O recalcamento do colonialismo, a partir de Vitalina Varela

Que marcas deixou o colonialismo na língua portuguesa? Que marcas são essas, das quais não se pode ou não se sabe falar, em Portugal? Em Vitalina Varela, estas questões atingiram-me com a clareza de um murro no estômago. 

O filme de Pedro Costa é feito a partir da linguagem, em substância, que corre nas ruas, onde o inconsciente se faz ouvir, nos enlaçamentos da fala que vêm de além, cuja análise convoca o sujeito do ponto de vista psicanalítico, mas também o sujeito político na sua construção social. 

Pedro Costa exibe uma notável capacidade de escuta, recorte e registo desse material que ele próprio suscita e provoca, e para tanto, como diz o próprio, tem de estar realmente próximo de uma fonte. Mas Vitalina Varela não é uma obra expositiva, de reprodução documental, à superfície. Com uma fotografia meticulosamente concebida – na cor, no contraste entre luz e escuridão, nas várias tonalidades da sombra… – neste filme, tudo tem uma qualidade irrepreensível, trata-se de uma experiência estética de tal modo intensa, forte que, pesada em toda a sua riqueza, torna-se difícil de gerir.

Inteiramente falado em crioulo cabo-verdiano – língua com origem na apropriação da língua do colonizador, mesclando empréstimos de línguas bantu e outras, aquartelada nos bairros pobres de Lisboa, recalcada na escrita (oficial e administrativa), como aliás os outros crioulos portugueses, cada um numa melodia diferente. Precisei de legendas para compreender o que era dito. 

Vitalina Varela, filme de Pedro Costa (2019)Vitalina Varela, filme de Pedro Costa (2019)

Vitalina chega a Portugal. Toda a vida esperou pelo marido Ventura, em Cabo Verde, toda a vida não, quarenta anos; a sua vinda a Portugal sempre adiada: esperou quarenta anos para vir para Portugal, tal como os israelitas no deserto, nas fronteiras da terra prometida. Mas Vitalina já não vem a tempo de rever o marido, morto há três dias, enterrado, já nem o corpo pode velar. Morto há três dias, como no mito cristão da ressurreição. 

Se logo na primeira cena do filme vemos Ventura levado em braços, numa rua junto ao cemitério, só o ouvimos depois, já morto, e ele diz “a vela cai no colchão”, mas soa “a vela cai no caixão”. Nessa cena, Joaquim Ventura afirma a dificuldade da vida que levou, da fome, da exploração, questiona o seu lugar de corpo, o lugar de homem, na casa, no trabalho, no beco… Sem lugar, está-se vivo ou morto? No colchão, ou no caixão? Pois o filme é delimitado temporalmente por duas mortes: a de Ventura e a de Marina, ambas num colchão, ambas apontando para o adormecimento como morte, um sono sem sonhos, morte simbólica: “Ele não está morto. Ele está apenas dormindo” diz-se de Ventura. Um morto não deseja, onde está o lugar do desejo? Onde estão os sonhos que lhe habitam o corpo? Não é por acaso que os dois mortos do filme se chamam Ventura e Marina, não é inócuo, não cai no vazio: essa aventura marítima, que na expressão infanto-juvenil do Estado Novo distraía do colonialismo português.

 

Da dificuldade de um lugar de exclusão 

A língua que alguém fala, onde é falada, opera sobre o ser falante, situa-o, fá-lo habitar um certo lugar, esse lugar Outro. Também a cor da pele e as designações que lhe são atribuídas, o local de onde provimos, a família, a história, tudo isso marca. Para os homens e mulheres que vêm de países outrora colonizados por Portugal, sobretudo dos africanos, esse é um lugar muito difícil no que respeita à subjectivização, como Joaquim Ventura, o morto, bem revela.  

Se falo destes crioulos como se de identidade se tratassem, como se os sujeitos racializados que habitam os bairros pobres de Lisboa ocupassem todo o território de exclusão, ou como se a Cova da Moura fosse a representação espacial de todos os sujeitos racializados e excluídos, é porque assim me parece, não de um ponto de vista quantitativo, como é evidente, mas, a partir da perspectiva deleuziana, de quem sabe que é a minoria que opera, em potência, o devir revolucionário, possibilidade estrita nos limites da maioria. Ou seja, só a partir de um lugar de margem é que a minoria pode operar a transformação. 

