TIMÓTEO SABA M'BUNDE: uma análise de dentro da política externa

N’BUNDE, Timóteo Saba. As políticas externas brasileira e chinesa para a Guiné-Bissau em abordagem comparada (1974-2014). Rio de Janeiro: Gramma, 2018, pag. 224.

O guineense Timóteo Saba M’bunde é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Neste seu livro aborda as políticas externas brasileira e chinesa para a Guiné-Bissau numa perspectiva comparativa, a partir de levantamento feito das organizações estatais e não-estatais e representações diplomáticas dos dois países em Bissau, capital político administrativo do país. O livro analisa as similitudes e as diferenças entre o Brasil e a China no que diz respeito às políticas externas de cooperação com a Guiné Bissau.     

A problematização vai sendo desenvolvida a partir da resposta às seguintes questões: Como se configuram as políticas externas brasileira e chinesa para a Guiné-Bissau? Quais as motivações e suas variantes? Porque que razão a China optou por uma política externa bilateral, em contraposição ao multilateralismo brasileiro? Qual a percepção da elite governamental e da sociedade civil sobre as políticas externas brasileira e chinesa? 

A exposição das ideias é apresentada em cinco capítulos: 

(1) apresentação do debate teórico sobre política externa e cooperação internacional. Política externa, entendida no livro, como o conjunto de ações estratégicas levado a cabo pelo Estado no domínio externo, em decorrência de fatores e interesses nacionais, no campo internacional, no quadro da corrente realista de Estudo das Relações Internacionais, inaugurada por Hans Morgenthal, a qual se convencionou chamar “for neid” para o desenvolvimento;

 (2) discussão da formação sociohistórica e cultural da Guiné-Bissau, realçando o curto período da política de unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde que, na década de 1960, deu início a luta comum contra o regime colonial português; 

(3) análise da política de condicionalismos das agências internacionais da ONU, particularmente no campo da política externa e da cooperação internacional; 

(4) visualização da inserção dos países na arena internacional, mormente, pós-segunda guerra mundial e suas implicações para os países africanos, Guiné-Bissau, em especial;

 (5) o último capítulo aborda similitudes e especificidades entre as políticas externas brasileira e chinesa para a Guiné-Bissau, do ponto de vista empírico, segundo visões de seus agentes. 

A escolha metodológica deixa-nos perceber com nitidez as três dimensões (histórico-cultural, institucional e cognitiva, ou “psico-milium”) sobre a política externa e cooperação internacional, em que, ao contrário de abordagens teóricas tradicionais centradas no Estado, Timóteo Saba M’bunde realça a presença de atores não-estatais, que se articulam no campo da política doméstica, alargando, assim, o quadro conceitual e analítico, que pode ser percebido no último capítulo, embora com ligeira densidade levantada nos quatro primeiros capítulos. 

Num quadro analítico, M’bunde articula a corrente realista e pluralista, positivista e neo-positivista da política externa, bem como as percepções que as organizações e grupos da sociedade civil concebem à cooperação chinesa e brasileira. 

Toda a política externa surge num determinado contexto. É no contexto da Conferência de Bandung de 1955, segundo o autor, que aparecem as primeiras conformações em defesa da ideia da cooperação internacional para o desenvolvimento em África, que, posteriormente, possibilitavam a edificação da ideia da cooperação Sul-Sul, num cenário marcado pela ruptura Guiné/Cabo Verde e o solapamento do projeto de unificação dos dois países, proposto por Amílcar Lopes Cabral. 

No âmbito político, porém, o processo de transição guineense para a democracia liberal, alargando os espaços de participação, representação e direito à opinião, ficou marcado por conflitos internos, misturado com questões regionais e internacionais. A violência de 7 de junho 1998 com implicações no 12 de abril de 2012, desenceou ações políticas assumidas no âmbito do regime político (instituições e ações públicas). No capítulo 2, Timóteo analisa atentamente as tensões e os sucessivos golpes de Estado no país. 

