Ação cultural, instrumento para igualdade, conversa com CHICO CÉSAR

Francisco César Gonçalves nasceu em Catolé da Rocha, Estado da Paraíba, há 46 anos. Aos dezasseis anos foi para João Pessoa, onde se formou em jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba, ao mesmo tempo em que participava no grupo Jaguaribe Carne, fazendo poesia de vanguarda. Mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como jornalista e começou a cantar suas composições. Em 1995 lançou o primeiro disco Aos Vivos. Seguiram-se Cuscuz, Clã e muitos mais, centenas de shows e muitas digressões no Brasil, pela Europa e resto do mundo. Chico César impôs-se como um dos grandes talentos da música brasileira e da world music. Muitas das suas composições se tornaram grandes sucessos, na sua voz ou de outras grandes estrelas da MPB. “Mamã África” e tantos outros…

Contra as prováveis expectativas do leitor, a nossa conversa com Chico César não aborda a sua carreira nem criação musical. Ao artista que, há mais de vinte anos, expressa com orgulho a sua ascendência africana, dirigimos perguntas sobre o engajamento cívico e social que o levou a assumir o cargo de Secretário de Cultura na cidade de João Pessoa (há um ano). Implicou deixar São Paulo para dedicar a maior parte do tempo à cultura da Paraíba. Democracia racial e o Estatuto de Igualdade Racial (semanas antes da recente passagem da Lei pelo Senado Federal) foram outros temas abordados.

Chico César

Como tem sido investir no potencial cultural da Paraíba?

Muita gente vê a região da Paraíba como cheia de problemas, carências e deficiências. Eu encaro-a como uma região de potencialidades, ao contrário de boa parte das pessoas. É privilegiada do ponto de vista cultural, com reisado, congada, ciranda, coco, maracatu, repente, uma região que tem uma excelente orquestra sinfônica, com uma tradição já vincada de música instrumental e de orquestra. Dali saíram grandes nomes da música popular brasileira e do mundo, como Sivuca, Jackson do Pandeiro, Elba Ramalho, Zé Ramalho… Atores como Luís Carlos Vasconcelos, cineastas como Walter Carvalho e o irmão Vladimir Carvalho, Linduarte de Noronha cujo documentário, Aruanda, é filme seminal para o Cinema Novo, como foi reconhecido tanto por Glauber Rocha como por Nelson Pereira dos Santos.

Então não posso ver essa região como carente mas sim potente. É uma responsabilidade investir na força humana e na herança cultural dessa região. Assumi o cargo porque percebo esse potencial e creio que tendo-me tornado uma figura pública fora do próprio estado, nacional e até de certa forma internacionalmente, posso chamar a atenção para as potencialidades dessa região, para o público externo e interno. Isso pode levantar a auto-estima das pessoas que trabalham com cultura na cidade pois elas podem pensar: “o cara poderia morar em qualquer outro lugar no mundo, escolheu morar e trabalhar aqui, e ficar assinando papéis, contratos, vindo na passagem de som de outros artistas, artistas locais”. É importante. Morei durante 25 anos em São Paulo e sempre mantive a ligação, por causa da família e depois através do Instituto Beradero. Portanto, sou irremediavelmente ligado à capital do estado.