 

Claridosos nas trevas

Vitalina chega descalça ao aeroporto, outras mulheres, vestidas no uniforme da empresa de subcontratação para prestação de serviços de limpeza, esperam-na; dizem-lhe “vai-te embora, aqui não há nada para ti”. Uma vez em Portugal, embora haja uma dificuldade imensa num lugar a ocupar, o regresso parece impossível e isto tanto vale para Vitalina como para muitos outros: “Estava esperando minha passagem de avião para Portugal há 40 anos. Eu ficarei pelo resto da minha vida”. Essa dificuldade em ter um lugar, ela é dita de várias formas: aqui só haverá lugar para mortos, adivinha-se, não há lugar para vivos desejantes. Assim o padre (que também é Ventura) lhe diz “nada resta para você aqui”, por outro lado, diz-lhe que também está de luto: “você perdeu seu marido, eu perdi minha fé nessa escuridão.”

Vitalina tem, de resto, um luto para fazer e vai dialogando com o seu morto e com o padre, sempre em contracena com Ventura: então, vela as fotos, as memórias, e tem o apoio da comunidade cabo-verdiana. 

 

À conversa com o fantasma

Em termos psicanalíticos, o conceito de fantasma1 respeita simultaneamente ao efeito do desejo arcaico inconsciente e à matriz dos desejos actuais, mais ou menos inconscientes. Lacan define o fantasma como superfície encobridora do real, incluindo diversas representações do eu, do outro imaginário, da mãe originária, do ideal do eu e do objecto; destaca a sua natureza de linguagem. O fantasma teria, assim, um carácter trans-individual, participando nos campos do simbólico e do imaginário. Maria Belo resume da seguinte forma: “o fantasma é o cenário que põe o desejo em cena; este cenário, tendo várias formações possíveis é, no entanto, estruturalmente semelhante para todos numa mesma estrutura cultural, mas específico na forma como, falando na sua história, ele se constrói para cada um”.

Uma frase evoca o fantasma do colonialismo e a frase ecoa e persiste nas sombras: há que aprender a falar português para falar com os espíritos. Também as cartas de amor de Vitalina a Ventura foram escritas em português. 

 

Noutra cena, vemos Vitalina no telhado da casa em Portugal, como que navegando no mar tempestuoso, e, logo de seguida, Vitalina e Joaquim em Cabo Verde; diz Vitalina: “nós viemos da escuridão” e, no entanto, para ela, o amor em que um dia se encontraram é clareza, é luz. Pois, em todo o filme, está presente o confronto entre as sombras da pobreza do bairro e a claridade cabo-verdiana, excepção feita às cenas no cemitério, diurnas em céu nublado, ou não circulassem os claridosos2 nas várias tonalidades da treva.

Já no final, Vitalina pergunta ao seu fantasma: “se eu falar português, você fala comigo?”. Então, o fantasma e Vitalina, juntos, relatam parte fundamental do mito cristão, o beijo de Judas, o modo como entregou Jesus dizendo: “que Deus te salve, mestre”. Pois, dizem, “era duro o caminho, dos dois lados”, sim, o caminho foi duro, em ambos os sentidos. O som de fundo é o de uma enxada a cavar a terra, e eles recordam a crucifixão de Jesus, falando da treva que cobria todo o mundo quando, de repente, uma luz alumiou a face de Jesus, aquela que Judas não beijou, e o mundo fendeu-se em dois, luz e escuridão… “é dessas sombras que nós somos feitos”, conclui Ventura, nós que vivemos nessa escuridão. 

 

A terra prometida

Espelhando o início, o filme termina com um enterro, o de Marina, a mulher mar, uma morte provocada pela queda de uma vela: “Marina morreu ontem, uma vela caiu no seu colchão”. Impossível não notar a semelhança dos significantes na morte e na navegação, na vela que tomba, na vela do barco, no velar dos mortos, o colonialismo que se (re)vela, no lugar de homem, no bairro, no beco, na casa, no seu lugar de trabalhador, na exploração, na língua, pois o fantasma persiste, insiste, por mais que se tente recalcá-lo.

