Marlene Dumas: Uma pintora da vida moderna
“Contra o Muro”, que esteve no Museu de Serralves, não é apenas uma viagem à obra e ao percurso de Marlene Dumas. É uma das mais importantes exposições de pintura dos últimos anos. E um reencontro, sempre renovado, com algumas das questões que marcam a vida da pintura contemporânea.
Numa das salas de “Contra o Muro”, pinturas de cabeças e rostos acompanham, entre a circunspecção e a indiferença, a conversa com Marlene Dumas (Cidade do Cabo, 1953). A artista responde desembaraçada e com humor às perguntas. Por vezes, surpreende-se, divaga, mas não perde o rumo, regressa sempre. Afinal, está num mundo cujos segredos conhece como ninguém: a sua pintura. De resto, o cenário da entrevista não foi casual: foi a própria artista que propôs a realização da entrevista junto às suas obras.
Esclarecido o contexto, convém dizer que Marlene Dumas é uma das mais relevantes pintoras contemporâneas. Alcançou um sucesso crítico que, embora não sendo consensual, é acompanhado por sucesso comercial e “Contra o Muro”, que esteve no Museu de Serralves até Outubro, promete ser um dos momentos mais singulares da sua carreira. Ao todo são 40 obras feitas na última década, incluindo algumas já deste ano - a grande maioria revelada em Abril, na Galeria David Zwirner, em Nova Iorque - e nunca antes mostradas na Europa. É provável até que dificilmente voltem ser apreciadas nestas condições num país europeu. Culpa de constrangimentos financeiros e logísticos do actual contexto internacional que muito provavelmente impedirão que voltem a ser reunidas.
Mas estes são assuntos relativamente mundanos. “Contra o Muro” é uma exposição marcante e, enquanto individual de pintura, um acontecimento. Por duas razões. A primeira revela-se naquilo que mostra de inédito da obra da artista: elementos arquitectónicos e construções humanas que identificam o conflito israelo-palestiniano como motivo pictórico; e pinturas que representam a natureza-morta, tema que durante décadas Dumas se recusou a trabalhar. A segunda é a obra, com as suas preocupações, desencontros e progressos, numa aventura individual que é também a aventura de toda a arte contemporânea atenta à realidade.
Representar o muro
A representação do mundo pela pintura, ou a pintura como forma de representar o mundo: comece-se por aqui. Porquê Israel e a Palestina?
“E porque não? Não sou historiadora ou política, mas penso que na nossa sociedade global continua a ser um drama muito importante, indissociável até de outros mais traumáticos como a II Guerra Mundial ou o Holocausto. Em 2010 ainda testemunhamos muitas coisas relacionadas com o que se vive no Médio Oriente. Não acho despropositado trazer o tema para a minha pintura.”
Foi a partir de 1976 que a artista, já a viver na Europa, vinda da África do Sul, descobriu as raízes europeias do conflito. Na verdade, o assunto tinha aflorado na série “Man Kind” (2002-2006), inspirada em fotografias de corpos e rostos muçulmanos - a série está em Serralves. Em “Contra o Muro”, porém, estamos diante de um cenário político mais explícito e de uma posição, assinalada pela representação do muro erigido por Israel (e de imagens da repressão exercida pelo exército israelita), que muitos interpretarão como pró-palestiniana. Por exemplo, o governo sedeado em Jerusalém, é um comprador improvável das pinturas “políticas” de Marlene Dumas. Ou não?
“Não sei [risos]. Quando inaugurei a exposição em Nova Iorque ouvi críticas. Disseram-me que este não era o caminho. Que eu não estivera lá, não conhecia a realidade. Compreendo essa perspectiva, mas não a aceito. Vivi o ‘apartheid’ na África do Sul, mas, por ter lutado contra esse regime, não faço de todos os negros anjos e de todos os branco demónios. O mesmo acontece aqui. Apenas quis representar um muro. Quando se vê o outro como inimigo, o efeito é devastador. Não apenas a um nível político mas num plano mais existencial”.
Marlene Dumas viveu e estudou na África do Sul até 1976, contornando como podia as limitações impostas pela censura, nomeadamente no meio estudantil britânico da Michaelis School of Fine Arts da University of Cape Town.
“Foram anos formativos, muito importantes. Estávamos longe da sociedade e era fácil escapar aos censores. Víamos coisas proibidas no clube de cinema [da escola]. Filmes do [Ingmar] Bergman, do Godard, do Alain Resnais”.
A relação com pintura era, entretanto, vivida de forma dolorosa, confusa. Mais natural parecia o afecto por certos fotógrafos: “Nessa altura não havia muitos pintores de que gostasse. Não conseguia gostar de Rembrandt. Não me ajudava na minha arte, ao contrário da fotografia da Diane Arbus e do Richard Avedon com quem sentia partilhar sensibilidades comuns e que me permitiam chegar à pintura de outra maneira. Da Arbus gostava da intensidade, o Avedon influenciou-me formalmente. Gostava dos seus fundos neutrais, sobretudos os das fotografias do pai antes de morrer. Tinha um distanciamento face aos retratados que me lembrava o Andy Warhol.”
O desejo da realidade
A relação de Marlene Dumas com a pintura iniciou-se assim por vias exteriores, “estrangeiras”. Na opinião da artista, não existiam outros caminhos: “Vivia inserida numa sociedade que não valorizava a pintura ou que a submetia a um ensino caduco. Não respondia aos meus desejos e aspirações. Chegava a sentir-me culpada por ser uma pintora, actividade que na África do Sul todos achavam insignificante e não tinha modelos. Vivia um conflito com aquilo de que gostava. Por isso, criei a minha própria história pessoal com o suporte.”
