“O Mário simboliza a pureza de um revolucionário”. Conversa com Justino Pinto de Andrade sobre Mário Pinto de Andrade, as suas memórias e a sua militância política (parte 3/3)
Gravada em Luanda, no dia 17 de fevereiro de 2024.
ES – Queria perguntar-lhe se você sabe alguma coisa da experiência do Mário na Frente Leste?
JPA – Sim. O Mário a certa altura, resolveu regressar e foi para a Frente Leste.
ES – Foi uma decisão dele, ou foi obrigado?
JPA – Eu penso que foi decisão dele, mas não sei se alguém pode dizer com mais certeza do que eu. Eu penso que ele não queria ser conotado como um revolucionário de escritório. Porque o Mário era essencialmente um intelectual. Mas de qualquer forma, sendo um intelectual e havendo outros quadros na luta, ele achou que devia voltar. Voltou e esteve na Frente Leste. Penso eu que a passagem dele pela Frente Leste não foi muito agradável. Acho que houve ali situações de alguma hostilização. Por causa dos ciúmes. Ele percebeu e então ele foi ligar-se ao seu amigo Amílcar, porque o companheiro do Amílcar não era o Neto, era o Mário. Aqui gostam muito de misturar Amílcar e Neto, mas não, era Amílcar e Mário. Não é à toa que o Mário, quando saímos do Congresso de Lusaka, ele foi logo para a Guiné. Ainda me quis levar a mim e ao Vicente.
A certa altura ele engajou-se muito no PAIGC. Engajou-se porque os guineenses em relação a ele foram muito amistosos. Essa malta aqui foi inamistosa. Então como ele tinha essa relação muito estreita com o Amílcar, sentia-se ali mais acolhido.
ES – E essas acusações de que ele teria sofrido um atentado, ou estaria em perigo de vida?
JPA – Eu encontrei esta notícia no Congo. Quando cheguei ao Congo, o Mário já não estava. Tinha voltado. Mas disseram-me que houve alguém que tentou abater o Mário, disparando, só que o Mário já não estava na cama. Acho que meteu uma almofada a simular o corpo dele, e o indivíduo que foi para o matar disparou, mas contra o disfarce.
ES – Isso foi antes do Apelo da Revolta Activa?
JPA – Foi mais ou menos naquela altura, porque ele ainda vem para o Congo e está na casa da Maria do Céu. Ele andava com a Maria do Céu, sabe. Foi a companheira dele até ao final. Nós até sabemos, pelo menos disseram-nos, quem era a pessoa que tinha feito aquilo. É o Dimuka, o comandante Dimuka. Já morreu.
ES – O que encontrei no arquivo foi também um comunicado do Mário a dizer que havia um turco que…
JPA – Era o Humbaraci.
ES – Isso. Que estava atentando contra a vida dele.
JPA – Acredito. Era o Humbaraci. O Humbaraci é uma peça fundamental do lado do Neto e nos contactos internacionais. Era dos petróleos… Bom, eu sinceramente o que sei, é que o Humbaraci era um homem do Neto. Uma peça fundamental. Quando eu chego à Revolta Activa, a notícia que tenho é que o Humbaraci era o homem das articulações internacionais do Neto. Na área dos Petróleos. Na ENI, a empresa nacional italiana. Foi isso que encontrei. O homem que articulava com o Neto com a Eni, era o Humbaraci. Agora o Humbaraci a preparar um atentado contra o Mário, pode ser verdade, pode ser paranoia. Porque houve um tiro. Dispararam. Agora se foi o Humbaraci que preparou aquilo tudo, não sei. Não sei… Era um homem que estava ligado aos negócios, era um testa de ferro da ENI…
ES – Você participou no Congresso de Lusaka?
JPA – Participei. E fui membro da Comissão de Controlo. Fui um dos nove membros da Comissão de Controlo. Cada parte tinha três, e eu pertenci ao grupo dos três da Revolta Activa.
