Arquivos, filmes e memórias: ingredientes para lembrar e esquecer o passado

Crédito das imagens: Bruno Castro/Goethe-Institut.

Começar pela história de um rapaz que ou vivia o presente ou se consumia a recordar o passado, é lembrar uma parte de um conto do escritor argentino Jorge Luís Borges, sobre o jovem Irineu Funes, personagem ficcionada. Um acidente fez com que Funes não se esquecesse de nada, e se lembrasse de todas as particularidades do passado, sofrendo em contrapartida a incapacidade de diferenciar e elaborar sobre as suas recordações. Recordar tudo tornou-o incapaz de pensar sobre o passado. A condição de Funes serve de contraponto a Tudo passa excepto o passado, um encontro internacional em torno das políticas da memória, promovido pelo Goethe-Institut, que teve lugar durante alguns dias de Setembro na Culturgest em Lisboa, em articulação com um ciclo de cinema, Reimaginar o arquivo pós-colonial. Ao contrário do caso de Funes, tratou-se aqui de reflectir sobre a relação entre lembrar e esquecer o passado.

Com o intuito de proporcionar um debate alargado sobre o passado através de diálogos entre filmes e pessoas de várias partes do mundo, o encontro reuniu uma série de produtores culturais, arquivistas, investigadores e artistas, dedicados a criar, guardar e difundir memórias parciais e incompletas. O resultado não podia ser mais contrastante com a memória precisa de Funes, tão precisa que nada descarta nem compara. Num formato que alternava sessões públicas e internas, debateu-se como se trabalha em, com e sobre arquivos fílmicos, desenhando um mapa com múltiplos pontos de vista sobre a mutabilidade das memórias. 

O espectro alargado de agentes, na sua diversidade de práticas e origens, estimulou confrontos entre maneiras de trabalhar sobre a memória através de arquivos. Na junção de interlocutores da Alemanha, Angola, Bélgica, Egipto, Gana, Guiné-Bissau, Holanda, Inglaterra, Moçambique, Nigéria, Portugal, e República Democrática do Congo, a origem e o trabalho dos intervenientes estabeleceu relações singulares com os arquivos com que cada um dos participantes no encontro se tem envolvido, e vários géneros de arquivos fílmicos. O espaço para diálogo entre participantes que trabalham sobre o esquecimento e a memória a partir de diversas posições e recursos tornou o encontro cativante. Cada participante trouxe a sua própria história e o seu equilíbrio entre pensar sobre o passado, viver o presente e sonhar com o futuro da memória. Mostraram o quanto têm de diferente e de comum, o quanto uns e outros conhecem e desconhecem as histórias específicas de cada um, e o quanto têm para oferecer uns aos outros. Por exemplo, um dos participantes partilhou a história de Funes. 

Os materiais fílmicos à guarda de arquivos são recursos estimulantes para trabalhar sobre a construção da memória. Simultaneamente herança e testemunho, podem tornar-se ferramentas valiosas para trabalhar sobre políticas da memória, do que recordamos e esquecemos sobre o passado, e do papel instrumental dos arquivos nesses processos. Um arquivo vive quando tem uso, mas só é válido quando os materiais à sua guarda chegam ao espaço público. Esta ideia assenta na vontade de fomentar um acesso popular aos arquivos, um acesso que liberte o passado do domínio de memórias construídas por quem detém poder, seja este político, económico ou social. Essa libertação permite o uso dos arquivos para pensar a memória e a história em várias das suas dimensões e sobreposições, díspares ou complementares – memórias colectivas, pessoais, institucionais, subalternas, íntimas, públicas. 

A diversidade foi também uma das palavras-chave para definir o universo dos arquivos fílmicos. Os arquivos públicos nacionais funcionaram como referentes em muitas das discussões, mas os casos apresentados incluíram arquivos com grandes ou pequenos acervos, especializados ou abrangentes, institucionais ou informais, públicos ou privados, recém-criados ou com longas existências, decadentes ou dinâmicos, colaborativos ou selectivos. 

