País de porteiros
Qual Dom Sebastião, adolescente e teimoso, o espírito de porteiro (sem desmerecimento da atividade) paira sobre Portugal ensombrando tudo e todos.
Não é nevoeiro: é o controlo doméstico de ver quem entra e quem sai, com quem anda e como está vestido, a que horas e com quem estava. Esse ressentimento, típico de quem está só a ver, cai, com a nortada, como uma névoa oleosa e entranha-se na estrutura cultural portuguesa.
O funcionamento institucional português rege-se por leis de portaria: desde as instituições mais modernas, ao estilo de porteiro de bar ou discoteca, às mais tradicionais. Em Portugal há porteiros em todas as áreas do poder e do saber. O estilo de porteiro está tão impregnado, que talvez o prefixo Port não seja coincidência! A questão é legítima… Talvez o fantasma ressentido de porteiro já se erguesse sobre o território…, mesmo antes da sua fundação.
A verdade é que os mitos da fundação não contradizem a hipótese: Martim Moniz terá sido mártir às mãos dos porteiros da cidade de Lisboa e o próprio Afonso Henriques ficou permanentemente diminuído, na sequência de ferimento grave infligido, justamente, por uma porta de ferro!
Qualquer português mediano quando arranja um cantinho seu, sente-se logo a inchar! Se calha ter um lugar intermédio, ui! Arma-se logo…
Em quê? Em porteiro! Até brilha no escuro, todo orgulhoso e repimpado. Brilha, brilha, mas nada ilumina… Porteiro que se preze, adoooora critérios de admissão: como se a sua decisão fosse baseada em pureza moral, no abstrato e na lei. O facto é que qualquer porteiro, qualquer medíocre da raça porteiro, cedo aprende que há sempre maneira de contornar critérios. Podem ser diferentes, mas o nervo, esse é sempre o mesmo.
Há os que têm a mania de não deixar entrar e há os que têm a mania de não deixar sair.
Por exemplo, o Juiz-Porteiro… Esse, apesar de todo o complexo aparato jurídico, como qualquer porteiro contorna os critérios: julga conforme aquilo em que acredita. E como o instinto porteiro não falha, dá largas à sua imaginação medíocre e justiceira: quanto mais diferente for o réu, por exemplo, mais preto, mais pobre, ou com menos educação, mais certa a condenação e maior a pena.
E os porteiros das urgências de psiquiatria? Ui! Se se der o caso do alienado estar em crise e desejar profundamente ser internado, não o internam nem por nada: vão achar que se está a tentar aproveitar. Para ser internado, o alienado deve fingir-se completamente desinteressado do internamento, recusá-lo até, de preferência com violência. Nesse caso, arranja-se logo maneira de o forçar.
À saída, repete-se a brincadeira: se o desgraçado se lembra de dizer que está com vontade de sair, se se mostra farto da medicação e do internamento, está lixado… E se quiser sair para namorar, fumar ou beber, ou seja, para se divertir um bocado, está feito: não o deixam sair tão cedo e, quando deixam, vai sedado.
A melhor tática para sair é dizer que se quer ficar mais tempo! Que ali se sente seguro e tranquilo. Que precisava mesmo de ficar internado. Então se tiver um trabalhinho medíocre à sua espera, leva logo um piparote dali para fora.
E os porteiros das juntas médicas? Pior era difícil… a técnica de avaliação mais usada é achincalhar o doente e olhar com desprezo para os papéis: há juntas de bois mais simpáticas.
Porteiro que se preze olha para o outro, acha que o vê inteiro na sua superficialidade e que sabe o que é melhor para ele. Acha que basta estar à porta a ver. E o melhor para o outro é, invariavelmente, o que o outro não quer! Digam lá se não é amoroso? Daquele tipo de amor maternal que desespera e infantiliza, que nos enche de culpa mas que, ainda assim, é amor!
