"São os intelectuais que, no fundo, dirigem mesmo as revoluções mais populosas", conversa com Manuel Videira sobre Mário Pinto de Andrade, as suas memórias e a sua militância no MPLA

Manuel Videira foi um dos estudantes africanos que se encontravam em Portugal quando eclodiu a guerra em Angola. Seguindo os seus ideais anticolonialistas, fugiu para Paris em 1961, participando na chamada “fuga dos cem”. Pouco depois, fugiu também de Paris para se juntar às fileiras do MPLA em África, primeiro em Accra e depois em Léopoldville (atualmente Kinshasa). Foi um dos primeiros médicos a atuar no CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados) e, mais tarde, participou na guerrilha, tornando-se responsável pelo SAM (Serviços de Assistência Médica) da IV região político-militar do MPLA. Em 1974, juntou-se à facção dissidente do MPLA conhecida como Revolta Activa, tendo sido um dos 19 signatários do primeiro apelo publicado pelo grupo a 11 de maio. Por isso, pouco depois da independência, em fevereiro de 1976, foi preso e mantido em detenção por mais de dois anos e meio, o que o levou a afastar-se da vida política.

O texto que se segue é a transcrição de dois excertos de duas entrevistas a Manuel Videira (MV), realizadas por Elisa Scaraggi (ES) em Lisboa, entre maio e agosto de 2023. Ambas as entrevistas contaram com a presença e colaboração da esposa de Manuel Videira, Lizete D’Antas (LD).

 

Lisboa, 31/05/2023

ES: A primeira pergunta que gostaria de lhe fazer é sobre porque decidiu escrever esse livro [Angola: um intelectual na rebelião (2021)].

MV: O que é que me levou? Bom, eu escrevi o livro porque achei deveria lembrar certas personalidades da luta angolana que durante esses anos, depois com a guerra civil, foram absolutamente esquecidas ou quase. Totalmente esquecidas, mas eu sentia que se devia falar delas. Uma dessas personalidades é justamente a do Mário Pinto de Andrade de quem eu logo na primeira parte do livro, e depois também na segunda parte do livro, lembro da sua personalidade, da sua elevada cultura, sociológica sobretudo, mas também política, e das suas qualidades como companheiro e camarada, durante o tempo que exerceu o cargo de presidente do MPLA. E isso ainda foi… comigo ainda foi algum tempo porque… eu saí de Portugal clandestinamente, num grupo que não sei se já ouviu falar, o grupo dos 100 estudantes. Eu era um dos responsáveis pelo núcleo de Coimbra na organização desta fuga. Depois fui para Paris e juntamente com o Gentil Viana pela primeira vez eu fui à Présence Africaine e então fui apresentado ao Mário Pinto de Andrade. 

ES: Já tinha ouvido falar dele?

MV: Tínhamos ouvido falar dele em Portugal muito, muito vagamente. Mas não muito, porque na altura em Portugal a censura à informação era muito ativa, era muito violenta. Ouvimos falar no nome como estando ligado à luta de libertação, até ouvimos falar no nome do irmão porque esteve preso, ele não foi preso, porque estava em Paris… Mas claro, conhecíamos o nome. Desde então, tivemos sempre uma relação de grande amizade e de grande camaradagem. 

Portanto foi em Paris em junho de 1961, junho ou julho, que eu conheci o Mário de Andrade pessoalmente e como disse. Depois, quando fui para Léopoldville em setembro de 1961, fui justamente a acompanhar o Mário Pinto de Andrade que pela primeira vez se dirigia ao Congo onde estava instalada então a direção do MPLA. Aliás há uma particularidade que eu acentuo no livro, que é justamente que eu e um colega, camarada, que era grande amigo meu e meu compadre, que era o Carlos Pestana, fomos de guarda-costas justamente do Mário Pinto de Andrade [risos]. Levávamos cada um uma pistola, que mal sabíamos manobrar, mas era para os efeitos… [risos] E fomos então recebidos pelo embaixador do Mali no Congo, no Congo que na altura a capital era Léopoldville. E então foi assim que se começou a concretizar a nossa amizade. Quando nós chegamos a Léopoldville, nesse momento entrámos ali numa tempestade tropical, uma coisa terrível, de tal maneira que o avião, que era um Boing de quatro motores, desses grandes, caía. Caía em poços d’ar, parecia que ia precipitar… 

