"Percurso que fizemos em conjunto", conversa com as curadoras de 'Earthkeeping / Earthshaking: arte, feminismos e ecologia'

A conversa com Giulia Lamoni e Vanessa Badagliacca, curadoras da exposição Earthkeeping / Earthshaking: arte, feminismos e ecologia, presente na Galeria da Quadrum, teve lugar na esplanada do quiosque do jardim do Palácio dos Coruchéus em Lisboa, no dia 28 de Julho pelas 15 horas.

Maren Hassinger, Brooklyn Museum, Performance in the Park, Maren Hassinger’s Pink Trash, July 23, 2017 parte de We Wanted a Revolution, Black Radical Women, 1965-85, 21 de abril a 17 de setembro de 2017, fotografia Colin Mendez, Brooklyn MuseumMaren Hassinger, Brooklyn Museum, Performance in the Park, Maren Hassinger’s Pink Trash, July 23, 2017 parte de We Wanted a Revolution, Black Radical Women, 1965-85, 21 de abril a 17 de setembro de 2017, fotografia Colin Mendez, Brooklyn Museum

Qual foi o ponto de partida deste projeto?

Giulia Lamoni (GL): A colaboração surgiu de uma amizade. Somos ambas investigadoras do Instituto de História da Arte (IHA), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, onde nos conhecemos. Somos italianas e chegámos a Portugal ao mesmo tempo. Na verdade sempre trabalhei nas relações entre arte e feminismos. Antes de Portugal, vivia em Paris onde trabalhei como assistente de curadoria no Musée National d’Art Moderne / Centre Pompidou no âmbito de uma grande exposição sobre mulheres artistas na coleção.

elles@pompidou?

GL: Exatamente. Foi um projeto possível porque o museu tinha uma grande coleção. Esta foi uma exposição corajosa porque mostrou que havia imensas lacunas na coleção. Então, ao mesmo tempo que essa exposição expunha a ideia de construir ou de pensar numa história da arte do século XX, sobretudo da segunda parte, a partir do contributo das artistas, também emergiam algumas lacunas que a exposição tentava preencher, pelo menos em parte, através de novas aquisições e doações. Na verdade, creio que a percentagem de mulheres na coleção correspondia, mais ou menos, ao que sabemos dos museus públicos em França, ou seja, cerca de 15% ou pouco mais. Foi uma aventura incrível. 

E em relação a esta exposição?

GL: Já tinha terminado o doutoramento e cheguei a Lisboa para realizar um pós-doutoramento focado nas relações sobre arte e feminismos nos anos 60 e 70 em Portugal e no Brasil. Era isso que me interessava. Em 2016, comecei o meu contrato de investigadora FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), onde essas relações - arte e feminismos - tinham mais a ver com a arte latino-americana, sobretudo, de alguns países da América do Sul nos anos 60 e 70 e no âmbito pop.

E a Vanessa?

Vanessa Badagliacca (VB): Conhecia a Giulia do IHA, onde realizei um doutoramento sobre materialidade orgânica, das plantas e animais, nas práticas artísticas do século XX. Foi a partir da proximidade com artistas, como assistente de curadoria – no centro de arte Carpe Diem Arte e Pesquisa em 2010 - no meu primeiro ano de doutoramento, que comecei a questionar-me sobre a própria materialidade da obra. Partindo deste tipo de questionamento, e focando-me no orgânico, procurava desenvolver uma investigação sobre a materialidade, não como um dado óbvio, como resultado de uma reflexão conceptual, mas tomá-la como ponto de partida para uma reflexão mais abrangente. Nesse contexto entra também a questão da ecologia a partir sobretudo de práticas artísticas dos anos 60 do século XX. Depois de ter terminado o doutoramento, houve um encontro com a Giulia e pensámos que as nossas investigações se pudessem encontrar de modo mais concreto através desta exposição. Neste sentido, a revista Heresies foi uma referência muito importante e também nos fez entender que já estava a haver, nestes últimos anos, um renovado interesse, tanto do ponto de vista da reflexão sobre o feminismo e os feminismos, como sobre questões ecológicas em âmbito expositivo. No entanto, sentimos que queríamos dar mais uma possibilidade de observação, de posicionamento, para refletir sobre tais questões a partir desta revista. Trata-se de uma revista feminista, cujo o número #13 é dedicado a questões ecológicas. E ali surge o nosso encontro. A exposição, de alguma maneira, foi, junto com outras circunstâncias, um pouco a metodologia do nosso trabalho.

