Are you for real?

Como sugere o seu título, este programa fundamenta-se em dois eixos: a experiência do cinema Blaxploitation norte-americano e o movimento artístico transnacional (e transplanetário) do Afrofuturismo, reescrevendo as histórias da diáspora africana e da escravatura através de novos paradigmas cosmológicos, mitologias e tecno-futurismos.

Numa perspetiva queer, é certamente de grande interesse observar estes paradigmas pelo prisma da interseção entre várias categorias de poder, como raça, género e sexualidade, bem como notar como ambos os fenómenos influenciaram – e ainda influenciam – muitas expressões artísticas queer “negras” visuais e musicais, no Reino Unido, EUA ou Jamaica, como a soul, hip hop, rap, bouncing, voguing… Pretendemos abrir o discurso sobre as várias utopias visuais e sonoras resultantes das diásporas africanas em países anglófonos e, por sua vez, a disseminação destas pelo mundo inteiro.

Space is the Place Space is the Place Nos minutos finais de Space is the Place, o filme interpretado pelo músico de jazz Sun Ra em 1974, aparece uma cena que pode ajudar a sintetizar o sentido que unifica os títulos do programa, bem como os eventos musicais, as performances e instalações que o completam. Durante um concerto de Sun Ra, dois agentes de polícia “brancos” disparam contra um jovem “negro”, deixando-o morto no palco. Sun Ra e a sua Arkestra continuam a tocar; as ondas musicais ressuscitam o jovem e transportam-no para o espaço, àquele lugar onde o músico está a tentar transferir todos as pessoas “negras” dos EUA. De um realismo chocante e muito atual, o adolescente estendido no seu próprio sangue é transfigurado, literalmente elevado para um espaço simbólico fora do tempo, da história, um espaço de renascimento e justiça utópica.

Sun Ra in 'Space is the Place'Sun Ra in 'Space is the Place'Ainda que seja desafiante descrever a figura de Sun Ra em poucas palavras, o aspeto que mais nos impulsionou a criar este programa é a sua ruptura iconográfica com os modelos prevalecentes na época, seja na cena musical do jazz, seja no ativismo “negro”. A sua performance da masculinidade “negra”, mas também a sua ideia de resistência musical contra a violência racista da sociedade pós-escravatura, parecem vir de outro mundo. Em drag como faraó, deus egípcio, alienígena, ele recordava à juventude “negra” que não, ele não é real. Are you for real? Nenhum deles o podia ser, porque toda a história dos afro-americanos é um irreal e monstruoso horror de ficção científica, do qual só a liberdade do som pode resgatá-los, levando-os para outra realidade. Não é difícil imaginar como este tipo de abordagem pudesse deixar perplexos, senão mesmo hostis, muitos ativistas “negros” da época.


Também nos interessava reenquadrar a utopia de Sun Ra no contexto do cinema Blaxploitation, pois seria difícil conceber um filme como Space is the Place, sem o antecedente de fertilíssimos anos durante os quais o género conheceu um sucesso extraordinário, oferecendo, entre centenas de títulos, Sweet Sweetback Baadassss Song, um filme tão inovador na sua linguagem visual e narrativa, quanto pioneiro, ao conceder subjetividade a personagens “negros” longe de arquétipos, como o vilão ou o escravo, e garantindo-lhes uma possibilidade de fuga à opressão “branca”, um futuro para lá dos créditos finais do filme.

Last Angel of HistoryLast Angel of History

O fenómeno do Blaxploitation, para aqueles que trabalham o conceito de “queer”, é tão atrativo quanto problemático. Um cinema marginal, que procura dar visibilidade a categorias oprimidas e excluídas da representação mainstream no cinema americano – o mesmo cinema cuja história é marcada por The Birth of a Nation, de D. W. Griffith, em que o Ku Klux Klan é abertamente celebrado – mas que ao mesmo tempo necessitava de sucesso de bilheteira, encontrando-o com recurso a uma afirmação nacionalista afro-americana sustentada e reforçada por elementos sexistas e homofóbicos. Foi, no entanto, este o género que nos deu a conhecer Pam Grier, “queen of Blaxploitation”, a atriz que deu vida a personagens como Coffy ou Foxy Brown, que se destacaram pela sua força incrível na luta contra o sexismo, tornando-as símbolos de referência nos discursos feministas “negros”.

Também Isaac Julien, cujos vários filmes integram este programa, se debruçou sobre o cinema Blaxploitation no filme Badassss Cinema: A Bold Look at 70s Blaxploitation Cinema, explorando a sua relevância na representação da comunidade negra no grande ecrã e questionando ao mesmo tempo a sua postura sexista e homofóbica. Já em The Darker Side of Black, Isaac Julien explora o panorama da cultura popular “negra” nos EUA, Jamaica e Reino Unido, tendo como exemplo o rap e o reggae e, por sua vez, como estes se fizeram afirmar pela ritualização do machismo, a misoginia, a homofobia e a glorificação das armas. Se, por um lado, temos movimentos fortemente marcados pelo sexismo e pela homofobia, encontramos alívio em movimentos que pretendiam criar alternativas queer e dissidentes.

Paris is burningParis is burningRevisitamos então Paris is Burning, filme que deu visibilidade internacional ao voguing, movimento nascido no seio das comunidades gay e trans “negras” e “latinas” de Nova Iorque. Reclamando os dancehalls como espaços políticos queer, o voguing deu origem a uma utopia longe da discriminação racial e sexual que continua a ser uma fonte de inspiração na produção artística contemporânea.

Como tal, propomos celebrar este programa não só através do cinema mas também através da música e da dança. Para tal decidimos convidar artistas e performers, como Vaginal Davis e Liad Hussein Katorowicz, cujos trabalhos exploram a relação entre o racismo, a sexualidade e a diáspora nas experiências queer, Berries, para uma noite de música de homo pop e queer rap e ainda a House of Melody, que orientará workshops e apresentará um espetáculo de voguing na noite de encerramento.

Young Soul RebelsYoung Soul Rebels

Neste programa é ainda possível assistir a A person is more important than anything else…, de Hank Willis Thomas, uma instalação de múltiplos canais onde assistimos a um fluxo de imagens e sons pelos quais James Baldwin transita, enquanto manifesta as suas preocupações com questões de raça, género, classe e sexualidade.

Aproveitamos ainda esta ocasião para assinalar a apresentação do livro In a Qu*A*re Time and Place. Post-Slavery Temporalities, Blaxploitation, and SunRa’s Afrofuturism between Intersectionality and Heterogeneity, de Tim Stüttgen, um trabalho de grande importância e paixão, peça fundamental de inspiração para este programa.

Born in FlamesBorn in Flames

 


por Ricke Merighi e Pedro Marum
Afroscreen | 7 Julho 2015 | afro-futurismo, cinema, distopia, ficção científica, Queer, utopia