 

ES: Que medo…

MV: E nós tivemos que dar duas voltas em cima da cidade antes de poder aterrar. Porque o aeroporto não era assim um aeroporto muito bem apetrechado do ponto de vista da iluminação. E então foi muito dramático. E eu lembro que o Mário não estava muito sereno…

LD: Era Katiana e tu. 

MV: Eu, Katiana e Mário, sim.

LD: Não, o Mário não vinha. O Mário veio depois.

MV: Não, mulher, por favor.

LD: Veio ter convosco a Léopoldville depois de vocês terem alugado…

Manuel Videira Manuel Videira

MV: Não, não faças confusão… Nós estivemos no Ghana e no período final em que nós estivemos no Ghana tivemos grandes necessidades e grandes problemas com o diretor daqueles que chamávamos African Affairs, os serviços encarregados pelo presidente, pelo Nkrumah, para tratar dos assuntos africanos e que era um cavalheiro que era próximo do Holden Roberto. E ele seria pelo menos influenciado pelo Holden Roberto para nos hostilizar. E então nós chegámos a tal ponto que enviamos um telegrama dramático ao Mário a pedir para ele voltar e ir a Accra solucionar este problema. E efetivamente o Mário foi. O Mário foi, moveu as suas redes de influência, junto dos embaixadores africanos que existiam em Accra, sobretudo da Guiné Conakry, certamente que falaram… Isso ele nunca nos disse, mas o que é certo é que ele conseguiu uma entrevista com esse diretor do African Affairs, que já não me lembro como é que ele se chamava, eu acho que no livro ainda digo o nome dele. E também a partir desta altura, já eu e o Katiana fomos indicados como os guarda-costas oficiais, os guarda-costas de Mário. Então ele conseguiu realmente falar com este senhor e depois a atitude dele acabou por mudar, né? Porque o Holden Roberto, a propaganda que ele fazia, mesmo junto destes líderes africanos, ou sobretudo junto dos outros africanos, era de que o MPLA era um partido de mulatos e de brancos, um bando de intelectuais que não tinham ideia nenhuma da luta em Angola. 

Essa foi a primeira ação de grande diplomático que eu conheço do Mário junto daqueles que eram os seus quadros ou futuros quadros, que éramos nós do grupo fugitivo aqui de Portugal. 

Antes disto, em Paris, nós começámos a ser, digamos que, envoltos pelas várias organizações ocidentais a tentar distribuir-nos pelas universidades, para acabarmos os cursos ou fazer estágios suplementares. Mas como o MPLA estava muito necessitado e como havia bastante médicos, ali éramos acho que seis médicos, então o Mário, influenciado um pouco pelo Viriato da Cruz – nessa altura o Mário era presidente, mas o Viriato da Cruz é que era o secretário-geral e como nas estruturas socialistas naquele tempo o grande mandão era o secretário-geral e não o presidente – então acho que por decisão e iniciativa do Viriato, mas coadjuvado pelo Mário, eles propuseram uma fuga clandestina de Paris – isto está no livro. Então foi aquela fuga clandestina: passámos pela fronteira de Estrasburgo com Alemanha, da Alemanha então fugimos de avião. Portanto a primeira verdadeira ação do Mário então é essa, junto dos amigos dele, foi a de organizar uma fuga clandestina de Paris e depois então essa ação no Ghana junto da direção nacional pelos assuntos africanos.

E em Léopoldville com o Mário tivemos que começar a organização daquilo que se chamou o CVAAR, que era o Corpo Voluntário de Assistência aos Refugiados, que foi de fato a organização de certo modo de cobertura, de apoio, à instalação da direção política do MPLA em Léopoldville. Porque quando eu chego a Léopoldville só havia os que podiam ser considerados membros do Comité Director em Léopoldville.