Morreu Marina, mar no feminino, e recordo que: “O mar tem caprichos de mulher. É preciso acarinha-lo, cantar-lhe canções muito tristes. Para seu dorso de gigante se entorpecer, tolhido na tristeza vaga que vem nas asas das cantigas. (…) O mar é fêmea (…) O mar era a abertura que os enxadeiros tinham para o mundo”3

Qual o lugar dos mortos e qual o lugar dos vivos, parece interpelar-nos a última cena: no cemitério, com Vitalina de um lado e, do outro, o padre, vêem-se placas numeradas, lajes e montes de terra: será essa a única terra prometida?

 

Estranhamento familiar

Sobre a língua portuguesa, essa língua que é preciso saber falar para falar com os mortos, é precisamente a língua em que se recalca o colonialismo, em que o seu fantasma se mantém vivo, activo e actuando, e isso em Portugal, como na Guiné, Angola, Moçambique e Cabo Verde com suas idiossincrasias. O crioulo, como língua apropriada, vai circulando nos seus desvios do português, na sua musicalidade, na sua sintaxe própria. Se é verdade que a subjectividade sempre se constrói e dissimula através do mito e da fantasia, na e pela fala, não é precisamente o papel do poeta, do realizador, do artista, o de revelar (ou velar) as ideologias por detrás? Abrindo caminhos, libertando desvios? Ou de outro modo: expondo as estruturas de proteção (na língua) das quais se rodeia o sujeito na sua relação com o real? 

Não será isso mais rico e complexo do que impor, por tratado, uma grafia idêntica, uma centralidade lusófona que, a pretexto de interesses e vantagens mercantis, acaba por cilindrar as diferenças? Refiro-me agora ao acordo ortográfico de 1990 e às pretensões unificadoras e quantitativas de alguns dos seus defensores. Não seria muito mais precioso e culturalmente fértil lutar por um espaço criativo que implicasse a escuta das outras singularidades, construídas nesse português assimilado e apropriado, transformado? Não se permitiria, assim, ventilar melhor os fantasmas bafientos do colonialismo, dar-lhes outras tonalidades, expô-los a outras luzes? Talvez assim não fossem tão necessárias as legendas.

Pedro Costa traz-nos essa escuta de outra voz, de outro português, tão familiar enquanto se estranha. Vitalina Varela é uma lufada de ar fresco no beco hermético do colonialismo, um descobrimento do colonialismo, por assim dizer.

Vitalina Varela, filme de Pedro Costa (2019)Vitalina Varela, filme de Pedro Costa (2019)

 

Subjectividade vs uniformização mercantil

Tomar a palavra consiste em fracturar a massa imponente de uma língua, para aí abrir uma brecha4, trata-se da emancipação própria ao acto da fala, e isso em todas as línguas. A propaganda de uma suposta unificação que seria promovida pelo acordo ortográfico, não vai exactamente no sentido contrário? Ao não se expressar a diferença da fala na escrita, não se estará a contribuir para o esquecimento da realidade histórica da nossa colonização? Não será o acordo ortográfico, nos termos em que foi feito, sintoma desse esquecimento? E simultaneamente cortam-se as raízes latinas da língua: como se a presente geração não nascesse de outras gerações, mas simplesmente tivesse aparecido, inteira sem história, numa espécie de geração espontânea, chocada na ideologia capitalista e pelas virtudes da tecnologia, escondendo as problemáticas próprias da filiação na poda etimológica e na eficácia da literalidade. 

Este processo de uniformização linguística imposta verticalmente e através de tratado, que não tem em conta as diferentes utilizações da fala, as suas realidades e influências africanas, lembra a evangelização colonialista e todas as “boas intenções” da dominação feudal, ou como os arautos de um português único não se cansam de promover: trata-se de algo muito benéfico para o mercado.