A casa do Beradêro

Em 2001, Chico César criou oficialmente o Instituto Cultural Casa do Beradêro. Hoje, com a sede concluída, o ICCB começou a ampliar suas atividades para as demais áreas artísticas, oferecendo oficinas de Capoeira, Dança, Artes Visuais e Teatro, além de estar firmando parceria com a Universidade Estadual da Paraíba, Campus IV de Catolé do Rocha, para o desenvolvimento de oficinas na área de literatura.
A Casa de Beradêro é iniciativa de uma freira, irmã Iraci, que começou há 15 anos, com crianças, ensinando-lhes música e canto coral. Resolvi me juntar a ela há mais de dez anos. Fizemos o Instituto Cultural Casa de Beradêro, para procurar um caminho para jovens da minha cidade Catolé da Rocha, através do contato com a arte e cultura. Os jovens estudam orquestra, informática, teatro e artesanato. Durante muito tempo, caminhamos sozinhos. Recentemente, conseguimos apoio da Petrobrás e agora tornou-se ponto de Cultura, quer dizer que nosso Instituto está apto a receber verbas federais. Começamos com 30 crianças e agora temos 300.
Acho que o acesso aos bens culturais quando se é muito jovem é de uma riqueza inigualável, como instrumento para a vida. Tive a sorte, quando era menino em Catolé da Rocha, de estudar num colégio de freiras alemãs porque minha tia lavava roupa das freiras e tive uma bolsa. Também trabalhei numa loja de livros e de discos, pude ouvir muitas músicas, a música de Belém do Pará, e também os Beatles, músicas do Brasil e do mundo. Tive mestres espalhados por aí que me indicavam livros para ler e também me tiravam livros da mãos dizendo “você ainda não tem idade para ler isso”, e me botavam discos para  escutar… A idéia no Instituto é de ter um lugar em que mestres de várias áreas façam isso com muitas crianças ao mesmo tempo. O projeto não visa transformar trezentas crianças em artistas, mas pensamos que este contato é fundamental. Já temos dez alunos que são mestres dos mais novos, que aprenderam e que agora dão sua contribuição.

 

Geração democrática
O jovem Chico César participou nas movimentações do final da ditadura militar, na luta pela democracia que viria a ser consagrada na constituição de 1988.

Nos anos 80, em João Pessoa, não tínhamos dinheiro nem poder, éramos anti-poder. Fizemos muitos movimentos: o movimento de estudantes independentes; o Musiclub da Paraíba; um movimento chamado “Fala Bairros” que consistia em juntar artistas de um bairro para tocar noutro e trazer artistas daquele que foi público. E esses vários movimentos tiveram importância na nossa formação e no perfil cultural da cidade. Dessa geração, eu, que saí e voltei, o ator Luís Carlos Vasconcelos, que saiu e voltou antes de mim, e artistas como Pedro Osmar, que ficaram e se dedicaram a trabalhar aqui. Acredito muito na possibilidade os artistas se unirem para estimular novos talentos, mas, mais do que fazer uma política para artistas, fazer uma política para a sociedade, para a comunidade.

Nós trabalhamos com oficinas nos bairros. Logo que cheguei pedi para despachar não apenas no escritório central, mas levei o gabinete para os bairros. Era uma forma de voltar a conhecer a cidade e da cidade perceber que a cultura não é um escritório, que o governo são as pessoas, que os bairros têm poder e as periferias também são centro. A primeira coisa que fiz foi isso… muito importante! Fizemos o circuito cultural das praças, com shows basicamente com artistas locais; começa em setembro e termina em fevereiro. São 14 praças recebendo música, cinema, dança, teatro, ao ar livre numa época que não chove, a partir de março e fevereiro a gente pára.

 

Racismo e democracia

Em 1988, ano da nova constituição democrática, celebrou-se o centenário da abolição da escravatura no Brasil. O movimento negro ganhou expressão, conquistou espaço e a democracia racial foi questionada. Como viveu isto?
A minha geração chega nos anos 90, quando muitas questões da presença do negro já estavam sendo encaminhadas. De certa forma entramos num momento de otimismo, de mudança, de redemocratização do país. Tem a questão do negro e a questão do índio, a do Negro tem visibilidade porque é mais numeroso, com vários porta-vozes, a do índio não e é importante resgatá-la, pois são muito recusados na sociedade brasileira. Quando se fala de índios, diz-se que eles têm direito a não sei quantos quilómetros de terra, a helicóptero, camionetas, espingardas das forças armadas e que, quando os estrangeiros querem ocupar o Brasil, vão direto aos territórios dos índios, que os recebem de braços abertos e são fáceis para fazer negócio. As pessoas acham que os índios são ameaças ao Brasil. É preciso desmontar esse raciocínio e tentar entender essa população.
Paraíba não é um estado que tenha maioria de negros. As pessoas se assumem mais como caboclos, vê-se pelo jeito que as pessoas se vestem, pela atitude. É uma negritude quase invisível, que se esconde na atitude e na roupa do caboclo. No entanto, tem alguns Quilombolas. O filme Aruanda foi feito numa comunidade quilombola. Com as políticas do governo federal, os remanescentes de quilombos estão se assumindo enquanto tal. E aqui, na Paraíba, próximo de João Pessoa, tem um quilombola com presença maciça de evangélicos, então você vai lá, e propõe fazer algo que tenha a ver com cultura negra, africana, coco, batuque… Isso aí é coisa do demônio! Onde chegam os evangélicos, esses evangélicos radicais ortodoxos, não há ponto.