 

ES: E o Mário também se mudou para Léopoldville?

MV: Não, não, ele esteve em Léopoldville algum tempo, mas o Mário era o chefe das relações exteriores, portanto esteve algum tempo em Léopoldville, depois foi lá para as suas funções e não sei que itinerário é que ele seguiu. Depois veio o Viriato algum tempo depois. O Viriato de Paris desceu para Conakry. Aliás além de Paris eles já tinham, a direção do Comité Director tinha digamos uma residência em Conakry.

Portanto, o Mário até 1963 é o homem da diplomacia, da fundação e da direção do MPLA. E mesmo do próprio MPLA embora em seguida disseram que nasceu em 50 e tal… Mas verdadeiramente, como movimento ativo de luta anticolonial ou pela independência, acho que foi só em 1961, em Rabat, numa conferência que… Isso também está escrito no meu livro, não vale a pena falar disso.

ES: Eu queria dar um passo atrás e voltar as razões que o levaram a escrever o livro…

MV: Ah! O livro… Eu escrevi primeiro porque tinha dois livros. Eu estive nas matas, na frente de combate na IV região, que é um lugar realmente muito distante, é a região mais distante onde nós estivemos com o MPLA. Porque o MPLA tinha nessa altura a sua base principal em Lusaka, no chamado VC, que era a base central da Frente Leste, onde geralmente estava a direção e onde estava o presidente Agostinho Neto. Eu fui para a IV região depois de ter sido chamado para substituir o malogrado doutor Américo Boavida, que tinha sido morto num ataque dos comandos portugueses à base de Mandume. Então eu fui para essa região e tinha dois cadernos com apontamentos, justamente a pedido do Mário para depois junto com o Mário escrevermos um livro sobre as atividades do MPLA na Frente Leste. Entretanto, enquanto estive na IV Região, chegou à IV Região enviado, saído de Lusaka, um repórter argelino. Um repórter argelino que nós alcunhámos de… [dirigindo-se a LD] como é que é?

LD: Kapiassa.

MV: Sim, Kapiassa. Ele também tinha um diário. Isso me inspirou a escrever um diário. Então eu tinha um diário e além dele tinha um outro caderno de apontamentos. Quando eu saí, eu deixei o diário. Na viagem eu levei o caderno de apontamentos e deixei o diário na minha mala, convencido que no fim da viagem, no meu regresso… Eu fui enviado a um congresso da juventude, muito longe, no Chile, passando pela União Soviética e por Cuba – isto está descrito no livro – eu cometi a asneira de deixar o diário e ficar com o caderno. E então quando acabou a minha viagem e eu regressei para a luta, já não voltei para o VC. Evidentemente a minha mala desapareceu e com ela o diário. Fiquei com o outro caderno, não era bem um diário, era uma série de apontamentos sobre um julgamento. Que está no livro e que foi copiado desse caderno. 

ES: Sobre esse julgamento, eu achei no arquivo do Mário uma cópia do texto desse julgamento quase idêntica à que aparece no livro. Só que é uma peça de teatro. [disponível em http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04313.008.001]

MV: Porque aquilo era para representar como peça de teatro. Não sei se cheguei a redigir, mas dei ao Mário uma cópia. Então fiz esse registo que está ali e que para mim é um acontecimento absolutamente sensacional, porque mostra como é que estava estruturada a sociedade nativa daquele lugar quando o MPLA lá chegou para implantar a luta armada.

ES: Sim, tem todo esse conflito entre tradição e modernidade…

MV: Sim. Mas, portanto, como eu tinha perdido o diário, um dia decidi tentar fazer esse esforço para relembrar os apontamentos que tinha. E realmente, à custa de muito esforço, consegui rememorizar os acontecimentos que eu tinha escrito e foi assim que eu fui escrevendo o livro. E bom, também fiz consultas. Fiz consultas nos documentos do Lúcio Lara, fiz consultas do libro de Mabeko, que tem algumas reflexões, e fiz consultas com alguns colegas da altura. Mas foi sobretudo à custa de um esforço de memória… Tinha dias que eu via praticamente as páginas escritas. E era só escrever de novo.