Com a mais-valia de encetar um diálogo entre pessoas em posições diferentes da história, a pluralidade de perspectivas desenhou um recorte complexo sobre a questão da memória construída com base no estado-nação e da sua relação ambígua com arquivos fílmicos. Combatendo diferentes narrativas oficiais e imaginários nacionais instituídos em sociedades igualmente plurais e desiguais, é entre memórias dominantes e esquecidas que o trabalho dos participantes se tem vindo a desenvolver. Das discussões sobre o trabalho minoritário de um conjunto alargado de pessoas que tentam inverter as actuais políticas de esquecimento e de memória emergiu a necessidade de um papel maior para a sociedade civil. É esse papel que permitirá lançar outras bases para o futuro que não as dinâmicas existentes. 

A parcialidade dos registos existentes, bem como o foco particular de atenção escolhido sobre estes, oferece a possibilidade de pensar no presente, não só acontecimentos do passado, como diversos significados adicionados pela passagem do tempo. Num mundo que viveu no último século transformações políticas estruturais, é desafiante pensar na mutabilidade da memória através de materiais produzidos com intenção documental. Se um acidente fez Funes ganhar a capacidade de reter a totalidade do passado, nenhum arquivo consegue assumir essa natureza. A urgência na construção de arquivos resulta da necessidade de colocar no espaço público múltiplas versões da história, e de preservar memórias mais amplas do que aquelas actualmente subjugadas por narrativas dominantes. Nas histórias de cada um, encontramos motivos e formas de recuperar o passado, e sentidos contemporâneos de construir memórias. 

Derrubar fronteiras: arquivistas de urgência

Comecemos pela insólita história de um realizador independente nigeriano. A Nigéria é o país africano com a maior indústria cinematográfica comercial, designada usualmente por Nollywood, pela sua equiparação com Hollywood. Em visita a um edifício abandonado, o realizador deparou-se acidentalmente com bobines deterioradas contendo ruínas de filmes produzidos nos anos 40 e 50, pela unidade de cinema colonial estabelecida pelo governo britânico. Por sentir a parcialidade da memória à sua disposição, de há uns anos para cá, o realizador foi-se tornando um arquivista. Um arquivista acidental a tentar recuperar um espólio cuja história acidentada leva-o a interrogar-se sobre como os estados-nação apoiam tanto políticas de memória como de esquecimento. Um arquivista que trabalha sobre o modo como sucessivos governos activam ou desactivam arquivos, consoante estes recursos pareçam ou não traduzir uma história que lhes interessa manter. Registos deteriorados deixam de falar tanto sobre o passado a que se referem, para passar a gritar sobre a política de esquecimento que os arruinou.

Ou a história de um realizador egípcio que se tornou num contra-arquivista de urgência. O arquivo nacional do seu país tem as portas encerradas, limitando acesso aos fragmentos de memória à sua guarda. Ao negar aos seus cidadãos a possibilidade de os conhecer, impede o trabalho posterior de descodificação desses fragmentos do passado, e o seu uso para pensar sobre a história do país. Ou ainda a história de um realizador angolano que esteve 6 anos a produzir material fílmico para construir um arquivo de memórias orais sobre um passado que a história oficial do seu país lhe omitiu. 

São histórias de arquivistas que não o são por formação, mas porque em algum momento do seu percurso se depararam com a necessidade de configurar arquivos com memórias esquecidas, deterioradas, fechadas, suprimidas, todas elas subalternizadas. Estas histórias sobrepõem-se, ao mesmo tempo que se singularizam, mostrando relações conturbadas com os domínios de memórias nacionais. São histórias de pessoas que procuram amplificar a memória pública dominante, quebrar a supremacia do acesso e controlo por parte de qualquer governo ou estrutura nacional – que batalham para que a incapacidade de Funes em pensar não domine as suas memórias. Induzidas por políticas das memórias oficiais, apontam para formas de resistir ao esquecimento, combatidas através da criação de novos materiais e novos usos de velhos, de fragmentos de memórias até então subalternizadas. 