Descendo da herança dos cantautores, da música de protesto. Muitas das minhas canções são de intervenção: “Fome”, “Barriga do homem”, “Dá licença”, “Respeite os meus cabelos brancos”. Acho importante fazer música de intervenção, sou admirador de artistas em que vejo um engajamento: Bob Marley, Bob Dylan, Joan Baez, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Desde que comecei a cantar, abordei a questão negra. Quero expressar a alegria da negritude, a auto-estima. “Mamã África”, “Mandela”, “Fila”, são canções que trazem essa alegria de ser negro, o orgulho, algo de que nos orgulhamos.

 

Chico César foi tirar uma novo bilhete de identidade….

A funcionária quis fazer um favor e disse: “Chico você é o quê? vou colocar pardo!” Respondi: “Sou Negro!” E ela: “Negro, que é isso?” E eu disse: “Negro sim, coloca aí…” Ela não achava bom para mim colocar negro. E comigo estava minha sobrinha para fazer a identidade e a funcionária: “Então sua sobrinha?” Disse: “Põe negra também.” E a funcionária: “Coitada ela não é negra.” Ela pensava que iria prejudicar. Falei que ela, minha sobrinha, devia decidir e acho que eles puseram parda. Ela só queria ser simpática mas estava a refletir uma atitude racista.

Chico César e Ray LemaChico César e Ray LemaO Estatuto de Igualdade Racial
Ariel de Bigault_ O Estatuto de Igualdade Racial foi (des)aprovado no Senado a 16 de Junho de 2010. A versão inicial forjada pelo senador Paulo Paim em diálogo com as entidades e as personalidades do Movimento Negro, foi radicalmente alterada pelos senadores, liderados por Demosthenes Torres (DEM-GO), presidente da Comissão de Justiça e relator da matéria.
O projeto de Estatuto de Igualdade Racial foi lançado no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, e seguiu um caminho tortuoso desde o início do primeiro governo Lula. A proposta de Lei apresentada em 2009 propunha uma mudança radical de perspectiva sobre a questão racial. Reconhecia a discriminação exercida contra os Afro-brasileiros, assim como a contribuição histórica e cultural dos negros vindos de África, e estipulava cotas no ensino superior, na função pública, nas empresas e nos candidatos dos partidos. Em novembro de 2009, os deputados impuseram uma série de cortes e alterações mas, ainda assim, a Lei conservou aspetos importantes de políticas afirmativas e cotas. A supressão destas orientações decisivas foi a condição que os senadores do DEM e de outros partidos impuseram ao Secretário responsável pelas Políticas de igualdade Racial, Elói Ferreira de Araújo  e ao senador Paulo Paim, e ao próprio PT, para que o Senado aprovasse finalmente o Estatuto. O senador Demosthenes Torres ainda conseguiu impor a supressão das expressões “derivadas da escravidão”, “fortalecer a identidade negra” e “racismo”. A capoeira, os Quilombolas e o ensino da história da África e dos brasileiros de ascendência africana são os poucos salvos do naufrágio. E assim foi, o Estatuto passou, numa versão “sem caráter”.