ES: O livro foi publicado em 2021 e no começo do livro você diz que começou a escrever em 2010, é isso?

MV: Pronto lá está, é o fim de 2010. O último dia da velha ou o primeiro dia da nova década.  

ES: Portanto levou muitos anos para escrever.

MV: Levei três anos. Em 2011 a minha querida esposa teve uma doença grave, que me pôs numa situação de medo, de preocupação, mas também de concentração. Então eu acordava de manhã cedo, uma hora antes de toda a gente, para ir diariamente escrever os apontamentos.

LD: Nós estávamos no Brasil, completamente isolados, não conhecíamos ninguém. Eu estava doente, tive que fazer um tratamento. Só foi ele comigo e a minha filha e então só erámos nós, não tínhamos amizades nenhumas. Quando ele acordava de manhã, sentava-se na varanda do apartamento, ficava a escrever até às 10 e meia, e aí era que ia tomar banho e tomar pequeno-almoço. Foi nesse período de isolamento que ele conseguiu fazer a catarse do seu livro. 

MV: E também há outra coisa. Em vida do Gentil Viana – já sabe quem foi?

ES: Sim.

MV: Então nós do grupo, sobretudo os que estivemos presos, tínhamos combinado que o Gentil é que ia escrever as memórias do grupo, sobretudo sobre o grupo da Revolta Activa. Depois ele foi parar na Gulbenkian e também trabalhava como advogado… Portanto nunca chegou a escrever.

LD: Nunca quis.

MV: Pois então, como ele não escreveu e como de facto há um grande vazio em relação às lutas, às nossas lutas de libertação, eu depois de estar reformado achei que poderia tentar escrever. Sabe o último sábado estive em Coimbra, fui convidado a participar no sexagésimo…

LD: Sexagésimo segundo!

MV: … aniversário do meu curso e no fundo o tema do nosso encontro foi o livro, estivemos a falar sobre o livro, todos os colegas compraram o livro, outros queriam comprar, e todos acharam que foi uma iniciativa fixe. Fiquei bastante sensibilizado com este tipo de homenagem em relação ao meu livro.

ES: Também queria lhe fazer essa pergunta, se você sentiu que tinha atingido os objetivos que tinha ao escrever.

MV: Acho que sim, acho que atingi. Eu escrevi o livro, depois por uma questão, por causa da problemática política do livro pensei que devia ser publicado depois da minha morte. Ela [indica a mulher] sempre insistiu para que eu publicasse em vida… Finalmente o livro foi publicado antes da minha morte e foi graças à insistência dela e do meu filho mais velho, o Mwambaka, que também é o meu nome de guerra.

ES: E esse nome de onde veio?

MV: Esse nome veio da terra onde eu cresci, que é Benguela, que antigamente se chamava Ombaka. Então foi o meu nome de guerra. Foi ao chegarmos à Frente Leste e por uma questão de segurança, porque havia gente da PIDE infiltrada, sabe, nós tínhamos que mudar de nome. Desde que chegássemos à organização tínhamos que mudar imediatamente de nome para não sermos identificados em caso de sermos apanhados ou ser apanhada a nossa correspondência.

LD: Mas de nada lhes valia…

MV: Então eu modifiquei um pouco a parte do nome para a PIDE não fazer logo a conexão…

LD: Mas fez…

ES: Outra pergunta que eu tinha é sobre o título e sobre a dedicatória para ‘todos os intelectuais injustiçados’…

MV: Bom, o título do livro também não foi por acaso… O livro é sobre a história de Angola. A história de Angola está cheia de revoltas. Inicialmente eu pensei que ia ser “um intelectual na revolução”, mas acabei por achar que todos os levantamentos, todos os levantamentos que houve ao longo da história de Angola não justificavam o título de revolução, mas estavam muito mais próximos da rebelião. O que houve foram sucessivas rebeliões de reis, reinados, e depois de grupos, mas nunca houve, infelizmente, um movimento de unidade nacional suficientemente inovador para se poder chamar ou designar de revolucionário. Então preferi optar por rebelião, pelo termo rebelião. O outro título… Bem, é que poucas pessoas, pelo menos do MPLA e mesmo da UPA durante a luta de libertação gostavam dos intelectuais. Mas são os intelectuais que, no fundo, dirigem mesmo as revoluções mais populosas, são dirigidas pelos intelectuais. Então achei que deveria ter a coragem de pôr o termo intelectual. Então ficou “um intelectual na rebelião”.

