E agora, Black Panthers?

Os cartazes de combate de Emory Douglas, Ministro da Cultura dos Black Panthers, foram uma arma apontada à violência racial da América dos anos 60. A partir de hoje, estão em “All Power to the People. Então e Agora”, na Zé dos Bois, em Lisboa

O filme começa com uma frase pintada na fachada de uma casa: “Black is Honest and Beautiful”. Logo a seguir, uma criança, mulheres, mais crianças, homens, exibindo, indiferentes à câmara, uma altivez suave, radiosa. Alguns, ao som de uma banda de rhythm’n’blues, dançam e levantam o punho. Até que uma voz-off esclarece: “Isto não é um piquenique em Oakland. Isto é um comício organizado pelos Black Panthers”.

O filme chama-se “Black Panthers - Huey!” (1968), foi realizado pela cineasta francesa Agnès Varda e pode ser visto no programa paralelo à exposição “All Power to the People. Então e Agora - A arte revolucionária de Emory Douglas e os Panteras Negras”, que inaugura hoje na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Trata-se apenas de uma pequeníssima parte de um arquivo, de uma história. Ainda assim, há qualquer coisa naqueles planos que não se diluiu noutras imagens. Uma tensão. Como se a altivez ali celebrada estivesse sob ameaça, em luta. A mesma luta que, depois, reencontramos no trabalho de Emory Douglas, artista visual e antigo Ministro da Cultura do Black Panther Party. A luta contra o racismo, a brutalidade policial, a pobreza e a exclusão social. Those were the sixties.

A exposição divide-se pelas duas galerias da ZDB. Na primeira, encontramos material que documenta e revê a história do Black Power Movement e dos Black Panthers (livros, filmes, jornais, discos), com remissões para outros grupos políticos da mesma época, como o Students for a Democratic Society, o Revolutionary Youth Movement, o Peace and Freedom Party ou a Weather Underground - toda uma narrativa da imprensa da contracultura americana disponível para consulta. Na segunda, dominam os cartazes, os desenhos, as fotomontagens e as ilustrações de Emory Douglas. Não enquanto obras isoladas, mas no suporte para o qual foram criadas: o jornal dos Black Panthers. Contam-se, assim, duas histórias. A do artista, e a da sua circunstância.

E a circunstância da América dos anos 60 era de tempos agitados. Em 1965, os afro-americanos não podiam votar, sair dos guetos ou aspirar a outras profissões que não fossem as de jardineiro, segurança ou carteiro. Quando ousavam protestar, arriscavam a vida. Morriam. “Nesse tempo existiam duas forças com diferentes estratégias para derrubar essa barreiras”, recorda um dos convidados do programa, o historiador e antigo “black panther” Billy X Jennings. “Uma era liderada por Marthin Luther King, que acreditava na não-violência e no protesto pacífico. A outra era liderada por Malcom X, que defendia que devíamos combater o racismo como homens. Não podíamos continuar a ser ‘pretos’. Éramos homens, homens africanos. Ele foi o primeiro a dizer isso, a dar-nos uma identidade. E as suas ideias influenciaram o HueyNewton e o Bobby Seale”.

Foram estes dois jovens estudantes (tinham pouco mais de 20 anos) que fundaram em 1966, em Oakland, Califórnia, o Black Panther Party. Exigiam, entre outras coisas, educação e habitação decentes, emprego total e o fim do serviço militar obrigatório para os afro-americanos. Um dos pontos do programa era particularmente inadiável: o direito à autodefesa face à violência policial (o nome completo do partido era, afinal, Black Panther Party for Self-Defense). E o partido passou à acção: “De duas em duas semanas, em Oakland, um afro-americano era morto pelos polícias porque pensavam que estava armado. E para evitar isso passámos a patrulhar a própria polícia. O Huey Newton estudava Direito e descobriu que podíamos empunhar armas. Começámos a seguir os carros e a observar a forma como trabalhavam. Só parávamos quando abordavam um afro-americano. Mantínhamo-nos à distância legal e dizíamos à pessoa para não resistir. Nunca houve nenhum incidente”.

Por esta altura já Emory Douglas era o Ministro da Cultura dos Black Panthers (que se assumiam, mesmo que apenas simbolicamente, como um governo dentro do Governo). O seu percurso como artista, porém, começara um pouco antes: “Tinha estado envolvido com o Black Arts Movement [importante movimento literário afro-americano liderado por Amiri Baraka]”, revela em conversa telefónica ao Ípsilon, a partir de São Francisco. “Fiz adereços para peças deles, posters e cartazes, e as pessoas foram conhecendo o meu trabalho. Até que um dia um grupo de estudantes convidou-me a participar numa reunião. Queriam organizar uma homenagem à viúva do Malcom X e falaram-me de uns tipos que iam fazer a segurança da cerimónia. Eram o Huey Newton e Bobby Seale. Perguntei logo se podia juntar-me a eles e no outro dia fazia parte dos Black Panthers”.

Um dos primeiros projectos de Douglas para o partido foi a definição do grafismo do jornal. Seguiu-se o redesenho do símbolo da pantera e a criação da figura do porco para simbolizar os polícias violentos e as suas acções brutais sobre a comunidade. A antropomorfização (propositadamente grotesca) estender-se-ia mais tarde aos ratos (políticos) e aos abutres (capitalistas) que ameaçavam a comunidade, representada por mulheres armadas ou crianças e idosos sujeitos à pobreza, às doenças ou à indiferença do Governo.