ES – Quem eram os outros?
JPA – Eu, o Fernando Paiva… (risos) Tem de ir aos Arquivos do MPLA. Eu não me lembro. Sei que do outro lado, tinha o Zé Van Dunem, o Helder Neto, o marido da Gi, também Paiva. Do lado do Chipenda não me lembro.
ES – E essa acusação de que durante o Congresso havia infiltrados da FNLA?
JPA – Esta é a acusação que é feita pelo grupo do Neto e que não é desmentida pela Revolta Activa. Vamos lá a ver: o Chipenda pode até ter trazido com ele indivíduos do outro lado, de Kinshasa, porque ele fez aquela aproximação com a FNLA. Conseguiu inclusivamente libertar dois ou três comandantes do MPLA que estavam detidos pela FNLA. Um deles era o Tiro, o outro acho que era o Mundo Real, dois ou três comandantes que tinham sido enviados pelo Neto para negociar aquele acordo de parceria, e eles ficaram lá detidos. E é o Chip, o Chip é o Chipenda, que com os seus bons ofícios consegue retirar os prisioneiros. E os prisioneiros ficaram com ele e foram com ele para Lusaka. Eu acredito que possam ter ido mais um ou outro indivíduo da FNLA. Agora se foram infiltrados ou foram de livre vontade, aderiram ao Chipenda, eram angolanos…
ES – E diziam que falavam lingala…
JPA – Também… Então essa gente já vivia no Congo há tantos anos… Aliás, uma boa parte dos combatentes da FNLA falava lingala. Eram indivíduos que estavam lá há muito tempo, muitos já tinham nascido lá. Seriam eventualmente filhos de angolanos, eram angolanos também. Acredito que falassem lingala. Do nosso lado, não havia tantos. Quando digo nosso, englobando já o Neto. Porque a luta desenvolve-se mais na Frente Leste. A luta na primeira região, era aqui interna, era uma coisa interna, não há lingalas aqui dentro, e em Cabinda não houve grande participação do povo de Cabinda na nossa luta. Uma boa parte do efectivo não eram Cabindas. Portanto não teríamos muitos lingalas lá metidos. O Chipenda veio com eles de Kinshasa. Mas eu não vi isso como sendo… A única coisa que eu percebi em Lusaka foi que o governo zambiano tinha armadilhado aquilo tudo, tinham posto um sistema de escutas, estavam a gravar tudo. Vamos lá a ver: eu não vejo mal nisso. Naquela altura nós achámos mal, achámos que era uma ingerência, o governo zambiano ter posto escutas no sistema de som. Hoje pensando bem, eu não vejo mal. E porquê? O Congresso estava a ser realizado no território deles, dentro da Zâmbia, em território zambiano. Nós estávamos em conflito. A responsabilidade da nossa proteção era do governo zambiano. O governo zambiano devia garantir a vida e a segurança de todos os participantes.
ES – Sabe se eles ainda têm essas gravações? Em algum arquivo?
JPA – Devem ter. Era bom que tivessem. Não sei o MPLA tem, o MPLA tem alguma coisa do Congresso de Lusaka. Esquecem-se do Congresso de Lusaka. Eles não gostam da História. Gostam da História que lhes interessa. Porque o Congresso de Lusaka faz parte da História. E foi de facto, o único Congresso plural, do MPLA. O resto é tudo condicionado. Esse foi plural: três partes.
ES – Mas aí é significativo que uma das partes se recuse a falar. Uma facção recusa-se, abandona, não é? A facção Neto abandona logo a seguir?