Para além de novos arquivistas, estes realizadores têm em comum terem crescido em países com independências relativamente recentes, países e realizadores-arquivistas partilhando idades correspondentes. Que não haja equívocos – lidando com memórias de países mais antigos sobre passados de dominação colonial, outros participantes do encontro embarcam numa luta semelhante.

Os arquivos são repositórios estruturados, com dinamismos dependentes do seu arquivista, elemento bem mais transitório em relação ao potencial de permanência de instituições ou de acervos. A história de uma arquivista alemã que olha para os utilizadores do arquivo onde trabalha como arquivistas em potência é aqui útil. A arquivista valoriza o que cada interlocutor tem a dizer sobre fragmentos da memória do mundo à sua guarda. A arquivista assume os arquivos como guardiões de fragmentos, por natureza incompletos, vendo nas interacções no presente a possibilidade de lhes acrescentar dimensões valiosas: seja de conhecimento, seja novas produções, seja novas reflexões. Num contexto onde predominam os arquivos fílmicos guardando cinematografias nacionais, e sendo alimentado através de um festival de cinema do mundo inteiro independente, militante ou de resistência, será por acaso que o arquivo onde trabalha tem um fundo muito singular? 

Destacou-se uma convergência no discurso destes guardiões, investigadores, ou produtores, abordando momentos históricos a partir de diferentes relações na produção e no uso de registos fílmicos documentais: a sua intenção de renovar percepções sobre o passado. Na medida em que parâmetros assumidos como garantidos em dado contexto surgiram postos em causa noutro, este objectivo comum tornou o encontro produtivo, fazendo emergir a questão das políticas da memória e várias relações com a construção de história. Os arquivos guardam também as fissuras da memória dominante, permitem gerar controvérsia, seja sobre o acesso, seja sobre o controlo dos materiais, como também sobre narrativas públicas dominadoras estabelecidas no passado. 

O desconcerto de fragmentos da memória do mundo


A mobilidade necessária para reunir estas pessoas num mesmo lugar traz consigo questões de territorialidade subjacentes a materiais produzidos em diferentes partes do mundo, mas hoje armazenados em arquivos das anteriores metrópoles. O impacto das contradições inerentes a essas mudanças políticas num universo grandemente subordinado à imutabilidade, levanta questões sobre a identificação destes materiais e sobre a facilitação do seu acesso. 

O que fazer para estabelecer um trânsito entre material filmado num território, à guarda de outro, usualmente a anterior potência europeia? Estes legados do passado são actualmente desconhecidos tanto nos países hoje independentes como nos países com passados de dominação colonial. As formas de os conhecer continuam subjugadas a categorias históricas postas em causa por mudanças políticas mais ou menos recentes. Sendo histórias partilhadas de perspectivas opostas, até recentemente umas dominadoras e outras subalternizadas, estas últimas lutam por lugares de onde interrogar o seu oponente.

Um realizador angolano intrigava-se pelas poucas imagens que encontrava de guerrilheiros na luta de libertação em arquivos portugueses, até entender que uma busca por “terroristas” lhe proporcionava um panorama bem mais alargado do tipo de imagens que procurava para aceder à sua história. Os arquivos são simultaneamente lugares que retêm materiais produzidos no passado e sistemas com formas pré-estabelecidas de os organizar. Se a memória aparece como um território contestado, os arquivos surgem como os repositórios onde o esquecimento das gerações seguintes pode ser abalado pelas ferramentas criadas e usadas no passado. Torna os próprios arquivos em territórios contestados, não só pelos conteúdos armazenados, como pelas estruturas usadas para indexação, ou pelas políticas de acesso – ferramentas com que a resistência e revolta hoje se produz. Os arquivos são bons para pensar sobre a construção da memória do mundo, são estimulantes pela sua singular parcialidade.

