“Raparigas nos lares de famílias civilizadas”: trabalho doméstico e políticas da diferença na Guiné Portuguesa (anos 1950)
Entre 1950 e 1951, na Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), a maioria dos assalariados “indígenas” estavam empregados no trabalho doméstico, na administração pública ou em atividades comerciais e industriais1. Esta era uma indicação que constava do relatório produzido pelo inspetor Carlos Henriques Jonas da Silva, após visita às diferentes administrações de concelho e circunscrição. No final da década, nova inspeção feita por Manuel Bento Gonçalves Ferreira indicava que a maioria dos contratos de trabalho estabelecidos com “indígenas” diziam respeito a trabalhadores domésticos, empregados comerciais e guardas-noturnos.2
- Embora ainda sejam largamente desconhecidas as realidades do trabalho doméstico na Guiné durante o período colonial, a documentação administrativa da década de 1950 mostra como, no quadro de um projeto de dominação colonial, ele surge como uma ferramenta de diferenciação, articulada com noções de raça e de género, mas também como um espaço de agência africana.
As condições do trabalho doméstico na Guiné
Na década de 1950, e até 1961, a Guiné era uma das colónias portuguesas onde o Estatuto dos Indígenas se encontrava em vigor. O Estatuto estabelecia quem era cidadão e quem era “indígena”, categoria jurídica sob a qual era colocada a vasta maioria da população guineense. Os indivíduos considerados “indígenas” estavam privados de direitos políticos como votar ou formar uma associação, e sujeitos a obrigações fiscais e laborais específicas (nomeadamente, o trabalho forçado para o estado). Da mesma forma, era-lhes negado o direito a julgamento em tribunais europeus em matérias civis, estando sujeitos ao poder judicial dos administradores e chefes de posto, que resolviam os litígios de acordo com o direito costumeiro.
A legislação previa que os “indígenas” podiam ser assimilados – para tal, deveriam provar ter um emprego estável ou meios de subsistência, falar português corretamente, ter cumprido o serviço militar e levar um modo de vida europeu.3 Na prática, tal transição era muitíssimo reduzida: em 1950, de acordo com as estatísticas oficiais, apenas um 1,6% da população da Guiné era considerada “civilizada”.4
O trabalho que o estado colonial considerava ser um “dever moral” dos “indígenas” era regido pelo Código do Trabalho dos Indígenas de 1928, que estipulava que cada “indígena” empregado deveria ter um contrato de trabalho. Estes contratos podiam ser feitos com ou sem a intervenção da autoridade administrativa, mas deveriam ser todos declarados junto da administração local, enquanto agência da Curadoria dos Indígenas.
Por exemplo, na administração do concelho de Bolama, no ano de 1955 foram registados 96 contratos de trabalho feitos com a intervenção da autoridade. Desses, apenas 11 diziam respeito a trabalhadores domésticos.5 No entanto, no mesmo ano, foram também registados 2092 contratos de trabalho sem intervenção da autoridade, sem que as ocupações a que se referem fossem discriminadas no sumário anual feito pelo administrador.6 Efetivamente, as estatísticas contêm várias sombras que dificultam a devida aferição das realidades do trabalho doméstico colonial. Parece ainda assim seguro assumir que o universo de trabalhadores domésticos contratados era mais vasto que os 11 contratos feitos com intervenção da autoridade em 1955.
Para além disso, mesmo o número de trabalhadores domésticos sem contrato deveria ser mais vasto, pois os próprios inspetores administrativos denunciavam a tendência de os empregadores não fazerem contratos de trabalho com os trabalhadores “indígenas” e o facto de a maioria dos contratos feitos sem a intervenção administrativa nem serem sequer declarados juntos da administração7. Isto significa que não só a dimensão do trabalho doméstico (e de outras ocupações profissionais) se torna difícil de aferir, mas também que muito provavelmente a maioria dos trabalhadores não recebia um contrato (e se este existisse, nem sempre era declarado), o que os tornava vulneráveis a abusos que a administração não conseguia controlar.