JPA – É que a história é mal contada por eles. Eles dão ideia de que estavam ali, coitadinhos, mas não. Eles é que abandonaram! As outras duas permaneceram. E depois nós saímos e deixámos o Chipenda sozinho, com quatro militantes nossos que resolveram ficar com o Chipenda. Quatro. Só ficaram quatro, nossos. Uma está viva, está em Portugal, creio eu. Um familiar dela, disse-me há dias, nem sabia que ela era família desse general, disse-me que a tia está em Portugal e fala muito de nós, de mim e do meu irmão. Fomos nós que a levámos para o Congo e para a Zâmbia também. E lá ficou com o grupo do Chipenda. Nós perdemos quatro. Nós tínhamos 70 delegados. Dos 70, há quatro que ficaram com o Chipenda. Entre eles essa senhora.
ES – Nos arquivos da PIDE há informação sobre o Congresso e a Revolta Activa, mas é contraditória. Para dizer que também a PIDE às vezes não entendia bem e é preciso desconfiar…
JPA – Sim?
ES – Por exemplo, diziam que os da Revolta Activa iam se integrar na UNITA.
JPA – Isso é falso!
'Congresso de Lusaka' (falhado) do MPLA. Delegados da Revolta Activa. Colecção Mbeto Traça /Arquivo ATD
ES – Mas também que “o Lara queria se integrar na Revolta Activa”.
JPA – Não é bem verdade. Nos arquivos da PIDE? Não, não é verdade. Quando o Lara está comigo e com o meu irmão, colocámos uma série de questões ao Lara. E o Lara foi-nos respondendo. Eu penso que estava a ser sincero. Algumas das questões levantadas pela Revolta Activa, o Lara dizia que eram verdade. Isto é verdade! Isto é maioritariamente verdade. E a certa altura eu perguntei ao camarada Lara: então se está a dizer que isto, aquilo, tal e tal são verdade, porquê que o camarada Lara não está na Revolta Activa? E o Lara respondeu: porque há pessoas na Revolta Activa que não têm moral para falar. Pois então, diga: “Carlos Belli Bello, Nando Octavio, era um médico, mais não sei quê… Esses camaradas não deram nada para a luta. O Belli Bello andou a passear-se por aí, nas relações internacionais. O Nando Octávio andava por aí perdido, não queria vir. Chamamos para vir para a luta e não quis vir. Mais não sei quem…” Então ok, se isto é motivo bastante para o Camarada Lara não aderir à Revolta Activa, significa que do vosso lado só tem heróis? E então dei-lhe exemplos de indivíduos que estavam com ele e que andavam a passear-se pela Europa. Então se o argumento do camarada Lara é que Fulano, Sicrano e Beltrano andaram por aí a passear-se, mas no resto das questões diz que as coisas realmente são… Por exemplo: a questão do racismo, a questão do tribalismo? Ele disse, sim senhor…. Porquê que eu fui hostilizado pelos camaradas? Porque qualquer individuo vindo de Angola com a terceira ou a quarta classe, achava que posto cá fora ia para uma universidade, no Leste. Vinha mesmo. E sabe uma coisa camarada? Grande parte das nossas baixas, foram pelo tratamento inadequado dos tais médicos. Não eram nada médicos! Nós mandávamos esses camaradas estudar lá para fora, não tinham preparação de base, mas os camaradas dos países amigos davam-lhes assim um banho e eles pronto. Os nossos camaradas vinham para o combate. E no fundo, a formação deles não era de médicos, era de socorristas. E eles diziam-se médicos. Mas eram socorristas. E eu disse: Camarada Lara, está a ver? Portanto, há bons e maus. Eu não estou a dizer que os da Revolta Activa são todos bons, mas também há maus do vosso lado. E o Lara aí… Eu ainda não escrevi isso, mas vou escrever. Porque eu peguei naqueles pontinhos todos que estavam no Apelo, eu e o meu irmão, e fui dissecando. Esse ponto, e este, e este? Como é que explica isso? O Lara honestamente ele ia dizendo: isso é verdade. Como é que a PIDE chegou a isso?
ES – Posso passar os documentos depois…
JPA – Mas este é um pormenor que pouca gente sabe. Eu fiquei com boa impressão do Lara. Naquele dia, fiquei com muito boa impressão do Lara.