Se existem múltiplas versões da história, dependendo de quem a escreve e de quem a lê, qual a possibilidade de pôr todas as bases de dados dos arquivos em ligação, isto é, como pôr instituições com diferentes graus de formalidade a comunicar e a colaborar entre si? Como se pode redistribuir a disparidade de materiais à guarda de arquivos europeus sobre territórios não europeus tornados nações independentes? Em que moldes essa redistribuição poderia ser feita? Quem poderia ser envolvido?

Aceder a materiais fílmicos arquivados a um nível transnacional não é fácil; reutilizá-los também não. A maioria dos arquivos definem quantias proibitivas a produções independentes de baixo orçamento (seja pela sua regulação quanto à salvaguarda de direitos de autor ou de produção ou de custos de processos de facilitação); uma minoria oferece o uso das imagens à sua guarda. 

Chegamos à questão do acesso, da sensação recorrente de uma porta fechada, por vezes entreaberta, raramente aberta, de muitos arquivos pelo mundo inteiro. A frequente promoção de políticas de acesso restrito tem vindo a criar camadas mais ou menos circunscritas de privilegiados – investigadores, realizadores, e cada vez mais artistas. Para estes investigadores, realizadores e artistas, o privilégio de acesso é acompanhado pela responsabilidade de interrogar intenções – ora destes fragmentos, ora dos eventos que os criaram, ora da condição de fragmentos arquivados. Pela responsabilidade de colocar no espaço publico a discussão sobre fragmentos do passado entretanto esquecido, emprateleirado em narrativas construídas noutros tempos, através de perspectivas particulares.

Para que a sensação de portas fechadas de arquivos fílmicos possa ser arrombada é preciso destronar a ideia de que a preservação dos materiais à sua guarda consiste exclusivamente em manter a sua materialidade intacta para o futuro. A questão tem vindo a ser posta em causa pela crescente redescoberta de materiais em condições diversas de preservação. Que futuro há neste acesso limitado no presente? Fechada, essa memória serve a quem e para quê? Pelo crescente número de filmes que interrogam materiais de arquivo, remoendo memórias até agora encarceradas em arquivos ou em narrativas dominadoras, sabemos que uma porta aberta permite pensar sobre a mutabilidade de sentidos que fragmentos do passado nos podem hoje sugerir – a nós, espectadores presentes, um futuro concretizado como arquivistas desse passado. 

Talvez o futuro ideal para os arquivos seja substituir a sensação de uma porta fechada por uma porta giratória que fortaleça a colaboração mútua, que faça circular as imagens, as suas histórias passadas e lhes dê pulsão de vida no presente.

Resistir a esquecer os outros: mediações e colaborações com imagens do passado


Seguem-se histórias sobre actividades com fragmentos do passado que pretendem desnortear as supremacias existentes. Histórias sobre maneiras de ultrapassar algumas das dificuldades em encetar por outras construções da memória, e assim controlar um pouco a sua história. As desigualdades em infra-estruturas, tanto de preservação como de políticas de acesso e de memória, não tem impedido que existam trabalhos a ser feitos – dificultam-nos sim, mas o seu surgimento é inabalável. O que se mantém pendente é a visibilidade do trabalho resultante, o que faz contar as suas histórias ainda mais importante.

Um produtor cultural congolês colabora com museus e arquivos europeus para pôr artistas e produtores culturais do seu país a trabalhar sobre imagens produzidas no tempo colonial, através de práticas artísticas põe jovens a lidar hoje com essas imagens do passado. O produtor começou o projecto através de um acesso à distância, mas a mediação tecnológica não facilitou a fluidez nas interacções entre desconhecidos historicamente ligados. O produtor superou esse obstáculo através de uma visita presencial a um dos arquivos Belgas, onde se deparou com a dificuldade emocional em ultrapassar a desigualdade que viu marcada nessas fotografias e filmes. Foi ao mostrar essas imagens à família no seu regresso que lhe foi indicando modos de cicatrizar essas emoções, e a importância de trabalhar hoje com essas imagens do passado – de as usar para lhes acrescentar dinâmicas do presente. 