Os dados do concelho de Bolama revelam ainda que, em termos salariais, os trabalhadores domésticos estavam entre os trabalhadores “indígenas” com contrato mais mal pagos, a par dos trabalhadores indiferenciados. Em 1950, o salário mensal de um trabalhador doméstico variava entre 80$00 e 200$00; em 1955, entre 100$00 e 250$00. A título comparativo, em 1950 um empregado de loja de Bolama recebia entre 150$00 e 195$00 e em 1955 400$00. Um padeiro, em 1950 recebia entre 150$00 e 250$00 e, em 1955, auferia entre 250$00 e 350$00.8 Na década de 1950, o montante do imposto indígena anual no concelho era de 150$009, o que significa que alguns trabalhadores domésticos de Bolama não ganhavam num mês o suficiente para pagar o seu imposto anual, ao contrário de vários dos trabalhadores “indígenas” contratados.- As dimensões de género do trabalho doméstico: agência africana e expectativas coloniais
É notória a presença de homens nas fileiras dos trabalhadores domésticos da Guiné. Isso é demonstrado por dados sobre o grupo étnico dos Manjacos, sobretudo concentrado na então circunscrição de Cacheu, no norte da colónia. Os Manjacos têm hábitos migratórios bem estabelecidos e identificados pela etnografia colonial e moderna, profundamente associados à dominação colonial (para evitar ou satisfazer obrigações fiscais, por exemplo). Em 1950, viveriam 950 homens manjacos no concelho de Bissau – alguns deles empregavam-se no trabalho doméstico, como cozinheiros e lavadeiros. De acordo com o administrador António Carreira, as mulheres manjacas que se tinham estabelecido na capital, ou estavam a acompanhar os maridos ou trabalhavam na prostituição10. No entanto, segundo Carreira, quando emigravam para fora do território guineense, tanto homens como mulheres manjacas procuravam trabalho no serviço doméstico, entre outras ocupações11.
Estes dados mostram que os homens africanos eram atores importantes do trabalho doméstico na Guiné. Para além disso, como outras formas de trabalho colonial, o trabalho doméstico estava inserido em dinâmicas migratórias, constituindo uma oportunidade de trabalho válida entre outras no contexto da economia colonial.
No entanto, se encontramos tanto homens como mulheres empregados no trabalho doméstico, as mulheres africanas são objeto de maiores expectativas, visto que o projeto colonial lhes atribuía um papel eminentemente doméstico. Assim, no seu relatório relativo ao ano de 1948, o administrador da circunscrição de Fulacunda escrevia que “[a] mão de obra doméstica é frequente e fácil nas casas de civilizados, fornecida por ‘bajudas’ (raparigas solteiras) que se oferecem espontaneamente, já por vaidade de satisfazerem as suas vaidades em roupagens de mulher, que são, já para se libertarem do pesado jugo familiar”. Recorrendo a estereótipos, o mesmo funcionário notava que as próprias famílias africanas empurravam as filhas para o trabalho doméstico por razões financeiras mas também por mera bisbilhotice – os africanos teriam uma imensa curiosidade em “devassar os segredos da casa do branco”.12
Embora desagradado pelas motivações apresentadas pelo administrador, o inspetor Jonas da Silva, aquando da sua visita a Fulacunda em 1950, via com bons olhos o facto de raparigas africanas procurarem emprego no serviço doméstico pelo potencial de “assimilação” que representava, escrevendo que “a utilização, assim procurada por interesse mútuo de patrões e serviçais, do serviço doméstico, das raparigas nos lares de famílias civilizadas e de bom porte, é boa prática, constitui um meio, objetivo e produtivo, de colonização e civilização, pela assimilação de usos e costumes domésticos então fáceis de absorver”.13
A sociedade colonial oferecia aos homens e mulheres africanos oportunidades de trabalho como empregados domésticos, das quais eles se apropriavam – nomeadamente, as mulheres africanas poderiam ver o facto de trabalhar como criada como uma forma de libertação das expectativas familiares, ao mesmo tempo que as famílias também as podiam pressionar a procurar esse tipo de trabalho. No entanto, se tanto homens como mulheres trabalhavam no serviço doméstico, as trabalhadoras domésticas estavam sujeitas a considerações coloniais sobre papéis de género. A administração encorajava a existência de trabalhadoras domésticas africanas, pois o emprego em casas de famílias “civilizadas” seria alegadamente um meio de lhes ensinar a ser uma boa mulher colonizada, através da assimilação. No quadro das estruturas coloniais, o trabalho doméstico dos africanos era visto não só como uma forma de integração na economia colonial (desenvolvimento de hábitos de trabalho, pagamento de impostos), mas também como tendo uma missão de imposição de um determinado papel de género às mulheres africanas.
