Shakespeare é pop, entrevista a Marco Mendonça, a propósito de Reparations Baby
Uma conversa com Marco Mendonça, a propósito de Reparations Baby, um espetáculo que é um concurso que é um jogo sobre racismo e privilégio.
Marco Mendonça, ator, encenador e dramaturgo nasceu em Moçambique em 1995. Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, trabalha regularmente com a companhia Os Possessos. Estagiou no Teatro Nacional D. Maria II, onde trabalhou com João Pedro Vaz, Tiago Rodrigues e Faustin Linyekula. Integrou espectáculos de Liesbeth Gritter (Kassys), Tonan Quito e Mala Voadora. Estreou-se como autor e co-criador, ao lado de João Pedro Leal e Eduardo Molina, em “Parlamento Elefante”, projeto vencedor da Bolsa Amélia Rey Colaço. Em 2021, venceu a Rede 5 Sentidos com o projeto “Cordyceps”, também em co-autoria com João Pedro Leal e Eduardo Molina. Integra o elenco de “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues e tem desenvolvido trabalhos na área da escrita e tradução de peças de teatro. Depois do êxito de “Blackface” o seu espetáculo de estreia, em que explora a performatividade e a história do blackface, como prática teatral racista, é convidado pelo Teatro Nacional D. Maria II a criar um novo espetáculo. Assim surge Reparations Baby, que durante os meses de junho e julho esteve no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, no Theatro Gil Vicente, em Barcelos, na Casa da Cultura, em Ílhavo e no Teatro Variedades, em Lisboa.
Reparations Baby recorre a um dispositivo da cultura popular que é um concurso televisivo. No entanto, ao longo da peça há referências mais eruditas. É importante, para ti, pensar nas categorias de cultura popular ou mais erudita?
Sim, sendo um game show, pareceu-me importante ter esse lado da cultura pop, porque estes programas, para além de serem uma coisa muito ligada à cultura geral, também estão ligados ao mundo pop, a nomes ou a conceitos comuns para o público generalista. Mas interessava-me igualmente explorar um lado mais intelectual, neste caso de uma das concorrentes, a Rosa, interpretada pela Vera Cruz, em que pudesse existir uma pequena provocação sobre a discussão dos clássicos entre as concorrentes, que são as três pessoas negras.
Como é que arrumas aqui a teoria antirracista?
E isso também já era um caminho para, de certa forma, abrir a discussão não só sobre as reparações, sobre as quais há pontos de vista diferentes mesmo dentro da comunidade, mas também para algo mais intergeracional, sobre as várias interpretações daquilo que é a cultura popular ou a teoria antirracista. Interessava-me colocar esta complexidade na Rosa, que tem muito mais experiência de vida que os outros concorrentes. Eventualmente já passou pelos mesmos questionamentos que os mais novos e, ao mesmo tempo, tem uma série de gostos mais associados à sua geração ou ao modo como terá crescido.
E porquê a introdução de Shakespeare?
Senti que também poderia explorar o que é que define os clássicos. Quis sobretudo criar a ideia de um gap geracional entre as personagens, principalmente entre a Rosa e a Ariel, para abrir um espaço de conflito, não necessariamente tóxico, mas sobre literatura, sobre o conceito das reparações em si. A arte erudita não é uma necessidade para mim, Shakespeare já é bastante pop também e quis trazer um nome reconhecível para todas as pessoas.
Reparations Baby, foto de Filipe Ferreira
Para quem escreves?
Sabia que ia trabalhar com estes sete intérpretes e pude começar a escrever especificamente para eles. Antes de mais, procurei que o texto comunicasse com o elenco. Mas, em relação ao público, acima de tudo, procuro entreter. Confio muito no teatro, nas artes performativas, pelo seu poder de entretenimento. As pessoas podem entrar e abstrair-se de qualquer coisa, podem só desfrutar de um objeto. Enquanto espectador interessa-me esse lugar também. Neste caso, existe a componente política da própria temática. Não que o espetáculo queira ser político, mas a temática já foi discutida até pelo próprio Presidente Marcelo [Rebelo de Sousa], que há pouco mais de um ano proferiu aquelas palavras (que são ouvidas no início do espetáculo). Parto dessa ideia de um tema bastante político mas que, de certa forma, deixou de estar na agenda política que o Presidente proferiu aquelas palavras e o Governo disse simplesmente que não há plano nenhum de reparação.
Isso tornou o espetáculo ainda mais necessário?
Serviu-me como uma bandeira verde para extrapolar mais livremente sobre o tema, com uma noção, se calhar falsa, de que ninguém quer verdadeiramente saber sobre reparações históricas em Portugal. Foi um bom ponto de partida para ser o mais livre possível e seguir a intuição, sem balizas morais. Depois há uma predominância branca no público português. E o lugar de provocação do espetáculo explora um certo constrangimento através do riso. Interessa-me esse efeito de estranheza, de causar um certo desconforto. Parto sempre de experiências pessoais enquanto espectador e gosto sempre de experienciar emoções novas quando vejo espetáculos, que não sejam necessariamente emoções positivas. Neste espetáculo, interessou-me explorar essa possibilidade da criação de um ambiente que não seja necessariamente sempre empático. Não sei precisar que efeito é que quero causar no público, mas sei que efeitos é que o espetáculo causa em mim quando me consigo distanciar dele. E se meia dúzia de pessoas conseguirem passar por isso, para mim já é algo positivo e sinal que o trabalho com o elenco, de tornar a coisa mais complexa, mais tridimensional, estará a funcionar.