GL: É isso. Ou seja, nós conhecíamo-la como revista feminista norte-americana relevante, publicada a partir dos anos 70, e depois, revendo um pouco as publicações, encontrámos este número e achámos que seria muito interessante partir daí, porque, de certa maneira, queríamos que a exposição tivesse uma perspetiva histórica. Ou seja, apesar de existir um grande interesse contemporâneo, e na arte contemporânea sobre as questões ecológicas e de artistas muito novos, o que nos interessava mostrar é que, de facto, essa pesquisa começou e foi muito forte nos anos 60 e 70, e muitas mulheres, cujo trabalho é mais ou menos conhecido, começaram nessa altura a trabalhar nesse sentido particular. Nesse sentido, contribuíram também para que essas temáticas fossem problematizadas no âmbito da arte contemporânea.

Como é que o projeto curatorial foi desenvolvido? Como selecionaram os artistas?

GL: A Vanessa referiu a metodologia, porque a revista tem algo muito importante. Não quer só afirmar uma leitura, mas por ser uma revista à qual os artistas podiam submeter propostas, inclui perspetivas extremamente diferentes, algumas mais essencialistas outras anti-essencialistas, algumas mais políticas outras mais poéticas, outras ainda políticas e poéticas ao mesmo tempo.

VB: Algumas de denúncia, outras de projetos participativos e comunitários, por exemplo.

GL: Interessava-nos trazer essa ideia de heterogeneidade para a exposição. Para a seleção dos artistas partimos da revista.

VB: Convidámos artistas que participaram nesse número. Na exposição há uma secção logo na entrada que mostra a própria revista e destaca umas páginas com as artistas que participam neste número e que foram convidadas para a exposição. E no sentido de pluralidade que a revista propõe, pensámos em estabelecer um diálogo entre estas artistas, artistas portuguesas ativas nesses anos em Portugal, mas também abrir para outros países, inclusive da América Latina, com a participação de Teresinha Soares e Alicia Barney, e incluímos alguns trabalhos de uma artista italiana que também se ocupava destas questões nesses anos, que é a Laura Grisi. Neste contexto também quisemos convidar e propor a artistas ativos em Portugal, sejam portugueses ou instalados cá, que participassem a partir desta revista e nesta interação, pudessem também apresentar uma proposta de trabalho. Daí a revista é certamente uma referência, no entanto, não há somente artistas mulheres que participam na exposição. Nesse sentido também queríamos abrir e apresentar uma pluralidade de perspetivas.

GL: Ou seja, por um lado interessava-nos afirmar que as mulheres foram pioneiras em explorar esse tipo de relações entre feminismos e ecologia, e questionar essa associação entre mulher e natureza de forma muito crítica. Simultânea a essa afirmação, a vontade de dizer que, para nós, o feminismo é uma questão de posicionamento político. Como diz a bell hooks, “o feminismo é para todo o mundo”.

Daí a importância histórica de contextualizarem historicamente a própria exposição? Nomeadamente nas obras que aparecem apenas documentalmente, por exemplo na obra da Clara Menéres.

GL: Absolutamente.

E não teria feito sentido apresentá-la em exposição?

GL: De facto, nós pensámos em refazê-la. Foi uma opção que considerámos, mas depois questionámos-nos muito nesse sentido e encontrámos uma entrevista da Mariana Campos, que fez a tese de mestrado sobre conservação, explorando a materialidade dessa e de outras peças da mesma época. Nessa entrevista, Clara Menéres diz que não queria que a peça fosse refeita num contexto expositivo. Isso pode ser interpretado de muitas maneiras.

VB: O que temos agora como documento é que foi feita dentro de um contexto expositivo na exposição Alternativa Zero em 1977, mas ainda realizada duas vezes, posteriormente, e no exterior. Em 1977 no Parque Ibirapuera em São Paulo e, novamente no exterior, em 1997 no contexto da exposição Perspectiva: Alternativa Zero, em Serralves, no Porto. O que nos diz que talvez…

GL: Pudesse ser uma peça de arte pública.

VB: Sim. Se tivéssemos convidado a própria artista talvez ela pudesse ter proposto algo diferente.

