Cinema guineense: referências a Amílcar Cabral

Obrigado, Camarada,
Homem Grande da nossa História;
O teu nome
Os teus actos
Serão a lembrança venerada
Cantada e bendita
Nesta nossa terra
Da Guiné e Cabo Verde
Como o Grande Herói do Povo
Fundador da Nacionalidade

Sukre D’Sal

Quando enfim a independência foi conquistada pelos países africanos até então sob domínio português, o primeiro presidente, em geral, foi aquele que liderou o principal movimento de libertação. Foi assim com Agostinho Neto, em Angola, e com Samora Machel, em Moçambique. O mesmo, no entanto, não ocorreu em Cabo Verde e Guiné-Bissau, cujo maior líder, Amílcar Cabral, morrera meses antes da conquista. Apesar de não ter assumido o comando oficial no pós-independência – e com isso não ter ganho ainda maior vulto –, Cabral tornou-se de fato um símbolo para ambos os países.

Na literatura guineense, por exemplo, recebeu homenagens, como as presentes na importante antologia Mantenhas para quem luta! - a nova poesia da Guiné-Bissau (1977). Conforme Sparemberger: “Um dos núcleos desta antologia (…) atua na linha de exaltação dos líderes revolucionários, dos heróis da pátria, e desde logo avulta o nome de Amílcar Cabral, como no poema ‘Camarada Amílcar’, de Agnelo Augusto Regalla, exatamente o texto de abertura da antologia” (SPAREMBERGER, 2003, p.164).

No cinema, também há inúmeras referências a esse africano nascido em família caboverdiana na Guiné. Nas produções selecionadas para este trabalho, sua presença é mais direta, como a trajetória de seu busto paralela à da personagem principal em Nha Fala, ou menos, como o garoto homônimo em Udju azul di Yonta. Se depender do cineasta Flora Gomes, entrará ainda no rol um filme propriamente sobre Cabral: “a sua grande ambição [de F. Gomes] e o seu projecto mais desejado é um longa-metragem sobre Amílcar Cabral, para que não se perca a memória e o exemplo dos grandes líderes que fizeram a história moderna do continente africano e moldaram as gerações que têm obrigação de a continuar” (VILELA, 2011).

 

O líder em Nha Fala e Udju azul di Yonta

Nha Fala (2002), em que Cabral apresenta maior destaque, foi gravado em Cabo Verde e dedicado a “Amílcar Cabral, pai da independência da Guiné-Bissau e das ilhas de Cabo Verde, assassinado em 1973”.

O roteiro de tal produção tem como núcleo a personagem Vita, jovem que, ao longo do filme, libera sua voz para o canto1, o que lhe era proibido pela tradição familiar. Vita possui um ex-namorado de nome Yano, homem que conquistou posses por meios escusos; é ele o encarregado de instalar a primeira estátua de Cabral, que deve ser alocada na cidade conforme indicação da amada.

Assim, a trajetória do busto, carregado pelo personagem Caminho e, posteriormente, também por um sujeito que nos surge como um louco, é paralela à de Vita, além de possuir pontos de intersecção com a dela – a figura não aparece, tal qual o cenário africano, enquanto Vita está fora de seu continente, mas ressurge tão logo a jovem retorna à sua cidade depois de anos: é o primeiro plano2 quando da sua volta.

Antes de passarmos à análise da imagem de Cabral, façamos um breve percurso pelo enredo do filme:

  • Crianças fazem o cortejo fúnebre de um papagaio (por suas características, pode ser aqui sinônimo de voz)
  • O vigarista Yano assedia Vita para que eles voltem a ficar juntos
  • Funcionários de Yano levam o busto de Amílcar Cabral para o patrão, que decide ser Vita a escolher o local para a imagem
  • Mãe relembra à Vita da maldição ancestral em sua família: não pode cantar, senão morrerá
  • Viagem de Vita para a França
  • Torna-se namorada de Pierre
  • Ousa cantar e percebe que consegue
  • Pierre, que é produtor de discos, estimula Vita a cantar com seu grupo, o que ela faz
  • Vita faz grande sucesso com a gravação de seu CD e ganha bastante dinheiro
  • Retorna a África acompanhada de Pierre
  • Yano deixa de ser um “capitalista selvagem” e abre uma escola
  • Vita forja sua morte pela quebra da interdição; renasce
  • Estimula a mãe para que também cante, o que acontece com uma grande festa com participação de seus conterrâneos e de colegas franceses
  • Os “seguranças” do busto, o trabalhador Caminho e o louco, que participaram de todos os acontecimentos, deixam a multidão e levam Cabral para onde enfim será seu pouso definitivo
  • A imagem de Cabral levita para o pedestal
  • Caminho e o louco festejam

 

O caminhão que transporta o busto de Amílcar surge ainda no início do filme e o perpassa de modo geral. Ao total, são 55 planos com sua presença direta, além de outros em que sabemos figurar indiretamente, como quando está dentro do veículo ou do carrinho de bebê.