A sua história ressoa com a de uma artista belga que desenvolve o seu trabalho em museus alemães sobre fotografias tiradas a pessoas um pouco por todo o mundo, imagens reconfiguradas em sistemas de categorização abstracta, estabelecidos há várias décadas. Ao implicar na maior parte das vezes a desumanização dos sujeitos retratados, estas imagens são hoje raramente usadas e pouco conhecidas, impedindo discussões sobre a sua existência e a sua preservação. Como imaginar um outro futuro sem discutir este passado e sem o marcar com um presente? 

Tal como o trabalho dos arquivistas e dos artistas, o dos investigadores medeia o presente e filmes do passado, num presente marcado por décadas de independência dos territórios onde registos fílmicos foram sendo produzidos. Assinalemos a história de um investigador inglês que tem estudado filmes coloniais britânicos produzidos em vários lugares do mundo, hoje em arquivos britânicos. A sua pesquisa visa facilitar o acesso a esses filmes conjuntamente com interpretações críticas sobre a sua produção através de uma abordagem contemporânea a essas pesadas produções coloniais. Ou a de uma investigadora portuguesa pesquisando simultaneamente histórias de filmes produzidos no tempo colonial e o seu contraponto, filmes de militância e resistência ao colonialismo português. Estes filmes produzidos em territórios que sofreram uma longa colonização, encetam gestos de dominação e resistência através de uma mesma ferramenta, o cinema.

Sublinhemos também o lugar de colaborações. Por exemplo, a colaboração entre uma artista portuguesa e um realizador guineense, que procuram através de filmes militantes esquecidos, recuperar as memórias ainda vivas sobre a sua produção. Maltratados pela falta de atenção desde da sua produção, a recuperação física foi possível através do arquivo alemão já referido, detentor de um acervo assumidamente transnacional. É também a transnacionalidade destas colaborações que parece definir as possibilidades de estabelecer diálogos com estes legados hoje. Quão diferente é o caso de um realizador português de origem judaica alemã que trabalha a fronteira entre memória pessoal e colectiva – e que olha para a sua história pessoal para interrogar uma história social?

Num encontro com pessoas de diferentes origens coloca-se a questão das várias línguas dos participantes e a necessária decisão por uma língua franca. Qualquer escolha implica dimensões que se podem tornar ou não eventualmente problemáticas. Nos eventos fechados houve tradução simultânea de inglês para francês para que alguns dos participantes pudessem seguir e intervir na discussão. A tradução simultânea tornou audível a diversidade linguística dos participantes. A audiência dos eventos públicos adicionou maiores dificuldades para navegar a diversidade de línguas, contextos e experiências dos envolvidos. Para lidar com esta torre de Babel, a estratégia nos eventos abertos ao público, consistiu ora na tradução simultânea ora consecutiva. O entusiasmo gerado pela oportunidade do encontro dedicado à partilha entre pessoas de diferentes países com diversas experiências, criou expectativas difíceis de cumprir num contexto em que quase ninguém estava a ouvir a sua língua materna. Conhecer memórias e experiências de outros requer um trabalho de paciência que nem sempre todos estão dispostos a seguir.

Nas sessões internas, o programa ambicionava incluir visionamentos, o que rapidamente criou constrangimentos temporais para o debate. O gesto de resposta por parte da organização consistiu em repensar rapidamente um plano desenhado durante meses, com o propósito de disponibilizar mais tempo para o diálogo sobre as experiências de cada um e para a discussão em grupo.  