ES – Foi a primeira vez que se cruzaram?
JPA – Aliás conversámos sobre muitas coisas. Inclusivamente sobre acusações contra pessoas da luta que estavam presas, como o Ingo, ou o Armindo Fortes, o traidor chefe… O Armindo Fortes, traidor? Ó camarada, como é que um traidor apanha 24 ou 25 anos de cadeia? Como é que um traidor tem um julgamento de praticamente 5 minutos? E eu vou explicar ao camarada Lara porquê que o Arlindo Fortes foi apanhado. E expliquei-lhe: o Fortes foi para os Estados Unidos, ele tinha uma boa compleição porque era um atleta, e foi para uma universidade americana. Como fazia desporto, ele era uma pessoa fisicamente muito bem desenvolvida. E além disso não aprendeu a disparar com o Che Guevara. Ele quando veio para baixo, quando ele “desce”, pelo chamamento do Neto “todos para o interior”, o Fortes largou a mulher e o filho e “desceu”, integrou-se na guerrilha. Na altura, depois do Che Guevara ter passado por Brazzaville, faz um acordo com o Neto, de apoio. Então, deixou uns combatentes cubanos que vão ajudar o MPLA na guerrilha. Eu acho que era a equipa do Moracim. Acho que o Moracim deve ter sido o militar cubano mais destacado, que vem dar apoio ao MPLA. O Fortes era mestiço, com o cabelo assim, desse tom e fisicamente bem preparado. Não precisou de aprender como se dispara. O Fortes já era fisicamente e tecnicamente bem preparado. Na cabeça dos cubanos, o Fortes era um infiltrado da CIA, na guerrilha.
ES – Porque vinha dos Estados Unidos.
JPA – Porque vinha dos Estados Unidos. Então, a certa altura, o Fortes apercebe-se que os camaradas dele, em vez de estarem a disparar contra os Tugas, estão a disparar contra ele. “Estes gajos querem-me matar!” E ele tomou a decisão de escapar. “Nesta unidade onde estou, não dá, vou morrer, estes gajos querem-me matar, vou à procura de outra unidade do MPLA, onde vou apresentar o meu problema”. Ele está em fuga, chega a uma aldeia e vê lá indivíduos fardados, com o fardamento do MPLA. E pensou: esta é uma unidade nossa, vou apresentar-me e explicar que os meus camaradas ali, querem-me matar. Afinal eram os Flechas. Eles prenderam o Fortes, entregaram à PIDE, mandam-no para Luanda, metem-no na cadeia de São Paulo, levam-no a julgamento e segundo sei, o julgamento do Fortes foi simples: “Como é que se chama? Armindo Augusto Fortes. Nome do pai, nome da mãe, idade. É? Não é? Está de acordo? Estou de acordo, sim senhor. 24 anos de cadeia. Acabou.” Quando o Lara me diz, “o traidor Fortes foi apanhado”, eu digo: o Fortes não é traidor. Eu estive na cadeia todos estes anos com o Fortes. Estive 4 anos com o Fortes, na cadeia, no Tarrafal. Se aquilo é traidor, então não sei o que é um herói. Outro indivíduo de que o Lara também falou, o “traidor” Ingo. Eu disse: não. Não lhe admito isso. O Ingo foi traído. Tão traído, como nós fomos traídos. O mesmo indivíduo que nos entregou a nós, entregou o Ingo. O Ingo foi traído.
ES – Você sabe quem foi, ou tem suspeitas?