Um dos argumentos defendido pelo autor é que as diversas inserções bilateral e multilateral de Guiné-Bissau foram marcadas por rupturas, reconfigurações e descontinuidades. As descontinuidades são inerentes à dinâmica da política externa em que os agentes e agendas das políticas estatais mudam de acordo com o cenário político interno e as dinâmicas internacionais. As consequências políticas e diplomáticas da descontinuidade da política externa guineense são de vulto, quer seja do ponto de vista regional, quer no âmbito internacional, bilateral e multilateral (CPLP, CEDEAO, ONU e EU). 

As relações de cooperação da Guiné-Bissau com a China e o Brasil, analisado por M’bunde, inserem-se nessas múltiplas pertencias que evidência um alto grau de “dependência externa” do país em relação à cooperação internacional para o desenvolvimento, nos moldes referenciais dos chamados países doadores. Por essa razão, não é de estranhar que apesar dos países do Sul Global criticarem a lógica da cooperação internacional tradicional Norte/Sul, em função de interesses geoestratégicos, tais países não conseguem distanciar-se da racionalidade instrumental focada, sobretudo, na acumulação primitiva de capital. É uma afirmação que acompanha a chave teórica assumida no livro, no campo das Relações Internacionais. Basta analisar, por exemplo, as teorias realistas, que reivindicam o caráter pragmático do Estado.

No plano bilateral e multilateral (cooperação entre dois Estados, ou entre vários Estados trabalhando em conjunto), o autor realça as regras internacionais que regulam as relações de cooperação, em nível de condicionalismos para alocação de recursos, por exemplo, em nível da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, no capítulo 3. 

Os países do Sul, incluindo China e Brasil, entre outros, salvo em poucos casos, tendem a limitar a sua condicionalidade política aos aspectos operacionais e não reformistas. No caso da China, o seu condicionalismo é não estabelecer relações de cooperação com Taiwan. Isto evidência a tensão prevalecente entre os dois Estados e a seletividade da política de condicionalismo chinesa de não ingerência nos assuntos internos de países com os quais mantém as relações de cooperação, exceto os países próximos da China. 

No plano da política doméstica, em articulação e ampliação das duas primeiras dimensões, confere relevância o pluralismo de atores da política externa, influídos no processo decisório. Segundo Timótio Saba M´bunde, em regimes democráticos, as políticas domésticas são definidas a partir da participação de agentes não-governamentais, governamentais e representações diplomáticas. Não obstante as modalidades distintas de atores, tipos de organizações e agendas da política externa, atrelada a política interna, há um elemento comum entre a política multilateral, bilateral e doméstica. Uma delas é a tensão entre a ideia de cooperação e do condicionalismo político em que a questão do grau da dependência influi na correlação de forças políticas entre os Estados nacionais. 

Definindo o quadro sociocultural do país, o marco teórico e as três dimensões analíticas (contexto, dimensão institucional e cognitiva – visões dos atores) que constituíram o objeto de estudo, Timótio Saba M´bunde analisou as similitudes e especificidades entre cooperação para o desenvolvimento de Brasil e China na Guiné-Bissau com bastante riqueza para cientistas sociais e cientistas políticos.

Enquanto a China privilegia a política de “oil for infrastructure” ou “oil for cash”, de pendor bilateral, o Brasil privilegia a cooperação no ensino superior, de pendor multilateral, em que o Atlântico Sul assume um papel de destaque nas relações com a Guiné-Bissau, no âmbito da CPLP. A China privilegia a política de “for infrastructure”. Esse modelo de cooperação, de uma forma ou de outra, deve-se ao fato de a Guiné-Bissau estar ainda numa fase de prospecção de seus minérios, diferentemente de outros países africanos.