GL: É também muito difícil quando o artista não está presente para tomar as decisões sobre a sua obra. E nós queríamos ser o mais fiéis possível.

E teria feito sentido sair do próprio espaço expositivo e vir para o exterior?

GL: Também pensámos nisso sim, mas nesse caso tivemos constrangimentos orçamentais.

VB: E também de tempo. A exposição foi concretizada no meio de um contexto pandémico e, portanto, há todo um processo que nos levou a realizar a exposição assim como está.

vistas da exposição, foto de António Jorge Silvavistas da exposição, foto de António Jorge Silva

GL: Quando Clara Menéres fala da sua peça constrói uma ligação muito forte da mulher com natureza, quase de identificação e, neste sentido, interessava-nos perceber o que é que acontece quando colocas imagens dessa peça ao lado de trabalhos que problematizam a relação com a natureza e o género de maneira completamente diferente e muito crítica, sem uma ligação tão direta. Em Serralves e em São Paulo quando a peça foi refeita, houve uma equipa inteira que trabalhou na sua criação. Há também outro elemento importante, quando a artista fez a peça pela primeira vez na Alternativa Zero a Câmara Municipal de Lisboa queria adquirir a obra, que depois não se concretizou por várias razões.

VB: Também por causa do incêndio que destruiu a galeria em Belém e a exposição. Tudo isto nos faz supor que realmente a peça para a Clara Menéres seria possível se fosse refeita num espaço público.

GL: Num espaço onde passam muitas pessoas e não na temporalidade de exposição. Claro que é nossa interpretação. Naturalmente, seria muito interessante refazer a peça.

Em relação aos outros artistas que convidaram a fazer peças para a exposição, como é que a vossa proposta foi recebida.

VB: Há duas peças novas na exposição: da Alexandra do Carmo e do Rui Horta Pereira.

GL: Bonnie Ora Sherk concebeu a instalação expressamente para aqui e construímos tudo segundo um plano que a artista nos enviou. O processo de trabalho com os artistas todos foi muito fluido.

VB: Muito baseado no diálogo. Mostrámos a revista porque foi a nossa inspiração e interessava-nos ver que tipo de questionamento, que tipo de ideias, que tipo de processos pudessem surgir a partir do trabalho que o Rui e a Alexandra têm desenvolvido. E sim, foi fluído, na verdade, foi uma partilha. Uma troca de ideias em que depois surgiram estas propostas que nós achamos extremamente pertinentes.

GL: E muito em linha com o espírito da exposição.

No âmbito da exposição desenvolveram algum programa educativo, ou de conversas, conferências?

GL: Sim, vamos projetar o documentário de uma artista que participou na Heresies, que se chama Joan Braderman. É um documentário que ela fez sobre a própria revista e a sua história, que se chama The Heretics no Cinema São Jorge, em julho. Em setembro haverá uma conversa com o Uriel Orlow ligada ao seu trabalho e à questão das relações entre o mundo vegetal, o capitalismo e o extrativismo nos países do sul. Haverá também uma conversa com Bonnie Ora Sherk e Alexandra do Carmo e uma entrevista de Alicia Barney gravada pelo curador Emílio Tarazona em Bogotà.

Alexandra do CarmoAlexandra do Carmo

(Campanha Linha Vermelha com a Greve Climática Estudantil no Rossio Lisboa 15/3/2020, filme super 8, Ektachrome cor, formato digital, 2’11)

 Campanha Linha Vermelha com a Greve Climática Estudantil no Rossio Lisboa

Do ponto de vista da curadoria conceberam esse programa como paralelo à própria exposição, ou como parte integrante do projeto curatorial?

VB: Sim, realmente queríamos que houvesse, para além da exposição, outros momentos de reflexão que foram pensados conjuntamente.

GL: Também outro desdobramento muito importante é o catálogo, porque vamos ter intervenções de vários autores que vão realmente ler essas temáticas e a própria exposição a partir de pontos de vista muito diferentes. O grafismo vai ser da artista Maura Grimaldi.

VB: Convidámos outras artistas que participaram na revista e o comité editorial. Recebemos estes testemunhos.