Apetece chamar-lhe arte política. “Nos anos 60 chamavam-lhe arte revolucionária. Hoje vejo-a como uma arte de comentário social. Que procurava promover a autodeterminação das pessoas, identificar os obstáculos e os desafios com que elas se confrontavam. Inspirá-las, educá-las. Era uma forma de comunicar com a comunidade. E de lhe dar outra perspectiva que não a dos media mainstream. Contava a nossa história, do nosso ponto de vista”.

O legado dos Black Panthers

Alguns trabalhos, em particular os publicados no jornal, trazem à memória as colagens e as fotomontagens do alemão Charles Hartfield (1891-1968) ou certas estratégias visuais dos construtivistas russos. O artista aponta outras fontes: “Tínhamos acesso aos cartazes políticos que chegavam do Vietname, da China e da Palestina, mas foram sobretudo os cubanos que me influenciaram”.

A arte de Emory Douglas, entretanto, rapidamente ultrapassou fronteiras raciais, nacionais e geracionais. E hoje é reconhecida por artistas como Sam Durant, o português Rigo 23 ou instituições como o Museum of Contemporay Art, em Los Angeles que em 2007 lhe dedicou uma retrospectiva. Vale a pena, todavia, lembrar sempre o lugar onde tudo começou, por que tudo começou: a comunidade. “Entre 1967 e 1968 fizemos dela a nossa galeria. Antes de distribuirmos os jornais, colávamos edições antigas e cartazes nas vitrinas, nas janelas, nas lojas, nas paredes e nas vedações. Sempre com a autorização das pessoas.”

Recuperar a arte de Emory Douglas significa também desmistificar e dar a conhecer o legado dos Black Panthers. “O impacto foi enorme na comunidade negra, mas continuamos fora dos livros de história. Somos constantemente esquecidos na história da luta pelos direitos civis”, desabafa Bill X Jennings. A revolta do historiador é compreensível. A organização desenvolveu programas sociais inéditos, como os pequenos-almoços grátis para crianças, que chegaram a embaraçar o Governo da Califórnia. Prestou assistência a idosos, fundou clínicas que ofereciam tratamento médico gratuito, com a colaboração de médicos e enfermeiras, e difundiu programas de rastreio de doenças graves entre a população negra. “O grande trabalho dos Black Panthers foi lutar por aqueles que haviam de chegar. Foi o que fizemos: ajudar a geração seguinte a perceber que tinha direitos, que não podia ser maltratada pela polícia, que podia protestar”.

Chegados ao século XXI, os dois antigos “black panthers” admitem que, apesar dos dramas que o Katrina desnudou, as coisas conheceram transformações, positivas. Mas também que ainda há e haverá no futuro muitas coisas por que lutar. “Se as pessoas se compreendem e conhecem um pouco melhor, é porque lutaram juntas contra a guerra, por empregos e vidas mais dignas. Porque tinham os mesmos objectivos. Foi isso que os anos 60 mostraram. Uma luta comum que modificou as consciências, em particular a da população negra”. Those were the sixties. Então e agora?

Party for your right to fight

O programa de cinema paralelo à exposição, que decorre no Cinema Nimas até 6 de Março, em colaboração com a Fundação de Serralves (onde Emory Douglas esteve esta semana no seminário “Uma Arte Revolucionária”), inclui um conjunto de filmes que permitem conhecer mais profundamente o Black Panther Party e os seus membros. Destaquem-se por exemplo, “Comrade Sister: Voices of Women in the Black Panther Party”, de Phyllis Jackson e Christine Minor, ou “Aoki, a Documentary Film”, realizado durante os últimos cinco anos da vida de Richard Aoki, “black panther” de origem japonesa.

Mas a representação no cinema deste movimento não se esgota nos filmes documentais. Basta recordar “One Plus One/Sympathy for the Devil” (1968), de Jean-Luc-Godard, onde militantes negros citam passagens de “Soul on Ice”, autobiografia do Ministro da Informação, Eldridge Cleaver. Ou, já nos anos 90, filmes como “Panther”, de Mario Van Pebbles (um “biopic” publicamente criticado por Bobby Seal), ou o reverso liberal e branco deste último que é “Forrest Gump”, de Robert Zemeckis (revejam-se as cenas do campus universitário).

É no entanto na música que as referências mais abundam: a relação entre os Black Panthers e a cultura popular foi, aliás, construída ao ritmo do hip-hop. Os Public Enemy foram os primeiros a adoptar a retórica e o aparato visual “panther”. Um dos seus membros, Professor Grif, intitulava-se Ministro da Informação em homenagem a Eldridge Cleaver, e em “Party for your right to fight”, de “It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back”, a palavra “party” tem um claro sentido duplo. KRS-One, Paris, Digable Planets, Digital Underground, Dead Prez, Common e o colectivo Asian Dub Foundation também evocam nas suas letras a memória do partido.

Mas só um músico pôde reclamar uma descendência directa dos Black Panthers. A sua mãe, Afeni, foi uma activista “panther”, condenada por conspiração e terrorismo em 1970. Chamava-se Tupac Shakur, e morreu num tiroteio.

 

Artigo originalmente publicado no suplemento Y do jornal Público, 4/3/2011 

por José Marmeleira
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