Em grande parte daqueles planos, a câmera registra o busto de frente para o espectador e movimentando-se, de forma a ganhar uma humanização. Não se trata de um simples objeto, é mais que isso, pois observa as pessoas, caminha, dança, faz negativas, levita… Se estivéssemos numa narrativa literária, certamente seria descrito com prosopopeias.

FIGURA 1 _ O busto de Cabral em seu pilastre.FIGURA 1 _ O busto de Cabral em seu pilastre.

Essa aura especial que lhe é conferida também está presente em seu crescimento: seu tamanho e seu peso aumentam ao longo do filme. O ápice, já no último plano, está no seu alçamento ao pedestal, quando, além de ficar mais alto em relação ao chão e aos dois indivíduos, o enquadramento sugere uma elevação de Cabral até mesmo em relação às montanhas.

A nosso ver, essa grandiosidade é que justificaria o posicionamento dos elementos no plano: à esquerda, as montanhas; ao centro, os “loucos”; à direita, o busto. Da forma como foi feito o enquadramento, apesar de o busto não ficar centralizado, há essa outra significação latente: Amílcar Cabral, mais sólido, imponente e grandioso que a própria paisagem.  

A escolha do espaço utilizado é igualmente significativa. Trata-se de um local de fato existente à beira de uma praia, na Avenida Marginal do Mindelo, que contém a réplica de uma estátua de Diogo Afonso, navegador português que descobriu a Ilha de São Vicente.

FIGURA 1 _ O busto de Cabral em seu pilastre.FIGURA 1 _ O busto de Cabral em seu pilastre.O busto de Amílcar Cabral não só ganha o lugar outrora dedicado ao viajante, como seu posicionamento é diverso e significativo. A estátua de D. Afonso está voltada para o mar, enquanto a de A. Cabral, para a terra, ou seja, se aquele saúda o mar e o além-mar (Portugal), este saúda sua terra e sua gente –  e, pelo filme, é ali que deve estar. 

Essa valorização do ex-dirigente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) também pode ser encontrada na outra produção cinematográfica aqui selecionada.

Sucintamente: Udju azul di Yonta (Os olhos azuis de Yonta, 1992) conta a história de uma bela jovem (Yonta), por quem se apaixona um rapaz que lhe manda, anonimamente, um poema – copiado – referindo-se aos olhos azuis da amada (a questão está no fato de a garota ser negra e possuir olhos escuros). Yonta passa a procurar descobrir quem é seu admirador secreto.

Amílcar surge-nos nesse filme pelo irmão da personagem principal: é homônimo do herói. Além de a escolha certamente não ser ingênua, há outros indícios que nos sugerem a relação entre os “Amílcares”. O garoto, para além de seu carisma e constante sorriso, é um líder contra situações de injustiça.

Nos momentos iniciais do filme, Amílcar e seus amigos, enquanto brincavam, acabaram atrapalhando a passagem de um caminhão, cujo motorista passa a segui-los a  pé. É o garoto, então sobre a carroceria de um caminhão junto com os outros – portanto, num nível acima do homem –, que lidera a situação, ainda que depois diga a um conhecido que chegou que este acabou de salvar a sua vida. O motivo, em princípio, pode não ser grande, mas, se atentarmos ao conteúdo transportado pelo caminhoneiro, então atingimos um possível significado: a carga é de grandes toras de árvore, ou seja, fruto (ainda que não surja como ilegal) da extração depredadora da terra3.

Outra ação que merece destaque é a de quando uma senhora, que paga suas contas em dia há anos, é despejada – injustiça que gera protestos por parte dos vizinhos, apesar de o caso parecer irreversível – e passa a morar na rua, refazendo ali o ambiente interno de sua casa. Uma vez que a mulher saiu com uma comadre, Amílcar, com uma ferramenta que pega emprestada do pai, abre a casa onde a senhora morava e, com a ajuda de outras crianças, recoloca a mobília no imóvel.

FIGURA 3 _ Amílcar após abrir a porta.FIGURA 3 _ Amílcar após abrir a porta.O plano do momento em que a fechadura da porta é cedida termina com a imagem do pequeno Amílcar com a “arma” da lutra contra a opressão na mão. O enquadramento da personagem voltada para a câmera num close-up auxilia na sugestão de heroísmo por parte daquela criança.