Os filmes ou excertos do género documental exibidos durante o encontro, em sessões públicas ou internas, formaram também um espectro alargado, tanto ao nível de contextos e lugares de produção, como incluindo filmes produzidos num passado distante, e outros de produção mais recente, construídos através de fragmentos do passado. Viram-se filmes analógicos digitalizados, uns restaurados e outros nas condições materiais em que se encontravam, e filmes recentes que usam materiais de arquivo nas mais diversas condições. Os filmes e excertos previamente escolhidos por alguns dos participantes deram o mote para debate; pensemos brevemente na sua recepção.

Não é a forma, é o texto

Serei parcial na minha escolha, selecionando filmes com um dispositivo formal semelhante, que provocaram diferentes reacções nos espectadores. Em três ou quatro momentos os participantes viram excertos e filmes por inteiro que sugerem não ser tanto uma questão de forma – como mais uma questão de texto, o que configura a reacção dos espectadores a estas imagens de cariz documental. Para salientar as diferentes reacções a filmes formalmente semelhantes, moldados no entanto por abordagens discursivas diversas, assumo outra ordem que não a da sua exibição. Interessa-me percorrer um movimento de abertura da narração, numa alteração da postura do narrador e do seu texto.

Tomemos como referência um dispositivo audiovisual com uma narração explicativa, construída com base no distanciamento entre quem filma e quem é filmado, característica de muitos filmes produzidos em contextos coloniais com intenção de propaganda. Esta forma define também o estilo de reportagem jornalística televisiva, assim como o documentário didáctico, ambos em contraponto com o documentário de autor. Se ao primeiro género muitos hoje associam a intenção de propaganda, ao segundo género continuamos a valorizar autoridade e veracidade - mas não como cinema documental, para isso existe o terceiro género. 

Para não esquecer a surdez do discurso do cinema colonial em relação aos sujeitos filmados, um dos participantes, ao escolher passar um curto filme colonial produzido nos Camarões nos anos 40 cujo som se deteriorou ao ponto de ser difícil a sua compreensão, acompanhou-o com uma transcrição da narração. Esse gesto chama a atenção para o peso da dimensão textual na percepção das imagens – faz da narração um indicador do tipo de autoridade que um filme procura ter.

Comecemos assim por falar de um excerto de The New Egyptians ([Os Novos Egípcios], 1977, de Michael Croucher, Inglaterra), um documentário produzido pelo canal de televisão britânico BBC, sobre o quotidiano de uma família residente na cidade do Cairo. O locutor de timbre britânico explica o que a imagem não explicita a um espectador não familiarizado com o contexto. O documentário de Sarah Maldoror, Fogo – Île de Feu ([Ilha do Fogo], 1979, 23 min, Cabo Verde), produzido através de uma comissão do PAIGC, movimento de libertação e depois partido político no poder em Cabo Verde e na Guiné Bissau, segue formalmente o mesmo registo, e o discurso assertivo sobre os habitantes retratados é um decalque do mesmo recurso estratégico, onde a voz de quem é filmado surge obliterada. Na audiência a pergunta feita serve para qualquer um destes filmes: quanto do seu texto terá sido feito em colaboração?

