Que futuro nas relações entre a sociedade civil e os partidos na oposição?
A reflexão que aqui me arrisco a apresentar é uma continuidade de outra feita após as eleições gerais em Angola realizadas em Agosto de 20221 2 3. Tendo como objectivo analisar o resultado da aliança eleitoral forjada entre membros da sociedade civil com imenso destaque e a plataforma informal designada Frente Patriótica Unida, aquelas eleições serviririam de elemento de aferição da capacidade de resiliência da sociedade civil, a integridade da agenda e capacidade negocial.
Na altura concluí que a agenda da sociedade civil ficou corrompida, não teve força e voz suficientes na plataforma e viu-se, então, absorvida pela plataforma FPU, de tal modo que a sua maioria, então independentes, são hoje membros dos partidos que a compõem, ponto que desenvolveremos mais adiante.
Tento agora cingir-me à reflexão que parte da seguinte pergunta: que futuro possível para as relações entre a sociedade civil e os partidos políticos na oposição?
Nota-se claramente uma exclusão do partido da situação, que desconstrói Angola desde 1975, e não é uma exclusão por acaso. O meu posicionamento sobre tal partido é conhecido, mas é também por uma razão simples e óbvia: aquela organização tem a sua própria sociedade civil, arregimentada e catalogada como “sociedade civil organizada” ou “sociedade civil do bem”.
Então, que futuro possível? Apresento três possíveis cenários, nomeadamente a (1) continuidade, (2) ruptura ou não alinhamento e (3) cooperação.
Continuidade
A continuidade na plataforma informal FPU, por si já muito descredibilizada pelos partidos que a suportam, tem sido um caminho que se vislumbra como futuro para a relação da sociedade civil com os partidos na oposição, nas eleições de 2027. Este sinal de continuidade tem sido dado de três formas:
1. os seus actuais integrantes, destacados activistas, reafirmam, por intermédio dos seus artigos, entrevistas e lives, o seu apoio incondicional à FPU.
2. pelos seus principais promotores que, apesar de todas as confusões que subsistem, muito pelo conflito de protagonismo, volta e meia declaram a vontade de a manter na sua informalidade4 – a única forma viável para manter os reais interesses dos protagonistas, mormente o do maior partido do grupo.
3. outros membros da sociedade civil, ávidos por engrossarem as fileiras da FPU, porque se constitui como plataforma tipo elevador social, alcançando estabilidade financeira, o fim último da esmagadora maioria dos que almejam chegar ao Parlamento e outras instituições de nomeação político-partidária, como a CNE, Conselho Superior da Magistratura Judicial ou a Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (ERCA), só para citar algumas. foto do autor
Ruptura ou não alinhamento
O não alinhamento da sociedade civil na plataforma FPU ou a ruptura da aliança estabelecida aparentava ser o futuro da relação com os partidos na oposição quando, dada a inércia da direcção da plataforma perante os resultados divulgados pela CNE em 2022, a contestação mudou de alvo, passando a ser a própria FPU o alvo pela sua incapacidade de capitalizar o voto de confiança que lhe tinha sido depositada.
A declaração proferida pelo chefe do maior partido na FPU onde apelava à serenidade foi o balde de água fria que fazia prognosticar a ruptura total. Contactados por mim, membros da sociedade civil alistados para serem deputados declararam que não iriam apoiar a decisão de tomada de posse dos mandatos atribuídos pelo partido da situação. Rapidamente mudaram de ideia e nunca ouvi explicação para tal mudança. Mas “todo o mundo é composto de mudança”, como escreveu Luís Vaz de Camões em Sonetos e cantado por José Mário Branco.
Não tendo se verificada a ruptura, talvez o futuro devesse passar pelo não alinhamento de outros agentes da sociedade civil. Pelo contrário, também aqui os indicadores apontam para um crescente alinhamento. Como referido no terceiro sinal de continuidade, há membros da sociedade civil interessados em fazer parte.
Cooperação
Neste terceiro ponto da análise apresento a cooperação como o futuro ideal da relação entre a sociedade civil e os partidos na oposição. Em 2017, membros da sociedade civil apresentaram aos partidos na oposição uma proposta de coligação formal para irem às eleições daquele ano. O actual chefe do maior partido na oposição justificou que a existência da FPU é, em parte, uma resposta àquela proposta. Como verifica-se, a alegada resposta passou pela criação de uma coligação informal que, na prática, engrossou o número de deputados atribuídos ao maior partido na oposição, o que tem gerado muito conflito entre as forças políticas da plataforma.
Nas últimas eleições, como em todas as outras, a administração eleitoral tem sido o principal ponto de discórdia. A CNE tem sido completamente manietada pelo poder político, tendo uma comissão interministerial responsável pela organização de todo o processo. A CNE é apenas o rosto desta comissão, onde até faz parte o ministério da Defesa, e é liderada pelo ministério da Administração do Território e Reforma do Estado.
Como forma de confrontar os resultados que esta comissão, por intermédio da CNE, apresenta, a sociedade civil tem estado a criar o seu centro de escrutínio que contabiliza os votos e os apresenta publicamente com toda a lisura, como ocorreu em 2022.
A FPU, por seu turno, tem realizado também uma contagem paralela, mas nunca as apresentou numa plataforma de acesso público.
A capacidade técnica e humana para monitoramento da FPU tem sido reduzida, e talvez também por isso não tenha capacidade para confrontar os dados divulgados pela CNE.
É aqui onde uma cooperação com base num equilíbrio da correlação de força pode ser explorada como o futuro duma relação entre a sociedade civil e os partidos na oposição. Para tal, é preciso que aqueles partidos abandonem a sua pretensão de incorporação de tudo o que não controlam.
E aqui me encaminho para o fim desta análise com uma nota sobre o jogo de soma zero. Os partidos na oposição têm o mesmo gene e objectivo que o partido da situação: cooptar todos quantos sejam possíveis5. Daí a guerra dos números de militantes. Não há um entendimento genuíno de que seja conciliável a intervenção política independente, fora dos grupos partidários. Por isso têm a necessidade permanente de tornar militante o cidadão, deixando de poder ser cidadão quando ingressa nas fileiras partidárias porque tem de obedecer primeiramente aos estatutos, à hierarquia e as ordens superiores antes de exercer a sua cidadania.
Um exercício simples que recomendo que façamos é o da observação sobre o discurso e a acção daqueles membros outrora independentes que engrossaram as fileiras da FPU, esta aliança de cavaleiro com o cavalo, para citar Luiz Araújo.
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Intervenção no contexto do Seminário “Como se Constrói um País: Diálogos Interdisciplinares”, 22 a 25 maio, organização BUALA.
- 1. A incoerência discursiva reiterada, disponível em https://www.otelegrama.ao/opiniao/a-incoerencia-discursiva-reiterada/.
- 2. A corrupção da sociedade civil, disponível em https://www.otelegrama.ao/opiniao/a-corrupcao-da-opiniao-publica/.
- 3. A corrupção da sociedade civil, disponível em https://www.otelegrama.ao/opiniao/a-corrupcao-da-sociedade-civil/.
- 4. Notar que o Bloco Democrático, partido que faz parte da FPU, está obrigado legalmente a concorrer formalmente enquanto partido ou coligação de facto, pelo que a informalidade não corresponde ao objectivo político para o simulacro eleitoral de 2027.
- 5. Excepção seja feita ao Bloco Democrático, partido que respeita a autonomia da sociedade civil, com a qual colabora activamente.