ES: Porque em certa altura ser chamado de intelectual virou quase um insulto?

MV: É, pois, é isso. Houve uma altura, claro que não foi sempre, depois na fase final já não, mas na fase inicial sobretudo, na fase de Léopoldville, ser intelectual era quase um insulto. Se você chamasse de intelectual a um guerrilheiro, ele era capaz de lhe dar um tiro. Ficaria muito ofendido. E foi esse termo, aliás, que inclusivamente induziu… essa qualidade atribuída pelo povo na altura que induziu o Viriato da Cruz a tomar as atitudes que tomou, e que o conduziram realmente à sua perda e ao seu desaparecimento político, até a sua morte lá na China. Coisa que eu até hoje não consigo entender.

ES: Porque ele era um intelectual, mas não se definia como tal?

MV: Ele no fundo era um intelectual, mas como ele não tinha um curso superior… Naquele período um intelectual teria que ser alguém com um curso superior… E como ele não tinha curso superior, tinha acho eu o sétimo ano. Já era um adulto e com o sétimo ano já devia ser… Recusava em absoluto e, pelo contrário, ele era um anti-intelectual quase que declarado…

LD: Como o Neto…

ES: O Neto também era um anti-intelectual?

LD: Sim, sim.

MV: Sim, também. Também o Agostinho Neto foi.

ES: Mesmo ele sendo poeta?

MV: O do Neto era um aproveitamento político. Um aproveitamento político sobretudo dos conterrâneos dele que eram profundamente anti-intelectuais. E até, de certo modo, racistas. 

LD: Se dizia no MPLA que os intelectuais só veem a complicar as coisas. E aliás o Reajustamento, que depois vai dar nisso que deu, falhou completamente por causa desta conflitualidade permanente que tinha.

ES: No livro você escreve que na Conferência Nacional de Quadros em 64 o MPLA tinha adotado uma atitude anti-intelectual e populista. E cita o relatório onde se diz que se devia “Estruturar uma organização de militantes e não simples idealistas e sonhadores”.

MV: Sim, aí é já depois. Digamos depois da rotura com o Viriato da Cruz e já no quadro de atividades que é mais hostil aos intelectuais. É o Lúcio Lara a trabalhar os quadros jovens para ficarem na estrutura do MPLA. Porque os médicos, por exemplo esses todos tiveram que fugir de Léopoldville, o Mário Pinto de Andrade já se tinha ido embora, o Manuel Lima tinha ido embora… Quer dizer, os quadros realmente intelectuais acharam que não tinham condição para continuar no movimento e foram-se embora. Então, o Lúcio Lara sobretudo encarrega-se de convocar essa segunda conferência de quadros e nessa reunião de quadros ele vai buscar jovens e gente praticamente sem formação intelectual. A atitude era outra, diferente daquela do tempo do Mário Pinto de Andrade que nós chamávamos…

ES: A primeira república.

MV: A primeira república, sim. Ah, está bem informada.

ES: [risos] Me preparei um pouquinho. E para falar do afastamento do Mário Pinto de Andrade, da rotura que teve quando ele sai…