JPA – Sei, possivelmente esse agente era infiltrado. O Sidónio. Sei, sei que ele era branco, era camionista, tinha um negócio qualquer em Catete, e morava na Vila Alice. O Sidónio. Foi ele que nos meteu todos na cadeia, supostamente era um estafeta, mas não era nada estafeta, colaborava com a PIDE também. Eu percebi que ele trabalhava com a PIDE. E disse ao Juca Valentim: nós estamos na mão da PIDE. E expliquei porquê ao Juca. Porque o Juca entregou-me uma acta do julgamento do Miro, do Casimiro e do fuzilamento Casimiro. Segundo ele, trazida pelo Sidónio. Quando vi aquilo, eu disse: “Eh pá, esse gajo trabalha para a PIDE. Este documento é-lhe dado pela PIDE para nos trazer a nós, para mostrar que ele é um homem de confiança que até tem acesso a esse documento. Esse gajo é duplo.” Eu não sei se era duplo. Eu acho que era deles e que nos estava a enganar a nós. Portanto, este gajo já nos entregou. Juca, preparemo-nos para ser presos. E vai também entregar o Ingo. E entregou-nos.
Quando cheguei ao Tarrafal, encontrei outros presos lá, aqui da primeira região também e perguntei: “Então quem era o vosso estafeta?” Era o camarada Sidónio, Vostok, o Planeta. Cheguei a outro grupo e perguntei: quando é que foram presos, em 1900 e tal, e quem era o vosso homem? Era um branco, nosso, bom branco, o camarada Vostok, o Planeta. Ahhh! Então todos nós, que estamos aqui, fomos aqui metidos pelo Vostok. O Vostok é o maior agente da PIDE. É o gajo que nos desarticulou a todos nós aqui.
Há dias estive com o Gilberto, da DISA, meu amigo, meu colega de escola, era um desses, nestes anos todos nunca mais tinha estado com ele. Resolvemos conversar. Ele foi da DISA, das coisas mais odiadas. Mas era meu colega de escola, foi meu camarada de luta também. E eu tomei a decisão de conversar com ele. “Eu vou tomar um pequeno almoço contigo, na tua casa”. Ele ficou todo feliz. E fui. Disse: eh pá, esquece tudo o resto. Fomos ex-colegas, amigos de infância, fomos colegas no colégio, na quarta classe, não me fizeste mal nenhum, terás feito a outros, mas a mim não, eu pessoalmente não tenho razão de queixa de ti. Mas queria só saber uma coisa, se tens consciência de que foi o Vostok que nos lixou. “Tenho. E eu cheguei a ter o Vostok preso, na minha mão.” E não mataste o Vostok porquê? “Eh pá, ele disse-me que, por exemplo, o Ingo foi preso por culpa dos Vieira Lopes.” Os Vieira Lopes são os irmãos do Ingo. Culpa de quem? Os irmãos do Ingo pertenciam à rede clandestina e certamente confiaram no Vostok. Confiaram no Vostok. Ele era o homem da articulação. Eu sei que o Vieira Lopes, o Carlitos, que é o irmão mais velho do Ingo, chegou a ir várias vezes à primeira região, para se encontrar com o Ingo. Seguramente foi o Vostok que fez essa participação. Não sei se o irmão mais velho, o que já morreu, o Adalberto, também chegou a ir. Eu tive acesso a um documento da PIDE que falava desses contactos, do Carlitos Vieira Lopes e do Mário Guerra com a primeira região. Eu penso que todos eles foram iludidos pelo Vostok.
ES – E o que aconteceu com ele depois?