Uriel Orlow, Learning from Artemisia, 2019-2020, vídeo HD de 3 canais com som projetada em 2 ecrãs, 15’, pintura, chá de artemisia Uriel Orlow, Learning from Artemisia, 2019-2020, vídeo HD de 3 canais com som projetada em 2 ecrãs, 15’, pintura, chá de artemisia

GL: Na Heresies existia um comité central da revista e depois havia um comité editorial para cada número temático. Nós entrámos em contato com todos os membros do comité editorial deste número, as que conseguimos localizar, e entrevistámo-las. Essas entrevistas com imagens do seu trabalho de época irão estar presentes no catálogo.

VB: Portanto o catálogo é mais um elemento do projeto.

GL: Haverá um texto da Lucy Lippard com um olhar retrospectivo, já que ela foi uma das figuras centrais da revista.

VB: Foi maravilhoso como todas estas artistas e membros do comité editorial receberam tão bem a nossa proposta e recebemos muita generosidade da parte delas, seja na recetividade do projeto, seja na vontade de contribuir e de participar e isso foi muito gratificante na forma como temos trabalhado. Portanto, mantendo a ligação com estas artistas que vivem longe e, ao mesmo tempo, as energias aqui enquanto vamos avançando com as artistas que refizeram as próprias instalações, como a Graça Pereira Coutinho, que apresenta o trabalho da sua primeira exposição em 1975 na Sociedade Nacional de Belas-Artes, ou o trabalho da Irene Buarque, existiu uma vontade de participar e de estar presente neste projeto coletivo que fomos construindo. 

Cecilia Vicuña, What is Poetry to you?, 1980, courtesy the artist and Lehmann Maupin, Nova Iorque Hong Kong, SeoulCecilia Vicuña, What is Poetry to you?, 1980, courtesy the artist and Lehmann Maupin, Nova Iorque Hong Kong, Seoul

Será que sentiram que o vosso projeto de curadoria, aliando uma componente emocional, no sentido em que há uma aproximação sentimental entre todos os participantes, e o vosso trabalho, até porque são investigadoras, com uma componente mais científica, de algum modo, até do ponto de vista político, pode ajudar a ver o mundo de forma diferente?

GL: Sim, porque também era esse o espírito da revista, e com que fazemos investigação, ou seja, gostamos da colaboração, gostamos de trabalhar em rede, gostamos de uma rede que se constrói de conexões, em que muitas pessoas intervêm, cada uma de maneira diferente, Nesse sentido, é um trabalho completamente coletivo. Mas são também os princípios que guiam o nosso trabalho de investigação e isso é muito importante. Embora o mundo da investigação e das universidades nos empurrem, sobretudo, por falta de fundos, para uma certa competição, é justamente a essa competição que não queremos aderir de forma cega. Ou seja, os feminismos e a ecologia não são só temas da exposição, são maneiras de viver e de trabalharmos juntos.

VB: Mesmo a nossa forma de trabalhar e a maneira como acreditamos fazer o nosso trabalho no dia-a-dia tem isso, tem sido um processo e não apenas como o resultado final, mas foi mesmo um percurso que fizemos todos em conjunto.

Creio que isso se sente como visitante. É uma envolvência, até porque o próprio espaço da Galeria Quadrum o permite. Como a circulação se vai fazendo de uma forma muito natural e sensorial, parece-me muito estimulante.

VB: Isso é muito bom!

GL: Há uma artista ausente na exposição, que está presente na memória deste lugar, que é a Gina Pane, que fez uma performance aqui na galeria Quadrum em 1978. Numa primeira fase da sua obra, ela fez muitos trabalhos na natureza, que não conseguimos apresentar por várias questões, mas acho que existe este sub-texto da história da galeria na exposição. Para nós este fio da memória era muito importante.

Gioconda Belli (Manágua, Nicarágua, 1948) Consejos para la mujer fuerte, 2018 Poema Gioconda Belli (Manágua, Nicarágua, 1948) Consejos para la mujer fuerte, 2018 Poema

VB: Este é mais um elemento que participa, não é apenas um espaço que recebe a exposição, mas sim, mais um participante que acolhe e que também recebe o exterior com a luz e a natureza que interage com os trabalhos que são apresentados.

O espaço que recebe uma exposição nunca é neutro, obviamente, mas em muitos casos nunca é chamado à ação. Nesta exposição, aparece no percurso, na luz, no espaço envolvente e na própria história da galeria, como que acrescentando mais uma camada de conhecimento ou de emoção.


por Hugo Dinis
Cara a cara | 3 Setembro 2020 | arte, ecologia, feminismos