O pequeno Amílcar seria capaz até mesmo de fazer com que o Papa fosse ao casamento de uma conhecida, que logo ocorreria, bastando ligar para ele. Embora ali seja uma brincadeira, o fato é que estar ao lado do Papa ocorreu com Cabral, contrariamente ao que se imaginava possível em seu tempo:

Em Julho [de 1969], [Agostinho Neto] na companhia de Amílcar Cabral (PAIGC) e Marcelino dos Santos (Frelimo), é recebido em audiência pelo Papa Paulo VI, à margem da Conferência Internacional de Solidariedade para com os Movimentos de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas, que se realiza em Roma. (BARRADAS, 2005, p.196)

Esse garoto é, também, o do ano 2000 (em relação à produção do filme, de 1992, tratava-se de uma data no futuro); é ele quem brinca com a boia referente a esse ano. Parece-nos que um futuro mais justo dependerá de crianças como ele (possivelmente sob sua liderança), já que os adultos foram corrompidos, estão loucos ou, como no último plano do filme, estão dormindo ou dançando como que num mundo à parte. A nosso ver, é por isso que o filme é dedicado “A Lennart Flora e aos meninos do meu país”, conforme aparece no início da produção cinematográfica em questão.

No entanto, há elementos ao longo de ambos os filmes que parecem questionar essa valorização da figura de Amílcar Cabral – a justificativa, como se pode depreender da fala de Flora Gomes anteriormente citada, pode estar relacionada a um “esquecimento” por parte dos mais novos ou ao não-alcançado desenvolvimento igualitário com a independência, prometido por Cabral e sua geração: “Pátria livre, próspera e feliz para cada um dos nossos povos! VENCEREMOS!” (CABRAL, op.cit., p.202).

FIGURA 4 _ A imagem de Cabral caída em frente ao Palácio do Povo (Cabo Verde).FIGURA 4 _ A imagem de Cabral caída em frente ao Palácio do Povo (Cabo Verde).

Em Nha Fala, um primeiro apontamento neste sentido pode ser feito em relação ao quarto momento da presença do busto. Ali, enquanto o caminhão passa em frente a um edifício, a imagem de Cabral cai do veículo, quando então é resgatada por um trabalhador. A própria construção é significativa: trata-se do antigo Palácio do Governador português do Mindelo que, quando da independência, foi transformado no Palácio do Povo, em frente ao qual foi apresentado o primeiro programa da república de Cabo Verde.

Dessa forma, a queda de Cabral ocorre em frente a um símbolo popular, possivelmente relacionando-se a um rebaixamento de sua figura na visão do povo.

Outro elemento que leva o status de Cabral a parecer reversível coabita o último plano deste filme, na medida em que há uma bicicleta que anda ao contrário e a afirmação “O fim é o princípio” feita pelo louco.

Tais itens poderiam indicar uma narrativa ao contrário, o que modificaria, ou melhor, ampliaria o sentido da obra enquanto narrativa e linguagem cinematográficas.

Assim, com o sentido inverso da história – na ordem correta do andar da bicicleta –, sendo o fim da narrativa a que assistimos o princípio de uma segunda leitura, iniciaríamos com Amílcar Cabral, elevado, sendo festejado por um “louco que é um ‘caminho’” e por um “’caminho’ que é louco”. A seguir, de acordo com o que propusemos anteriormente, teríamos:

  • A imagem de Cabral descendo do pedestal
  • O trabalhador Caminho e o louco, os “seguranças” do busto, levam Cabral para a multidão
  • Mãe e filha cantam numa grande festa com participação de seus conterrâneos e de colegas franceses
  • Encenação da morte de Vita; renascimento
  • Yano fecha uma escola e vira um “capitalista selvagem”
  • Vita vai com Pierre para a França
  • Vita faz grande sucesso com a gravação de seu CD e ganha bastante dinheiro
  • Pierre, que é produtor de discos, estimula Vita a cantar com seu grupo, o que ela faz
  • Vita para de cantar
  • Deixa de ser namorada de Pierre
  • Viagem de volta para seu país
  • Funcionários de Yano guardam o busto de Amílcar Cabral
  • O vigarista Yano assedia Vita para que eles fiquem juntos
  • Crianças fazem o cortejo fúnebre de um papagaio

Nesta narrativa invertida, a figura do busto de Amílcar sofreria um recrudescimento em tamanho e em importância, na medida em que deixaria o pedestal para terminar numa caixa dentro do caminhão de um homem corrupto. Processo semelhante sofreriam Yano, que de pessoa preocupada com a educação se transformaria em corrompido, e Vita, que de livre para usar sua fala passaria para a opressão – como na metáfora da morte do papagaio, que aqui, ao invés de iniciar o roteiro, fechá-lo-ia.  