Aguentem-se com tanto amor.
ilustração de João Tércio
Até a solidariedade tem critérios. O caso das assistentes sociais porteiro é tramado: aí o critério é o de comer ou dormir, e não há lugar para todos os esfomeados. O problema é que, em terra de porteiros, em vez de se aumentar vagas, apertam-se critérios. O esfomeado que abandonou um trabalho, farto de ser explorado, é logo banido da lista prós hidratos de carbono… Se for alcoólico ou drogado, vai ter de levar com o carimbo de doente mental: isto só para ter oportunidade de entrar para a fila de espera da caridade.
Só para verem como funcionam porteiros e critérios, aqui vai um exemplo de rabo na boca: se não tiveres morada, não podes pedir o RSI.
Se é pobre, namora e precisa de um tecto, arranjam logo maneira de dar cabo do romance. Farão questão de acolher o casalinho em albergue, em vez de dar apoio para arrendar um quarto. Pouco importa que ficasse mais barato ao Estado: o que interessa é condenar o amor carnal, no albergue é proibido namorar, homens para um lado, mulheres para outro. Está sem abrigo? Namora? Quer acolhimento? Então tem de ter decoro, decência e abstinência sexual, senão aparece o porteiro e será expulso.
Se às assistentes sociais porteiras, por vezes, lhes foge o pé para o chinelo, o mesmo já não se pode dizer do porteiro académico. Nele reside a alma nobre de porteiro: discreta, asseada e respeitosa. Imparcialidade é lá com ele. É tanta que às vezes parece banalidade, da mais achatada que há.
Muito se orgulha o porteiro académico do seu desinteresse. Recorre a fórmulas complexas e percentagens para mostrar o quão desinteressado e imparcial consegue ser, no limite da despersonalização.
E o financiamento das artes?
Subsídios-migalhas, como esmolas, para artistas quebrados.
Para receber financiamento, o artista português tem de escrutinar minuciosamente o seu projecto, limar qualquer aresta, tirar as areiazinhas todas, depená-lo, não pode haver qualquer atrito. O projecto deve escorregar bem e ser o mais raso possível: é que no caso das artes tem de se passar não pela porta, mas pela frincha!
Tem de ficar fininho e inócuo que nem uma folhinha de papel. Ou isso, ou então, se se tiver contactos, também se pode insuflar o projecto e fazê-lo entrar pelo ar, como um balão, cheio de ar quente, pronto a subir aos céus e a desaparecer para sempre: PUM! Nada sobra, não deixa lastro, amanhã já ninguém se lembra.
E os imigrantes? O porteiro português só quer deixar entrar os que se aproximem da imagem ideal que o porteirito tem de si próprio. E qual é o espelho do porteiro português? Pois claro, quem fala inglês, francês ou alemão (os palop não têm sorte nenhuma com os porteiros da imigração), quanto mais branco, alto, qualificado, europeu ou americano, melhor, é cá dos nossos. Toca a dar-lhe isenções fiscais e palmadinhas nas costas.
Não gostam que se namore, os porteiros…, mas está visto que gostam muito que se fale inglês. Até dizem que criança portuguesa deve saber informática e inglês. Para quê? Para pensar melhor? Nãaa… Porque é bom para abrir portas! Caramba, é cá uma obsessão…
Abrem-se portas giratórias, por onde deslizam sempre os mesmos, entre cargos, públicos e privados: porteiros de governo, de secretário de Estado a ministro. Porteiros com motorista e acesso a mais portas. Porteiros profissionais, a quem o Estado paga balúrdios só para deixar entrar ou sair, porteiros que deslizam como a brisa pela fralda da camisa. Pórticos e concessões de exploração. Porteiros que abrem portas a mais porteiros e assim sucessivamente.
Abrem-se portas, em vez de perspectivas! Em Portugal, até Deus fecha portas e abre janelas… ATÉ DEUS… Porteiros, oportunistas, proprietários de alpaca, débeis vitais, espantalhos mentais: é gente que não sabe divertir-se e só quer proibir.
Essa estrutura medíocre, vazia e oportunista, cumpre o seu destino e atinge hoje o seu ápice. Confirma-se e revela-se numa beringela fascista: autoritária, mesquinha, cheia de si, sem nada para oferecer, além de violência, autoritarismo e interjeições de porteiro ressabiado.