JPA – Isso vou procurar saber depois, quando tiver o segundo encontro com o meu amigo (risos). Não quis esgotar tudo naquele dia. Porque foi uma conversa assim, muito leve, dois velhos amigos que estavam em campos opostos durante estes cinquenta anos e suavizei o encontro. Mas prometi que vamos voltar a encontrar-nos. O que ele disse dessa primeira vez foi: “Estamos os dois a ficar velhos. Temos muito que conversar. Temos de fazer um balanço das nossas vidas…” Eu estou pronto para um balanço. E ele disse: quando tu quiseres. Então dá-me o teu número de telefone e ele deu-me. Passados três ou quatro anos, liguei para ele. Como é? Quero tomar um café contigo. Ficou todo feliz. Devia estar a pensar que eu era inimigo dele. Porque eu estive preso pelo MPLA, quando ele era um dos chefões da DISA. Disse-lhe, não, tu a mim nunca fizeste mal pessoalmente. Nem a mim, nem aos meus irmãos. Se fizeste mal foi a outras pessoas. A mim e aos meus irmãos não, portanto vamos conversar. E passámos uma manhã boa, em torno de um cafezinho, o nosso clima está desanuviado e eu vou sabendo coisas. Como é que eles deixaram escapar o Vostok? Quem é que deixou escapar o Vostok? Para mim o Vostok não devia ser preso. O Vostok devia ser apresentado como um agente especial. Um tipo que fez um trabalho de agente, durante muito tempo, com êxito.
ES – Espião…
JPA – Espião. Meteu-nos a todos nós na cadeia. Agora ele diz que ele quando esteve preso, ele foi apanhado, porque ele ficou cá e disse que a culpa do Ingo ter sido preso é dos irmãos dele. Não é nada. Confiaram nele, quem confiou no Vostok, caiu. Porque o Ingo já me contou como é que ele foi preso. Como é que ele foi atraído para ser preso. E pronto, mas eu vou aprofundar com esse meu amigo.
ES – E em que circunstâncias você é preso? Depois da independência.
JPA – Primeiro fui preso em Cabinda, pelo MPLA. Eu ia atravessar a fronteira para o Congo, pela terceira vez. Eu ia pela terceira vez ao Congo e sou preso. Passados uns dias fui libertado. Depois em Luanda fui preso, pela FNLA. Também passei lá uns dias. Depois em Luanda fui preso novamente pelo MPLA, já pela DISA, com os meus irmãos, o Gentil Viana, o Adolfo Francisco, o Paiva, o Manuel Videira, o Jota.
ES – Em 76?
JPA – Início de 76, dia 13 de Abril. E depois fui deportado. Fiquei 3 anos, primeiro na cadeia de São Paulo e na casa da Reclusão …
ES – E sem processo, sem acusação formada?
JPA – Não sem nada, não assinei nada. Não há nada assinado por mim. O único papel que assinei foi o meu nome, data de nascimento e filiação. Disse que não assinava mais nada. E fui libertado por um papel assim. Não tem nada do género. Há dias encontrei-me com o ex-agente da DISA, que veio com a incumbência de me ouvir para eu ser libertado. Ele veio ter comigo, levou-me ao gabinete e disse: Tenho a incumbência de te ouvir, as tuas declarações, porque vocês vão ser libertados. Ah sim? Então o que é que tu queres fazer? Alguma coisa. Então escreve: Justino Pinto de Andrade. Que idade que eu tinha naquela altura? 30 anos de idade. Data e local de nascimento, filiação. Então é isso? Sim. E não digo mais nada. Estive aqui três anos e ainda não me justificaram porquê que me prenderam durante estes três anos. OK? Ok. Saí. Depois fui deportado para o Leste, mais dois anos. Fui deportado.
ES – Não podia voltar a Luanda…
JPA – Mais dois anitos. Não bastou os cinco da PIDE, mais outros cinco do MPLA e mais aquelas duas semanas…
ES – E no entanto, a Revolta Activa foi abafada desse jeito?
JPA – O tempo foi corroendo. Uns foram envelhecendo, outros foram-se exilando, outros foram morrendo. Mas eu penso que o espírito mantém-se vivo. Mesmo aqueles que depois se renderam ao Neto, penso que não abandonaram aquele espírito que nos animou.
ES – Porque é que não existe muito trabalho feito sobre isso? Não encontrei quase nada…
JPA – Pois, é preciso fazer isso, vocês os estudiosos. Eu sobre esta maka da Revolta Activa, eu ainda não escrevi. Eu escrevi sobre o meu encontro com o Lara. E escrevi em homenagem ao meu amigo Armindo Augusto Fortes, o tal “traidor”. Foi em homenagem ao Augusto Fortes que escrevi um texto que publiquei.