“Contra o Muro” parece retomar essa velha e difícil relação, reconciliando a pintora com géneros e temas como a abstracção que se insinua no muro de “Em Construção” (2009) e nos blocos azuis de “Barreira mentais” (2009).
“Sempre quis ser uma pintora abstracta, adorava os expressionistas-abstractos, mas a abstracção não era suficiente para mim, pois também queria a realidade. Esse foi outro conflito que experimentei”, conta. O impasse acabou resolvido, ou pelo menos atenuado, com o cinema da Nouvelle Vague. “Não deixo de pensar a pintura enquanto abstracção, enquanto construção de uma realidade. Não pretendo testemunhar a realidade, apenas confrontar-me com ela. Daí, para mim, nos meus tempos de estudante, a importância de filmes como ‘Hiroshima mon amour’, do Alain Resnais. Combinava uma história de amor, uma dimensão política ou documental e uma reflexão sobre a linguagem artística, que naquele caso se tratava do cinema. Era essa coexistência que queria encontrar na pintura”.
Uma arte ou uma pintura que possa representar, também, o que é estar apaixonado, como sugeriu numa entrevista? “Ah [risos], aí queria apenas mostrar os meus ciúmes em relação ao cinema e à música pop. Gosto de uma arte inteligente, tanto estética como conceptualmente, mas [que seja] também sensual e emocional. Encontro-a em artistas como Luc Tuymans, Louise Bourgeois, Francis Bacon ou Steve McQueen.”
O interesse pela representação e a vontade de abordar motivos narrativos não implicaram um afastamento das premissas do conceptualismo, abraçadas no início da carreira. Pelo contrário. A reflexão sobre as possibilidades da pintura, e a relação desta com a fotografia, bem como o questionar das imagens, foram atitudes cultivadas e com frequência passadas para o papel em pequenos textos assinados pela pintora. O canadiano Jeff Wall, conhecido pelas suas fotografias de situações do dia-a-dia, foi, nesse sentido, uma inspiração. “Quando se interroga sobre o lugar e a condição do pintor da vida moderna, e faz do médium fotográfico um instrumento pictórico, [o Jeff Wall] enuncia algumas das minhas preocupações e ideias. [Ele mostrou-me que] era possível e legítimo aceitar o desafio que certos temas nos colocam” e, dessa forma, abordar o quotidiano sem produzir imagens anedóticas ou propaganda.
Pensar as imagens com a pintura
O gesto porém acarretou críticas, algumas dirigidas à técnica de Dumas. “Há pintores acham que sou uma má pintora. Dizem que a minha pintura não tem ‘pintura’ suficiente. Mas para mim tem sido um desafio fazê-la com meios mínimos. Talvez seja melhor desenhadora que pintora. Aliás, as minhas melhores pinturas são como desenhos. Estou mais próxima do Picasso do que do Matisse.”
Outra crítica (injusta) tem a ver com a selecção das imagens fotográficas que antecede o trabalho sobre a tela. “Faço-a desde jovem, sempre gostei de imagens. É um método e um gosto que partilhei com o Richard Prince e a Barbara Kruger e outros artistas da Pictures Generation. Mas, talvez por ter ficado na Europa, não desenvolvi a mesma atracção pela publicidade e o design que eles.”
Data deste período um certo afastamento de Marlene Dumas de práticas e processos como a apropriação, a colagem e o uso do texto, que havia experimentado entre os anos 70 e 80 do século XX. “Quando fiz as primeiras pinturas de cabeças e rostos, em meados da década de 80, quis logo pôr o título por baixo da tela [risos]. Não sei o que teria acontecido se tivesse ido para Nova Iorque. Se calhar, tinha ficado parecida com a arte do John Baldessari ou da Barbara Kruger”. E isso seria mau? “Não sei, havia ali um formalismo demasiado frio e rígido, quando eu queria o calor, a emoção da pintura dos loucos ou do expressionismo-abstracto. Mas a reflexão sobre as imagens sempre me interessou e continua a interessar-me. Por exemplo, que tipo de imagem é hoje a do homem mais temido? O rosto do ‘criminoso’? Aquele que tememos? É o muçulmano, como há sessenta anos era o negro. Quero fazer uma pintura tradicional, ‘parecida’ com a do século XIX, mas também quero pensar a forma como as imagens influenciam o nosso pensamento.”
Tornemos à natureza-morta, género que durante décadas Dumas se recusou a pintar e que em “Contra o Muro” está representado em “Caridade” (2010), “As Vinhas da Ira” (2009) e “As Vinhas da Abundância” (2009). “Quando era estudante, detestava-o. Não significava nada para mim. Era uma coisa burguesa, ‘kitsch’, sem valor. Uma composição com a qual não conseguia lidar. Mais tarde apercebi-me que não era minha inimiga. Lembro-me de ver, num catálogo, uma natureza-morta com três pedaços de salmão [“Tres rodajas de salmón”]. Era uma pintura do Goya (1746 - 1828), muito simples, com todos os elementos formais do género, muito comovente. E percebi que era possível fazer naturezas-mortas com a mesma força e emoção”.
Uma reconciliação, portanto? “Quando somos jovens artistas queremos fazer sempre coisas diferentes, novas, mas à medida que envelhecemos, se tivermos sorte, aquilo que procuramos, por vezes inconscientemente, surge de uma forma inesperada”.
Assim, também se deitam abaixo (velhos) muros.