade, em substituição da política de inimizade historicamente reproduzida. 

Alto da Bomba, MindeloAlto da Bomba, Mindelo

Deste ponto de vista, compreende-o como uma intelectualidade orgânica de rua e, por conseguinte, um movimento social que, ao reposicionar-se social e politicamente e articulando as suas ações com outros movimentos, cria condições para a transformação de toda a estrutura social e para o surgimento de novos movimentos. Sobretudo pelo papel do rap na mediação dos processos de paz no contexto da violência dos gangues de rua e contributo no processo de transformação dos gangues em organizações de rua. Por outro lado, tornou público os discursos infrapolíticos contra um sistema de Estado-bipartidário pós-colonial e nocivo aos interesses do cidadão comum e serviu de fundo sonoro às grandes movimentações de rua que marcaram o país nos últimos anos.   

por Redy Wilson Lima
Cidade | 5 Agosto 2020 | Cabo Verde, movimentos sociais, rap