Uma reacção mais ambivalente teve o filme de Daniel Blaufuks, Judenrein (2019, 11 min), que procura na sua narração oferecer uma reflexão sobre dimensões sociais que as imagens por si só não mostram – a alteração dos parâmetros sociológicos da população numa aldeia polaca, de maioria para pequena minoria judaica, após o encerramento dos campos de concentração nazis. Encontradas à venda no mundo virtual, as imagens sobre as quais o narrador reflecte não têm autor conhecido. O discurso em off resulta de uma negociação entre história e imagem, uma escolha consciente para salientar uma história escondida nas imagens, através de perguntas às imagens. A escolha foi a de construir um discurso pessoal, sobre as dimensões visuais e materiais mediada pela sua relação com essas imagens e seus suportes. Depois da projecção, gerou-se uma discussão produtiva à roda do valor de um texto pessoal, como contraponto ao distanciamento usual dos textos em filmes coloniais. Tivemos oportunidade de ver um dispositivo narrativo semelhante em Préface à des Fusils pour Banta ([Prefácio às Armas para Banta], 2011, 26 min, de Mathieu Kleyebe Abbonnenc), uma curta-metragem cruzando o uso de fotografias de arquivo com animação. O texto narrado por uma voz feminina incorpora a perspectiva de um projecto de Sarah Maldoror que não chegou a conhecer a sua forma final enquanto filme. Ao concretizar 30 anos depois um projecto que nunca chegou a ser concluído, o texto do filme de Abbonnenc joga com um passado imaginado do que este poderia ter sido. 

Bastante aplaudida foi a projecção pública de um filme mudo, que consiste no registo documental da primeira assembleia nacional da Guiné-Bissau, em 1973. O filme foi apresentado através da memória viva de Sana na N’Hada, o seu realizador, presente em sala, numa rememoração traduzida para inglês pela artista Filipa César, com quem tem colaborado. O público participou numa negociação em tempo real entre o movimento das imagens, o da memória, e de uma sua tradução numa sessão que mostrou como o cinema Guineense nasceu no mesmo momento em que nasceu o país.

Outros filmes que usam o dispositivo da narração, combinam entrevistas ou discursos por parte dos seus intervenientes – caso de Uma Memória em Três Actos (2016, 64 min, de Inadelso Cossa, Moçambique); como também de Carnaval en Guiné Bissau (1980, 13 min, de Sarah Maldoror, Guiné Bissau). Mesmo não esquecendo que estas vozes são sempre mediadas, entre o discurso actual de propaganda politica e o discurso até agora silenciado da vivência do passado, varia a quem é dada voz directa. O mesmo dispositivo surge portanto com diferentes implicações.

À reacção após o visionamento, seguiram-se conversas capazes de interrogar o modo de produção e respectiva circulação ou uso do filme acabado de ver. São dimensões na maior parte dos casos ausentes do filme-obra, possíveis de obter na multiplicidade de dispositivos de apoio à sua exibição: no programa, na apresentação, ou na discussão. Conscientes da efemeridade do seu trabalho, os especialistas desdobram a sua acção.

 

Abrir a memória ao mundo e ligar os mundos das memórias

Ao juntar vozes e experiências de realizadores, artistas, arquivistas e produtores culturais, o encontro foi instigador. Pretendendo discutir os legados de arquivos fílmicos, o debate mostrou a intensidade da questão da memória mas também a vitalidade do trabalho sobre fragmentos do passado que anda a ser produzido em várias partes do mundo. Abriu a porta a novos diálogos entre diferentes praticantes como também entre agentes familiarizados com narrativas históricas opostas. Estabeleceu a possibilidade de construir redes e ligações entre saberes, prácticas, interesses, ideias, experiências, ou olhares. O público que acompanhou as sessões de cinema, encontrou eventos onde os arquivos fílmicos foram tomados como lugares com a capacidade de nos levar a interrogar sobre o que sabemos através do olhar – através tanto de filmes como da sua discussão – por que e como foram feitos, por onde circularam? Para pensar sobre o passado e sobre as memórias que hoje dele temos.

O encontro enriqueceu um debate que tem vindo a ser desenvolvido em Portugal sobre arquivos fílmicos, diferentes fragmentos do passado, estruturas para a sua preservação e identificação e seus usos. Estamos longe de ter as capacidades da memória sem omissão de Funes. O encontro mostrou que não é essa capacidade que nos faz falta. O que nos falta é mais espaços para escutarmos e pensarmos juntos questões de memórias.

Tudo Passa excepto o passado

por Inês Ponte
Afroscreen | 18 Fevereiro 2020 | arquivos, filmes, memória