Esse percurso pessimista seria, em princípio, conflitante com afirmações do cineasta Gomes a respeito dessa sua produção, segundo quem: O filme foi feito nesta base em que, ao contrário do que as pessoas pensam, que a África é um continente só de guerras, violência, doenças e misérias, esta África é positiva. É uma África em que sonhamos, cantamos e dançamos (…). Esta África existe, só que não é vista pelos olhos das pessoas menos atentas (GOMES apud CINEPORT, 2011).

No entanto, nesta mesma entrevista, diz que “O Nha Fala não é um filme linear. É um filme de muitas mensagens”. Portanto, as aparentes contradições presentes no filme podem ser, na verdade, dualidades – aliás, como o nome “Yano” parece indicar:

talvez [seja] uma referência ao deus latino Janus, porteiro celestial, cujas duas faces olhavam uma para o passado e a outra para o futuro e cujo nome deu origem ao mês de Janeiro. Jano era também o deus latino das indecisões, porque cada cabeça falava uma coisa ao transeunte que lhe perguntava algo, o que parece se assemelhar às características do personagem Yano, preso à terra e às suas tradições, mas que ao mesmo tempo anda em carro esporte vermelho e arma falcatruas comerciais para ganhar dinheiro, posição política e o coração da protagonista Vita. (MARQUEZINI, op. cit., p.5)

Quanto à imagem de Cabral para o povo, também nela podemos encontrar uma dualidade: há a exaltação de Amílcar por uma multidão, que até faz uma procissão atrás do busto gritando em coro o sobrenome do herói, mas igualmente estão presentes a queda da estátua (anteriormente comentada) e a recusa por parte de habitantes em aceitar que a imagem ficasse na casa de algum deles. Essa dualidade parece contemplar as contradições que são inerentes ao processo histórico; o filme não se apresenta maniqueísta e percebe as pessoas e os fatos sem dogmatismo.

Amílcar Cabral não tinha a ilusão de lidar com indivíduos “plenos”: sabia da existência de desvios por parte das pessoas em relação ao que considerava correto. Dizia:

Sempre vigilantes contra as vaidades e orgulhos pessoais. (…) Temos de eliminar, passo a passo, os maus elementos do nosso Partido, os ambiciosos, os oportunistas, os demagogos (enganadores do povo), os desonestos, os que não cumprem o seu dever. Para abrir caminho cada vez mais àqueles que compreendem e vivem inteiramente a vida do nosso Partido, aos que desejam na realidade servir o Partido e o povo, aos que cumprem e querem cumprir cada vez mais e melhor os seus deveres de militantes, de responsáveis e de revolucionários. (CABRAL, 1977, p.163-4)

 Ainda assim, é fato que houve os “Yanos”, os que deturparam e usurparam o governo após a independência – não somente em Cabo Verde e Guiné-Bissau, mas também em Angola, Moçambique… Para o sociólogo Salvador Giner,

Una de las barreras más serias contra el socialismo [todos aqueles países, de uma forma ou de outra, o propuseram] es la erigida en aquellas sociedades dominadas por un vasto funcionariado político-tecnocrático dedicado a la administración y gerencia de la vida social según el principio del monopolio estatal de la mayor parte (o de casi totalidad) de las actividades importantes para el orden social general. Estas sociedades – que suelen llevar el nombre oficial de ‘socialistas’ – concentran la soberanía, el poder y la autoridad en un partido político único, altamente jerarquizado y burocratizado. La soberanía burocrática y de partido es colectivista en el doble sentido de que es hostil al individualismo y a la existencia de una sociedad civil relativamente autónoma. Es una sociedad de clase en la que la apropiación del excedente económico consumible pasa a la clase burocrática, esencialmente formada por el partido. (GINER, 1981, p.42)

A questão da corrupção e dos afastamentos em relação aos ideais da época da luta de libertação também está presente em Udju azul di Yonta.

Paralelamente à narrativa de Yonta, o enredo aborda a vida do “Camarada Vicente”, homem que participou do movimento pró-independência, mas que acabou por descobrir que “Independência é aqui em Bissau (…) Você não vai encontrar no interior aquilo pelo que lutamos. (…) A realidade é essa. Não é para todos, mas é progresso. No mato, pensávamos que tinha de ser para todos, mas não é. O que posso fazer?”. Ao ter sua situação naquele momento, superior à da maioria da população, confrontada com seus antigos valores de avanço igualitário por meio de Nando – também ex-combatente mas que optou por viver à margem daquela sociedade que trocou “os ideais por roupas, carros, festas” – Vicente acaba enlouquecendo.