ES – Publicou aonde?
JPA – No “Novo Jornal”. O Augusto Fortes, o seu nome de guerra era “camarada Mongol”. Mongol. Coitado do Armindo Fortes, morreu para aí esquecido. Deixou um filho nos Estados Unidos. Aconteceu com ele, mais ou menos o que aconteceu com o pai do Obama, que era um queniano, estudante, que foi para os Estados Unidos, para a Universidade. Ele pertencia àquelas famílias ilustres lá do Quénia. Lá conhece a mãe do Obama, enquanto estudantes, acho que casa com ela, penso eu, fazem um filho e depois muda de cidade, vai para outra cidade, outra universidade, onde chega a ser docente, creio eu. E deixa o filho. O Obama não é criado pelo pai. É criado pelo padrasto, indonésio. O filho do Augusto Fortes tem a idade do Obama, da mesma geração.
ES – Ele ficou lá…?
JPA – Ficou lá… Eu sei o nome da mãe. Ela estava ligada à universidade. Eu acho que ela era professora da universidade, ou investigadora. Então enamora-se pelo estudante Fortes e fazem um filho. O apelo do Neto é respondido pelo Fortes, o Fortes vem, abandona a mulher e o filho, vem para a luta e acontece aquilo que eu já contei. Encontrei o Fortes na cadeia, no Tarrafal. O último preso na cadeia, parecia que estava afastado de tudo…
ES – Ele também saiu no grupo dos últimos?
JPA – Saiu comigo.
ES – Vou só fazer a última pergunta. Qual é que acha que é o legado do Mário, hoje, em Angola?
JPA – O legado do Mário, para mim, é intangível. Ele morreu sem deixar nada de tangível.
ES – Em termos de dinheiro? Outro documento que achei, no meio dos panfletos contra a Revolta Activa, dizia que ele era “um senhor rico que estava em Paris a gastar dinheiro no cinema e nos cabarets”.
JPA – Coitado do Mário! O Mário era um homem de uma simplicidade, a riqueza dele eram os livros e as ideias. O legado, para mim, no final de tudo isto, quando já todos estivermos mortos, nunca alguém vai acusar o Mário de ter sido violento, desonesto, intolerante e antidemocrata. É mentira. O Neto vão-lhe acusar de quê? As partes positivas também vão ser reconhecidas, mas também tem ali muita coisa que não orgulha ninguém. O Mário não. O Mário simboliza a pureza de um revolucionário. O Mário quis negociar. Na Câmara dos Comuns, em 1960, acho que a 1 de Dezembro em 1960. O Mário está na Câmara dos Comuns em Londres. Não sabia?
ES – Sim, sim. Estou lembrada. Ele propôs uma mesa-redonda…
JPA – Ele propôs uma mesa-redonda. E o Salazar respondeu, “nem redonda, nem quadrada.” Ele propõe uma mesa-redonda para negociar uma independência pacífica, integradora. E o Salazar respondeu, “nem redonda, nem quadrada.” E aí começou o descalabro. O Salazar não percebeu que se ele tivesse aceite negociar naquela altura, o figurino era outro. Não teria havido guerra na Guiné, nem Moçambique, não teria havido guerra em Angola, a potência colonial teria feito mais ou menos …
ES – Os ajustes…
JPA – Os ajustes que a França fez, o Reino Unido, a Inglaterra também fez, e teria sido criado, pelo menos, um processo mais soft. Mas o Mário era um amigo leal. Muito leal. Quando nos encontrávamos, a conversa começava sempre com o Mário a apresentar a um primo com menos 20 anos que ele, o report das reuniões que tinha tido antes. “Olha, estive com Fulano, tratou-se isto e tal e tal”. Aquele homem grande que era baixo, fazia questão de informar sobre os contactos que tinha tido. Eu acho que, depois de todos mortos, quando a História for feita por gente isenta e afastada dos conflitos, ele vai ser recordado como um grande homem do mundo. Aliás, já começa a ser recordado. Agora é o renascimento do Mário. E mesmo o trabalho que você vai fazer, vai contribuir para o renascimento da figura desse grande homem.