MV: Sobre isso também há pouco a acrescentar ao que está no livro. O Mário continuava como representante… era o nosso foreign affairs minister. E tinha por base sobretudo Paris. E entretanto, em Léopoldville, o Agostinho Neto, deixou-se enrolar por umas manobras políticas dos partidacos que havia em Léopoldville, e formou com eles uma frente, para se opor à frente da UPA, sem consultar o Mário. Aí o Mário escreveu uma carta a manifestar o seu desagrado. Como é que se faz uma coisa destas sem consultá-lo? A OUA, organização da União Africana, vai lá aproveitar para enviarem uma comissão especializada a Léopoldville para estudar o problema e saber o que é esta FDLA, qualquer coisa assim. E esta FDLA realmente não representava nada nesta luta. Esse fato, aliado à dissidência do Viriato e de outros do grupo do Viriato, levaram essa comissão da OUA a reconhecer a UPA como verdadeiro representante da luta angolana, da luta armada angolana. A UPA deixa de se denominar UPA para se denominar FNLA e forma um governo provisório no exílio. É isso. Isto foi uma consequência da formação da FDLA, contra a qual o Mário se tinha oposto. Portanto a partir daí o Mário e o Agostinho Neto nunca mais se entenderam.

ES: E depois, quando ele regressa, também continuaram os conflitos?

MV: Quando regressa aonde?

ES: Ao MPLA.

MV: O Mário depois não regressa tão cedo ao MPLA. Porque há essa segunda conferência de quadros onde ele também não participa, não é convocado, e as coisas… Mas aí, teve uma espécie de intriga política do Lara, do Lara ao lado do Neto, no sentido de ficar aí como eminência parda… O Mário tentou uma reaproximação justamente quando…

 

LD: Com o Reajustamento?

MV: Não o Reajustamento é depois em 74. Antes, quando foi da realização do filme Sambizanga em Brazzaville. Ele veio e tentou-se uma reconciliação, mas ali infelizmente nessa altura o presidente Neto estava quase sempre ausente de Brazzaville e quem estava a dirigir o MPLA praticamente era o Lúcio Lara, que era o representante especial de Agostinho Neto em Brazzaville. E portanto acho que o Mário ainda tentou até que o filme se realizasse em nome do MPLA, para favorecer o MPLA, mas isso exigia uma certa participação financeira. O Lúcio Lara disse logo que não tinha dinheiro para essas coisas de cinema e… Porque o Lúcio até que era também amigo da Sarah, porque a Sarah tinha estado em Paris e em Conakry, mas essa aproximação entre eles não deu resultados, aliás, o Agostinho tinha uma orientação muito mais esquerdista do Mário, o Agostinho e o Lúcio Lara, e penso que isto também contribuiu. De modo que houve essa tentativa de debate do Mário de Andrade, eu sou testemunha porque andei sempre com ele, sei que isso aconteceu. E eu lhe dizia: “E então, como é Mário, agora não consegues…” “Eh, pá! O que é que queres?! Recusam-se, não querem conversar.” Com o Mário tudo era diálogo. Ele tinha uma mentalidade de tipo francês, francês gosta muito de dialogar. “Eles não querem diálogo, eu também não posso chegar sem condições, dizer toma lá”… Então…

[A conversa sobre o filme Sambizanga continuou durante uma segunda sessão de entrevista, que teve lugar no dia 22 de agosto de 2023 em Lisboa]

 

ES: Se você pode contar um pouco como foi, como foram as filmagens de Sambizanga, e depois também aquele episódio que você conta no livro, de ser reconhecido no cinema.

 

MV

Ah, isso… Bom, esse é um outro episódio à parte. Acho que eu tinha… Depois de ter regressado da IV Região, eu fui enviado a um congresso internacional da juventude socialista no Chile e tive que fazer a rota Zâmbia - Moscovo - Cuba - Santiago do Chile. Portanto, eu fui e participei no último congresso em liberdade que houve no Chile, porque poucos meses depois o presidente Allende foi eliminado por um golpe de estado. Então eu tive que voltar outra vez por Cuba onde a minha mulher estava com os meus filhos a fazer um curso de laboratório, laboratório clínico. Pois, regressei, mas em vez de regressar para Lusaka onde eu estava na altura, regressei para Brazzaville. Então fui para Brazzaville. E estive à espera que me fosse autorizado por parte do MPLA e por parte das autoridades congolesas ir trabalhar no Hospital Central de Brazzaville e iniciar um curso de especialidade de cirurgia. Porque havia dois bons cirurgiões que eram coronéis franceses. Havia uma equipa francesa, sobretudo de cirurgia, a trabalhar nesse Hospital, onde eram todos militares. Então havia dois coronéis que eram bons cirurgiões e então eu falei ao presidente Agostinho Neto desta hipótese, disse: “Olha, nós na frente precisamos de medicina, sobretudo de medicina cirúrgica, peço que me autorizem a trabalhar aqui.” 

