Rainha Nzinga em exposição londrina

 'When Shall We Three?' Rainha Nzinga by Kimathi Donkor 'When Shall We Three?' Rainha Nzinga by Kimathi Donkor

 

Vi pela primeira vez a Rainha Nzinga de Matamba, quando caminhava com um amigo pela praça do Kinaxixi, em Luanda. Parámos para admirar a grande homenagem em bronze à monarca Mbundu do século XVII, que não só combateu os exércitos portugueses, como causou consternação entre o seu próprio povo e desempenhou um papel significativo no desenvolvimento do comércio de escravos em Angola.

Fiquei de imediato impressionada com a estátua, embora o meu amigo, um jornalista angolano, não o estivesse tanto. «Na vida real, teríamos visto os seus seios», disse ele. «Mas aqui foram cobertos para apaziguar as nossas sensibilidades modernas».

'Drama Queen' Rainha Nzinga by Kimathi Donkor 'Drama Queen' Rainha Nzinga by Kimathi Donkor

Uma versão ainda mais contemporânea de Nzinga está atualmente em exibição em Rivington Place, um centro internacional de artes plásticas em Londres. Numa exposição intitulada «Queens of the Undead», o artista britânico Kimathi Donkor, 47 anos, retrata esta heroína angolana fundamental em toda a sua complexidade. Num dos quadros, vemo-la a falar ao telemóvel, enquanto acaricia o cabelo de um travesti que segura nas mãos uma AK47; noutro, ela veste leggings pretas e sapatos de salto agulha, e está sentada sobre as costas de uma mulher branca ajoelhada, enquanto conversa com um governador português que traja um fato do século XXI; e, ainda noutro, esta líder formidável monta destemida uma motorizada, dirigindo o seu olhar para fora da tela, diretamente ao encontro do nosso.

Donkor enche as suas grandes pinturas a óleo com cores berrantes – vermelho escarlate, azul brilhante, roxo e até mesmo um assustador rosa-choque – criando irresistíveis obras de arte que nos imploram que paremos, olhemos e pensemos. E, depois, que tornemos a pensar mais uma vez. Porque há algo de familiar em todos os seus retratos, uma qualidade desconfortável que atrai o espectador para dentro da pintura.

Assim como Nzinga, a exposição «Queens of the Undead» inclui episódios imaginários protagonizados por outras três mulheres históricas e heroicas: Nanny dos quilombolas, escrava jamaicana nascida no Gana que liderou uma série de rebeliões de escravos no século XVIII; Harriet Tubman, uma afro-americana do século XIX que nasceu na escravidão, mas mais tarde conseguiu libertar-se, tornando-se uma líder do abolicionismo; e a ganesa Yaa Asantewaa, que liderou a rebelião Ashanti contra o colonialismo britânico em 1900.

Os quadros de Donkor partem de obras clássicas bem conhecidas – como «O Martírio de São Mateus», de Caravaggio (1600) e «Jane Fleming», de Joshua Reynolds (1778) – para criar novos retratos destas figuras heroicas de África e da diáspora africana. A sua técnica de détournement tomou-a emprestada ao pensador marxista francês Guy Debord, que procurou desafiar o sistema capitalista e a sua cultura mediática, devolvendo-lhes as suas próprias imagens. No caso de Donkor, este artifício é utilizado nos seus quadros como forma de debilitar a ideia de supremacia racial e dominação branca europeia.

Johnny was borne aloft by Joy & Stephen (2010)Johnny was borne aloft by Joy & Stephen (2010)Este tema mantém-se na outra metade da exposição, que apresenta outros três quadros, cada um representando cenas contemporâneas da brutalidade e racismo da polícia britânica.

Assim, por exemplo, em «Johnny was borne aloft by Joy & Stephen», vemos o corpo de Jean Charles de Menezes, o brasileiro inocente que foi morto pela polícia em Londres, em 2005. Confundido com um alegado terrorista, foi morto duas semanas após os atentados de Londres, quando 52 pessoas morreram numa série de atentados suicidas coordenados. Na pintura de Donkor, o corpo de Menezes faz lembrar a representação de Jesus feita por Caravaggio em «O Enterro de Cristo» (1603). No entanto, aqui, o corpo é transportado por Joy Gardner, uma mulher caribenha que morreu depois de a polícia ter atacado a sua casa em Londres em 1993, e por Stephen Lawrence, o adolescente negro britânico que foi assassinado num ataque racista no mesmo ano.

O que é verdadeiramente novo no trabalho Donkor é o seu vigor político sem restrições. Os seus quadros suscitam importantes questões sobre a memória e o mito, forçando-nos a refletir sobre as continuidades entre o contemporâneo e as nossas histórias coloniais e pré-coloniais.

O que os torna ainda mais pungentes numa galeria de Londres – idealizada pelo arquiteto britânico de origem ganesa David Adjaye – é a sua raridade. Apesar do caráter cosmopolita da cidade, não é todos os dias que podemos ver em grandes galerias negros retratados como protagonistas corajosos e complexos, e agentes policiais brancos como perpetradores de violência. Só desejava que o meu amigo angolano, o jornalista que me apresentou à Rainha Nzinga, também estivesse aqui a olhar para eles.

 

África 21/22 October 2012

 


 

Translation:  Teresa Souto

por Lara Pawson
Cara a cara | 6 Novembro 2012 | angola, rainha Nzinga