O trabalho doméstico na Guiné colonial faz parte de processos mais vastos das políticas da diferença. Por um lado, afigura-se um instrumento por excelência de diferenciação social e exploração laboral, ao ser um trabalho sistematicamente feito por “indígenas” – africanos excluídos da cidadania portuguesa – que estavam entre os trabalhadores mais mal pagos. Por outro lado, era visto como uma forma de “civilização” e integração das populações colonizadas na sociedade colonial. No entanto, os baixíssimos níveis de aquisição da cidadania revelam como a retórica “civilizadora” não tinha uma tradução prática, mantendo as populações africanas arredadas de uma real integração legal. - * A investigação que esteve na origem deste texto foi financiada pelo Fundo Nacional Suíço para a Ciência através do projeto “Living with authoritarian repression: everyday life history under the Estado Novo in Portugal and its African colonies, 1926-74” (n.º 214985). Uma primeira versão foi apresentada no colóquio “Imperial Domesticities, 18th-20th centuries”, organizado por Stéphanie Soubrier et Loraine Chapuis na Universidade de Genebra entre 17 e 19 de Junho de 2025.
- Artigo do site Memória de Servidão.
- 1. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), Ministério do Ultramar, Inspeção Superior da Administração Ultramarina (doravante AHU, MU, ISAU), A2.01.001/01.00001, Inspecção Administrativa Ordinária na Colónia da Guiné em 1950-1951. Relatório do Inspector, p. 38.
- 2. Por exemplo, AHU, MU, ISAU, A2.050.05/031.00187, Informação sobre a inspecção realizada na Circunscrição de Fulacunda, 1960, p. 30.
- 3. Estatuto dos Indígenas Portugueses, 1954, artigo 56.º.
- 4. Anuário Estatístico do Ultramar 1958, 1958, p. 32.
- 5. Instituto Nacional de Estudos e Pequisas – Arquivos Históricos Nacionais (Bissau) (doravante INEP-AHN), C1.4/A.77.1515, Agência da Curadoria dos Indígenas de Bolama. Mapa discriminativo, por profissões, dos indígenas contratados durante o ano de 1955, com intervenção da autoridade (07/02/1956).
- 6. INEP-AHN, C1.4/A.77.1515, Agência da Curadoria dos Indígenas de Bolama. Mapa comparativo de movimentos de contratos nos últimos três anos (07/02/1956).
- 7. AHU, MU, SAU, A2.01.001/01.00001, A2.01.001/01.00001, Inspecção Administrativa Ordinária na Colónia da Guiné em 1950-1951. Relatório do Inspector, pp. 38-39.
- 8. INEP-AHN, C1.4/A.77.1515, Agência da Curadoria dos Indígenas de Bolama. Mapa comparativo dos salários máximos e mínimos nos anos de 1950 e 1955 (07/02/1956).
- 9. AHU, MU, ISAU, A2.050.05/032.00194, Informação sobre a inspecção realizada no Concelho de Bolama, 1959, p. 7.
- 10. António Carreira, “População autóctone segundo os recenseamentos para fins fiscais”, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), n.º 58, 1960, p. 284; António Carreira, “«Região dos Manjacos e dos Brâmes» (Alguns aspectos da sua economia)”, BCGP, n.º 60, 1960, p. 781.
- 11. António Carreira, “«Região dos Manjacos e dos Brâmes» (Alguns aspectos da sua economia)”, BCGP, n.º 60, 1960, p. 766.
- 12. AHU, MU, ISAU, A2.01.001/01.00003, Inspecção Administrativa Ordinária. Circunscrição de Fulacunda. Relatório do Inspector, 1950, p. 240.
- 13. idem.