No entanto, o fato de ter enlouquecido acrescido de alguns momentos em que ajuda as pessoas, como no caso dos pescadores de quem compra a mercadoria por maior preço do que geralmente se paga, fazem de Vicente um personagem complexo; ainda que corrompido, possui resquícios de justiça, o que pode ser depreendido da simbologia da ave na qual se “transforma”. Em seus devaneios, torna-se um urubu, animal que retira a morte do ambiente e deixa a vida prosseguir, ou seja, que leva consigo o que está apodrecido limpando o lugar. 

O espaço sem a podridão resultante da mudança de valores permitiria uma nova gestão das vidas individual e coletiva: dependeria do que aquelas crianças, seres complexos desde a infância (lutam por justiça mas ambicionam a posição de jogadores de futebol em clube europeu), fariam. Um recomeço seria possível com essas novas pessoas, como o pequeno Amílcar, mas o resultado ainda nos é velado.

Enfim, nas produções cinematográficas em questão, a presença da figura de Amílcar Cabral é reveladora de uma visão positiva acerca de sua atuação; porém, não encontramos nela uma idolatria sem reservas. Em ambos os filmes, permeia uma dualidade no que se refere a Amílcar e aos desdobramentos dos combates pela independência, dos quais participou e dos que se seguiram a ele.

Assim, a nosso ver, apresentam Amílcar Cabral – e por consequência as lutas de libertação e os rumos pós-independência de países africanos – como componentes de um processo complexo, em que não cabem termos polarizados para dele tratarmos.

 

Referências Bibliográficas

BARRADAS, Acácio (ed.). Agostinho Neto: uma vida sem tréguas. Lisboa/Luanda: AAA, 2005.

CABRAL, Amílcar. A prática revolucionária: unidade e luta II. Lisboa: Seara Nova, 1977.

CABRAL, Amílcar. Documentário (textos políticos e culturais). Lisboa: Edições otovia, 2008.

CINEPORT. “Flora Gomes e o CINEPORT: extraordinário! Extraordinário!” Disponível em: http://www.festivalcineport.com/2005/detNoticias.asp?codigo_
noticia=56. Ac
esso em 17 jan. 2011.

FRANCO, Paulo Fernando Campbell. Amílcar Cabral: a palavra falada e a palavra vivida. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2009.

GINER, Salvador. El porvenir del socialismo. In: COTARELO, Ramón García (comp). Las utopías en el mundo occidental. Madrid: Universidad Internacional Menendez Pelayo, 1981, p.33-52.

GOMES, Flora. Udju azul di Yonta [DVD]. Guiné-Bissau: Vermedia e Arco-íris, 1992.

GOMES, Flora. Nha Fala. [DVD]. Cabo Verde: Fado Filmes/Portugal, Films de Mai/França e Samsa Films/Luxemburgo, 2002.

MARQUEZINI, Fabiana Carelli B. “Cantam pretos, dançam brancos: coreografia da colonização em Nha Fala, de Flora Gomes”. No prelo. 2011.

VILELA, Augusto. “África positiva”. Disponível aqui. Acesso em 7 jan. 2011.

SPAREMBERGER, Alfeu. A singularidade da literatura guineense no contexto das literaturas de língua portuguesa. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2003.

  • 1. A expressão em crioulo da Guiné-Bissau nha fala “quer dizer, simultaneamente, ‘minha voz’, ‘meu destino’, ‘minha vida’ e ‘meu caminho’, como esclarece o guineense Flora Gomes, diretor dessa longa-metragem de ficção” (MARQUEZINI, 2011, p.1).
  • 2. Plano: termo designativo da duração de uma imagem entre um corte e outro em um filme.
  • 3. Cabe lembrarmos que Amílcar Cabral, engenheiro agrônomo, reconhecia grande importância no tratamento da terra, estreitamente relacionada às condições de vida das pessoas: “a agricultura é a árvore principal do mecanismo econômico, defender a terra é o processo mais eficiente de defender o homem”. Para ele, devia-se “educar, de forma geral, para o respeito à terra” (CABRAL, 1988, p.63 e 249 apud FRANCO, 2009, p.122 e 125).

por Kelly Mendes Lima
Afroscreen | 21 Junho 2011 | Amílcar Cabral, cinema, Flora Gomes