Se trazer o assunto do acordo ortográfico para a esta análise, pode parecer um tanto forçado, importa que se levantem estas questões quando se trata de analisar a língua e um longo passado comum. Tens de aprender a falar português para falar com os mortos. Nos dias seguintes a ter visto este filme, fui perseguida por essa frase. Pensar o esquecimento estrutural e sistemático de mais de 500 anos de colonialismo, a nossa língua comum, inegável herança colonial, os diferentes crioulos portugueses, o acordo ortográfico e a lógica que lhe subjaz e, sobretudo, a forma como não se fala sobre nada disto na sociedade portuguesa: tudo isto são questões fundamentais que devem permanecer abertas, que devem ser faladas, pensadas, discutidas, sem receio dos fantasmas que tais falas venham a convocar, pois os fantasmas serão sempre mais rígidos e inescapáveis, quando mais ecoarem no silêncio. A lógica unificadora e mercantil que subjaz ao acordo ortográfico, tende mais para um fechamento, censura e corte de caminhos metafóricos e metonímicos possíveis, em suma, para o esquecimento de uma memória comum, do que para o encontro, abertura ou construção histórica partilhada. Não seria mais prolífero o desenvolvimento de projectos que promovessem a produção e divulgação de objectos culturais de países de língua oficial portuguesa, num português dado a conhecer na sua riqueza e diferença?  

 

Mas mesmo quando não se fala, isso fala… 

Em tempos de pandemia, de perda de direitos individuais, colectivos e laborais, e de uma crescente pobreza e exploração daqueles que têm como única forma de sobrevivência o trabalho, importa, por fim, trazer outro assunto, indissociável das questões do colonialismo: o 25 de Abril de 1974 e o fim da guerra colonial. Revolução dos Cravos do ponto de vista fonético é extraordinariamente próximo de Revolução dos (E)scravos – e não é preciso ter sotaque da Beira, embora facilite, para que soe assim: o inconsciente faz-se ouvir, ele insiste, mesmo onde o esforço para o encerrar é grande! A verdade é que os festejos do 25 de Abril, ano após ano, têm sempre mantido relativamente bem escondida, discreta, a importância que a justa luta pela independência dos povos africanos teve no derrube da ditadura portuguesa, ainda assim, sem consciência, devido a um acaso, chamamos-lhe Revolução dos (E)scravos. Não fosse forte a tendência em poder para esconder séculos de colonialismo e a emancipação dos povos africanos e estaríamos mais próximos do devir revolucionário experimentado em Abril de 1974.


Nota 

Este texto foi provocado pela participação no cartel Nós, a Voz e Avós (o cartel é um dispositivo de transmissão de saber das escolas psicanalíticas lacanianas, no caso o Centro Português de Psicanálise e o Fórum Lacaniano Brasil, consistindo na formação de um grupo de 4+ 1 elementos que se debruça sobre um determinado assunto, durante um dado período de tempo, seguindo uma certa forma de construção de saber que é psicanalítica) agradeço pelo frutífero questionamento e partilha carinhosa à Glaucia Nagen, à Lucília Sousa, à Raquel Laranjeira Pais e à Susana Travassos.

  • 1. Para aprofundar este assunto: Lacan, J. (2008). A Lógica do Fantasma - Seminário 1961-1962. Centro de Estudos Freudianos do Recife. Recife. Aceder em http://clinicand.com/wp-content/uploads/2020/06/14-Jacques-Lacan-O-Semin... e Belo, M. (2007). Filhos da Mãe. Edeline. Lisboa: pp.91-159.
  • 2. Referência ao movimento literário e cultural iniciado com a publicação da revista Claridade em 1936, que inicia a mistura literária entre as estruturas do português clássico e da língua crioula, Belo, M. (2007). Filhos da Mãe. Edeline. Lisboa: pp. 189-236.
  • 3. Lopes, B. (1997 1947) Chiquinho. Mindelo. Calebedotche: 174-175, citado por Belo, M. (2007). Filhos da Mãe. Edeline. Lisboa: pp 215.
  • 4. Roubei esta expressão de Toumson, R. (2000). Metáfora e Alteridade. Um Inconsciente Pós-colonial – se é que ele existe. Artes e Ofícios, Porto Alegre. Publicação dos ciclos de conferências organizados pela Association Freudienne Internationale e pela Maison d’Amerique Latine, a conferência referida foi proferida a 16 de Novembro de 1993 no 2.º ciclo de conferências “O inconsciente e as línguas”.

por Joana Lamas
Afroscreen | 21 Abril 2021 | crioulo, filme, psicanálise, Vitalina Varela