ES – Espero…
JPA – Era de uma modéstia, uma simplicidade… Uma vez encontrámo-nos em Lisboa, pouco antes dele morrer. Então… encontrar com o Mário tinha de ser numa livraria, não podia ser noutro lado. Então, foi na Buchholz. Encontrámo-nos eu, o Vicente e o Mário, ficámos ali a conversar e depois vamos almoçar. Ali à frente havia um bar, daqueles simples, daqueles de Lisboa. Sentámo-nos os três à mesa e comemos um bife. A modéstia do Mário era tanta que achou que estava a comer uma maravilha. “Este bife está muito bom” (risos) Ó Mário, só mesmo tu. Este é um restaurante de esquina, de secretárias de gabinetes.
ES – Ele saiu de Luanda quando? Antes das prisões?
JPA – Saiu antes, ele esteve muito pouco tempo cá.
ES – Saiu porquê?
JPA – Saiu porque tinha os seus compromissos dele com o PAIGC. O mundo dele. Ele veio ver a mãe. Porque já não via a mãe desde que tinha ido estudar. O Mário quando viu a mãe, perdeu os sentidos. A mãe já mais velha, de cabelos brancos. “Ai minha mãe”. Quando viu a minha mãe, nós é que o fomos buscar ao aeroporto, eu fui buscar o Mário com a minha mãe e quando ele viu a minha mãe, o Mário disse para mim: “Esta tua mãe era muito bonita, (estou a imitar o falar dele), esta minha tia era muito bonita. Já não vejo a minha tia desde que saí daqui.” O Mário tinha saído há 27 anos.
ES – Tinham passado 30…
JPA – Sim. O Mário no fundo veio ver a mãe e familiares que ele não voltaria a ver seguramente, entre eles a minha mãe. Mas foi bom, um convívio curto com esses meus primos, Mário e Joaquim. Bonito. Porque quando o Mário sai, eu nasço, quando o Joaquim é preso, eu tenho 12 anos. Encontramo-nos anos depois, homens, depois de passarmos seca e Meca. O Joaquim com 14 anos de cadeia praticamente. Mas eu tive muitos familiares assim. Henrique Guerra… O Henrique Guerra teve 8 anos e meio na cadeia. Era meu primo também. Éramos todos primos em primeiro grau, filhos de irmãos. A minha família deu um grande contributo para a luta. Acho que foi das que mais contribuiu. Pelo menos a concepção actual da luta, de saber fazer a luta.
ES – De pensar a luta.
JPA – De pensar a luta… É por isso que eu digo que não me arrependo de nada do que fiz. Nada. Voltava a fazer tudo, mesmo com as consequências que vieram depois. Juro. Voltava à luta novamente. Voltava à organização clandestina….
ES – Você de facto ficou sempre ligado à política.
JPA – Eu? Sim. Eu só tenho dois namoros: o ensino e a política. E não há separação. Mesmo quando já não puder fazer política ativa, vou estar atento à política. Porque a política faz parte da nossa vida. As pessoas esquecem-se disso. Nós todos somos uma consequência da política. E se nós não estamos na política, estamos alheios, então não nos podemos queixar. Se nós não participarmos de forma séria, engajada… eu agora participei nesta campanha eleitoral, fiz aquilo que pouca gente faz, que é romper com a matriz.
ES – Posso usar essa gravação para o meu trabalho?
JPA – Eu não minto. Digo aquilo que sinto.
ES – Dá autorização?
JPA – Dou! Dou autorização. Posso me enganar, mas não minto.
ES – Obrigada. Obrigada por tudo.