Mas enquanto demoravam, apareceu a Sarah com o Mário, o produtor, mais dois assistentes, uma amiga do Mário que era uma das financiadoras, lá em Brazzaville para fazerem um filme tendo como tema, ou como guião aliás, um livro do… como é que chama aquele? Luandino Vieira. Eu, como na altura estava sem ocupação e conhecia muito bem o Mário e a Sarah, sobretudo da Argélia, onde vivemos durante uns anos, ofereci-me a ajudá-los nos trabalhos, para fazer tudo o que fosse, inclusivamente chauffeur. E estava nisso todos os dias, a ajudar, a discutirmos sobre o filme, falarmos da maneira como as coisas seriam executadas. E não sei… Um dia chegou-se a uma altura em que era necessário o aparecimento de um mestiço, ou de um branco ou de um mestiço, para participar no filme numa cena que era uma cena de repressão, de agressão direta ao protagonista, que era o Sansão. 

 

LD: A cena do interrogatório.

 

MV: Era uma cena de maus-tratos, de agressão… E eu disse que não. Quem veio falar primeiro foi a Sarah e eu disse não, que me parecia que essa participação poderia ter uma má interpretação por parte dos angolanos, e disse que não. Ela foi falar com o Mário, o Mário veio falar comigo “Eh pá, tu tens todas as características…”. Até que finalmente me convenceram a participar. Não sei se já viu o filme?

 

ES: Já vi.

 

MV: Naquela cena violentíssima em que eu acabo por ter que dar um pontapé na cara do Sansão. Bom, o filme terminou. Os congoleses receberam muito bem o filme. Eu fui duas ou três vezes com outras pessoas e com o Sansão ver o filme, sem problemas. Meses e meses depois, estou em Angola e volto a ter contato com o Sansão, nós éramos amigos, tínhamos estado não na mesma zona de guerrilha, mas estivemos juntos na base da fronteira, e já éramos amigos do tempo de Léopoldville, portanto nos conhecíamos há muitos anos. E tínhamos uma grande amizade. Então, um dia, ele vem a minha casa e diz: “Ah, Mwambaka, hoje vão exibir o filme no cinema Miramar. Não conheces o cinema Miramar?” Eu fui mais para conhecer o cinema… Disse: Não, não conheço. E ele: “Eh pá, esse é que é um cinema, é o melhor da África”. E disse, bem vamos lá. E fui com ele ver o filme. E sentei-me, ele sentou-se ao meu lado. O Sansão era o indivíduo de maior porte que já andou na guerra. Devia ter um metro e noventa e tal e era um bom jogador de futebol. Eu, ao lado dele, estava meio escondido. Quando se deu a cena, alguém viu o Sansão, o Sansão era grande. E disse: “Está lá o artista do filme! Vamos lhe agradecer!” E outro que diz: “Oh! Mas já viste o mulato que está ao lado dele? Não é ele que… Vamos também lhe fazer o mesmo!” Levantaram-se três ou quatro e vinham… e o Sansão, que era guerrilheiro, dá um salto e puxa uma pistola, uma pistola Makarov, uma grande pistola dos oficiais russos, pega na pistola e diz: “O primeiro que avançar aqui para bater no Mwambaka leva um tiro! Eu não estou aqui para brincar! Vocês são burros, parvos!”

 

ES: As pessoas não tinham experiência do cinema? Não conseguiam distinguir ficção e realidade?

 

MV: Não… Foi uma reação instintiva, de tipos não preparados. E foi graças ao Sansão que voltei para casa vivo, senão não sei se voltava vivo…

 

 

[Entrevista editada de acordo com o entrevistado]

por Elisa Scaraggi
Vou lá visitar | 21 Novembro 2024 | Manuel Videira, Mário Pinto de Andrade