A política de infraestrutura (sobretudo construção de edifícios públicos), também denominada de “chave-na-mão”, em referência às obras chinesas construídas no país, baseia-se no pragmatismo da política de “win win” da cooperação chinesa (em que supostamente todos ganham). Como contrapartida, o Estado guineense disponibiliza contratos de extração de madeira e da pesca como contrapartida à política de “for infrastructure” chinesa para a Guiné-Bissau. Um ator pouco presente nessa configuração de cooperação é a visão da elite governamental guineense, que intermedia as políticas externas de cooperação através do Estado. A questão que se coloca aqui é a de saber como garantir a política de “win win” mum contexto de relações de força desiguais no processo decisório.

Embora de modo distinto, Timótio Saba M´bunde afirmou que, tanto a China como o Brasil, utilizam o discurso da “solidariedade”, de “luta contra o imperialismo” e “descolonização” como retórica para maximizar as suas influências diplomáticas e políticas no quadro internacional. Perguntamos, já agora, qual a retórica que a elite governamental guineense utiliza na relação externa com a China e o Brasil?

Em relação às percepções de atores, no capítulo 5, Timótio Saba M’bunde apontou que tanto a política de “natural resources for infrastructure” (recursos naturais em troca de construção de infra-estruturas, da política chinesa) quanto a política de cooperação brasileira, inicialmente marcada pela lógica independentista e de vizinhança Aquém e Além-Mar, de 1980 a 1990 até aos governos do ex-presidente do Brasil Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), enquadrada na lógica de soft power, sobretudo da “cooperação do Sul-Sul” de ensino superior. Acrescentaria, como referência, dessa política, a Unilab, considerado o locus desse soft power nas relações de cooperação de ensino superior entre o Brasil e a Guiné-Bissau. 

No contexto de uma abordagem alargada da política externa, interessa problematizar se a política externa brasileira e chinesa se baseiam na lógica de “soft power”, que espaços nos restam para uma cooperação do Sul Global para o desenvolvimento que seja capaz de fazer de nós, genuinamente, povos livres da dominação colonial?
Por outros termos, se a cooperação do Sul, mais especificamente brasileira e chinesa, se baseia na lógica de soft power, caberia perguntar como será possível garantir a integração internacional fora de uma lógica meramente instrumental? 

O que a obra de M’bunde mostrou, no âmbito das Relações Internacionais e da Política Externa, é que as relações entre o Brasil, a China e a Guiné-Bissau não podem ser reduzidas a um somatório de dados estatísticos mercantis, ainda que não os excluam como elemento constitutivo da Política Externa que beneficiam os Estados.
No âmbito dessa linha argumentativa, as políticas externas passam a ser tratadas como fenómenos entrelaçados, contingentes e abertos, em constante disputa de sentidos multidimensionais. 

Quatro inovações permeiam o livro, como contribuição à Ciência Política e Relações Internacionais sobre a temática da política externa:

(1) é um estudo de dentro de alguém que se encontra fora das relações política diplomáticas, signatários de projetos de cooperação. 

(2) é uma obra original, pois, ainda são poucos estudos sobre a política externa de Guiné-Bissau em Ciências Políticas e Ciências Sociais. Muito mais escasso ainda à luz de estudos comparados. 

(3) No caso específico guineense, pode-se mencionar um artigo, de autoria de Jorge Cabral, intitulado “a política externa na Guiné-Bissau”, de 1989, publicado na Revista de Estudos Guineenses (Soronda, n. 7). A obra é pioneira em sua análise comparativa.

(4) Cumpre ainda ressaltar a metodologia efetivada através de entrevistas e contatos com as instituições representativas e diplomáticas dos países de cooperação que constituem o corpus da pesquisa articulando, ao mesmo tempo, os dados quantitativos e qualitativos para a identificação de atores, motivações, variações e percepções sobre a política externa e a cooperação internacional chinesa e brasileira para a Guiné-Bissau, entre 1974-2014. 

Com base nessas inovações, o livro abre espaço para novos estudos comparados sobre a política externa, que agora se inicia, pelo seu pioneirismo, rigor, qualidade e originalidade anteriormente descrita.

por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira
A ler | 20 Agosto 2020 | Brasil, China, cooperação, Guiné Bissau