(esta conversa com Chico, muito a favor da versão inicial da Lei, foi realizada antes da passagem pelo Senado)

Chico César_ Pois é, o Estatuto não muda a mentalidade. Mas ele propõe, coloca as questões para que a sociedade, na prática, no dia-a-dia, perceba que é um objetivo para caminhar mais. No Brasil, a gente vive um momento em que se colocam objetivos para serem alcançados e a sociedade vai caminhando. Não acho exagerado optar por políticas de afirmação, através de cotas. A minha proposta é que se pegue os filhos das classes beneficiadas durante 500 anos e bote para cortar cana. Na verdade as pessoas só vão entender o valor positivo e negativo quando você pegar os filhos dos Setúbal, das famílias ricas do Brasil e não é dar quotas para os negros, mas para os brancos cortarem canas, trabalharem na construção civil e no metrô. Você tem uma classe privilegiada, tem de ir ao encontro da outra parte, aquela que vai caminhando. Tem que pegar os médicos, os administradores e botar nos interiores do Brasil. Se você pega um mapa e diz que vamos aplicar 80 por cento das nossas políticas públicas onde vivem as maiorias negras, aí você vai igualmente beneficiar os descendentes pobres dos brancos e os descendentes pobres dos índios, que vivem juntos. Se você pensar vou colocar hospital ali, vou colocar escola ali, será uma política para uma maioria pobre. A orientação racial deve servir de orientação para as políticas públicas, se você pensar aonde estão morando os negros, aí estarão certamente os mais pobres do país, porque numa mesma casa, você tem gente mais escura e mais clara. Assim, o Brasil caminhará mais rapidamente para a igualdade.  

 

Democracia representativa

A representação federal (deputados e senadores) conta somente com 5 por cento de afro-brasileiros. E nestas eleições de novembro, a proporção de candidatos negros não é muito melhor. Porquê e como isso é possível no país que se auto-proclama campeão da democracia racial?

É uma questão histórica, a democracia representativa não tem sido o melhor canal de expressão dos anseios dos movimentos populares. Existe um desgaste imenso da democracia representativa no Brasil. Temos democracia ativa nas comunidades, nas organizações, e os negros estão ligados a estes movimentos, às associações de moradores, culturais, comunidades de candomblé, agremiações religiosas, grupos de música. Acho que cada vez mais as ONGs, as associações de bairro e de moradores, têm peso. A questão não é racial mas a capacidade de representar. O próprio Lula quando foi parlamentar não foi um grande parlamentar, ele não conseguia colocar as suas idéias, ficou entediado com aquelas conversas, ele era homem de uma outra prática: social e sindical.

 

O engajamento partidário

Muitos dos poucos líderes políticos negros não estão filiados nos grandes partidos. O próprio PT, durante muito tempo, foi reticente em admitir a questão racial. Assim, muitos militantes negros vão para o PCdoB ou o Partido Verde.

As questões específicas tem mais espaço nos partidos menores. O próprio Partido Verde há vinte anos, surgiu com propostas estranhas, de defesa da ecologia, das focas, da arara azul, enquanto tinha montes de gente passando fome! Quando líderes negros querem levar suas questões para os grandes partidos, não encontram interlocução. Então, as causas específicas encontram mais eco nesses ambientes pequenos. Eu fui filiado no PT no começo dos anos 80, era o rapaz de 16 anos que atendia o telefone na sede do PT em João Pessoa. Não havia muitos negros porque naquela época os negros estavam mais ocupados em imitar Michael Jackson, eu imitava o Gilberto Gil. Hoje não pertenço a nenhum partido, até isso me dá mais liberdade. O Prefeito de João Pessoa foi do PT mas saiu e foi para o PSB de Ciro Gomes.

Nós, artistas, somos autônomos durante toda a vida, com um partido, você fica preso. É melhor apoiar pontualmente o movimento, e levar a crítica da sociedade ao seio dos partidos e da discussão política. Porque, muitas vezes, o olhar fica muito fechado, as pessoas fazem tudo pelo partido, esquecem que a gestão não é para o partido, mas para todo o mundo.
Muita coisa mudou nesses últimos anos. Na cultura, gente que era invisível, manifestações que eram invisíveis, já na época do ministro Gil, ganharam visibilidade. A política que foi desenvolvida pelo Ministério da Cultura abrange muitos ou todos os Estados do país, do Ceará a Maceió… não é mais somente o eixo Rio-São Paulo. As pessoas têm que entender que o Brasil avançou nos últimos anos de uma forma irreversível.

 

página de Chico César


por Ariel de Bigault
Cara a cara | 5 Julho 2010 | Brasil, Chico César, cotas, democracia racial, Estatuto de Igualdade Racial, música brasileira, música de intervenção