Diz-se, entre os humoristas, que não deve haver limites ao humor, como não deve haver limites à liberdade de expressão. Ou seja, que estabelecer limites ao humor é também estabelecer limites à liberdade de expressão. Achas que o humor tem limites?
O lugar de fala é muito importante. É muito diferente se for um grupo de argumentistas brancos a escrever um sketch sobre blackface do que se for um argumentista negro a fazê-lo. Para todos os efeitos não existe uma lei, um código dos humoristas que diga tintim por tintim o que é que pode ser dito. Depende do contexto político e social da época, consoante as sensibilidades dos grupos visados. É difícil estabelecer limites específicos para o humor, mas o que também não tem limites é a possibilidade da crítica, a possibilidade desse humor ser questionado até um ponto de mudança. Obviamente o humor racista não se deve fazer, pela razão de que o humor passa a ser questionável quando pode confundir-se com ideologia. Há humoristas que estão a servir-se dos seus pensamentos, das suas opiniões, para chegar a um público que eventualmente concorda com os mesmos posicionamentos, usando o salvo-conduto do humor, que é supostamente imune à crítica. Tenho esta dúvida constante. É muito importante que, no tempo em que vivemos, o humor não sirva para perpetuar a discriminação. É fácil cair nesse lugar em que acabamos a dizer coisas, em jeito de humor, que só alimentam estereótipos redutores, que fazem com que fatias da sociedade continuem a ser marginalizadas, ou que validam certos tipos de discurso. É muito importante que toda a equipa esteja confortável com o tipo de humor que está a ser feito, e que não se sinta que alguma coisa possa estar a sair do controlo, ou ir para sítios que fogem do propósito do espetáculo. O humor deve ser bem fundamentado. Estamos numa fase em que há piadas que precisam mesmo de ser explicadas. Ou pelo menos que os humoristas tenham algum fundamento preparado para um possível questionamento dessas mesmas piadas. Se calhar não existem limites ao humor, mas os humoristas também devem estar sempre cientes de que não existem limites à crítica desse mesmo humor.
Além de vários episódios de micro-violências que vão aparecendo ao longo da peça, há dois momentos significativos de disrupção violenta. Isto é algo que tem vindo a acontecer cada vez mais em apresentações de espetáculos e iniciativas artísticas e culturais. Houve uma preocupação, em trazer isto para a cena?
Sim. Quando estamos cá fora a falar disto, e a pensar como é que vamos arranjar ferramentas para lidar com isto, interessa-me trazer um bocadinho do que se passa lá fora, que eventualmente só ouvimos em contexto privado. Por um lado, trazer essa vertente mais extrema do racismo, mais desbocada, por assim dizer, mais sem vergonha. Esse discurso não cabia em nenhuma das personagens do espetáculo, mas sim no game show, ou seja, nas pessoas que telefonam lá de casa, que entram em contacto em direto com o programa, ainda assim com algum anonimato, com alguma proteção. Quando imaginei este espetáculo, este programa em específico, eu só pensava em formas para ele correr mal. Um exercício de imaginação muito apoiado na realidade. Quis abanar a estrutura e expor a certeza de que isto não é um discurso tão escondido assim, existe efetivamente. Interessava-me que o espetáculo não fosse só pontuado por micro agressões, por certas coisas que o produtor vai dizendo, por certas considerações que vão sendo feitas acerca dos concorrentes.
E depois o jogo é capturado…
É uma espécie de limpeza ideológica do espetáculo. Este grupo misterioso de pessoas que se apodera da régie do estúdio deste onde este programa está a ser gravado, para mostrar aos produtores que este programa não devia ter existido, não deveriam ser só pessoas negras e a concorrer. Deveria ser mais sobre o privilégio branco do que sobre a falta de privilégio das pessoas negras. O que elas tentam ali é que as pessoas brancas se reconheçam como um grupo que também é percecionado por outros grupos. E isso parte da ideia de privilégio e de que ele existe, quer o sintamos quer não. É esse lugar que este grupo misterioso quer promover aqui, que é dizer que somos muito amigos das pessoas negras, mas o mais importante é as pessoas brancas olharem para si mesmas. A representatividade pode muitas vezes não passar de um jogo de aparências. Como diz a personagem Ariel: a reparação não é sobre a visibilidade negra, é sobre decisão negra. Não é por pessoas negras aparecerem num programa de televisão que a representatividade passa a ser um dado adquirido. É também importante que haja pessoas negras a decidir, a produzir e a escrever. A igualdade tem de passar por aí. Não é por se fazer um filme sobre colonialismo, porque se está a retratar essa época ou se tem atores e atrizes negras no elenco. É pensar que personagens estão esses atores e atrizes a representar? São sempre secundários. É isso que está a ser posto em causa. Mesmo num programa que parece ser sobre pessoas negras, elas são secundárias, são vistas e tratadas como personagens secundárias de uma sociedade.