POSFÁCIO: O Eco das Vozes: entre a memória e o porvir

o nosso antepassado

era um grande rio.

Fez nascer os nossos rios pequenos

Paula Tavares (2003)

Linhas de continuidade, linhas de fuga

Há cinquenta anos nasciam para o Mundo e para a História os países que esta antologia celebra. Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola –  territórios antes dominados por Portugal, ricos de história e de cultura, que encontraram nas lutas de libertação um novo começo. Não foi apenas a proclamação de Independência que mudou o curso da História – foi o gesto colectivo de imaginar outra realidade, de escrever um futuro possível com o corpo, com a voz, com a palavra. E com o fogo das armas. Até porque a palavra era arma, abrigo, mapa, pois a literatura esteve sempre presente nos processos da luta e libertação: nos anos da clandestinidade e da guerra, os escritores foram também guerrilheiros do verbo… 

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura


Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

(Agostinho Neto, “Adeus à hora da largada”, Sagrada Esperança, 1974)

Esta antologia nasce, pode deduzir-se das palavras dos organizadores, o angolano Israel Campos e o moçambicano Eduardo Quive, do desejo de imaginar esse futuro possível, mas também de lançar um olhar inquieto e jovem – enfim, “meio urgente, meio rebelde” – sobre o que foi feito da Independência tão arduamente conquistada. Cinquenta anos depois, o que resta da utopia? O que ressoa da poesia feita nas cidades, no exílio, nos cárceres, nas matas? Como os jovens de hoje –nascidos em liberdade, no país e na diáspora – recolhem os fragmentos da memória e os transformam em criação? Esta é, afinal, “uma profunda reflexão sobre os anseios, esperanças, sonhos e expectativas em torno daquilo que seriam as realidades ideais após a conquista das independências” (p. 12).

Porém, diferentemente das comemorações retóricas que procuram reificar o passado em monumentos, slogans e discursos celebrativos, as narrativas aqui reunidas operam no sentido oposto: desestabilizam, desvelam, desconstroem, reimaginam. A memória que neles se insinua é fragmentária, fracturada, distópica, outras vezes brutal – porém, subjectiva (íntima até), por vezes suave, afectiva. Nela, as figuras da história, frequentemente da autoridade, são reencenadas de forma crítica, com ironia ou desencanto; os heróis nacionais surgem desfigurados ou ausentes – como no conto “O palestrante”, de Eduardo Quive,  cuja personagem principal é “um antigo combatente cujo nome define o seu estado físico e de espírito: Aleijado Diferente” (p. 47), ou apresentados na crueza das malhas da corrupção e do nepotismo, como quando, em “O dia da Independência”, o pai do narrador (representação da desilusão com a política e a memória histórica) vai-se referindo à ascensão político-sócio-económica de seus antigos companheiros de luta; e o povo –  esse termo tantas vezes instrumentalizado, por isso adequadamente substituído por “cidadão comum” –  ganha rosto, voz e matéria sensível, como Enolah, a menina que escuta a terra e suspeita de sabotagens (“A menina da ilha”, de Alice Pessoa) ou Amorim, homem frustrado com a troca de expectativas (“O livro”, de Pedro Sequeira de Carvalho).

Desde o primeiro conto da antologia, “Radiobiogeografia do chefe único”, do guineense Amadu Dafé, a questão do poder surge como leitmotiv desta antologia, de forma larvar, subtil ou ostensiva. Este conto, que dá à antologia a figuração do gesto de escuta e de resposta, é uma poderosa alegoria político-literária – estratégia de que os escritores guineenses são constantes cultores, uma forma mais defensiva de referirem a dura realidade política do seu país – sobre os mecanismos da tirania e da banalização moral nas repúblicas pós-coloniais africanas. E nestas particularmente, cujas Independências constituem, como dizem os organizadores, “pretexto mais do que ideal para o livro (…) para contar mais uma história, criar mais um mundo, começar um novo projecto” (p. 11). O que faz com que estes dezanove jovens nascidos depois das Independências de seus países dêem, através da palavra,  corpo ao indizível, fazendo da juventude lugar de enunciação.  Porém, dizer juventude não significa referir-se apenas a uma fase da vida, mas a um modo de estar no mundo – inquieto, insurgente, inventivo. Um grupo disposto a interrogar os legados e sem medo de enfrentar os mitos da pátria, os pactos da família ou os discursos da autoridade. É por isso que a primeira percepção deste livro, quando o manuscrito me chegou às mãos, foi que se trata de um arquivo vivo da imaginação, pois cada texto aqui incluído é uma proposta de leitura e de escrita da Independência – não como evento fechado, mas como processo aberto, em disputa. É por isso que considero a escrita destes jovens como uma cartografia afectiva.

A escrita como espaço de reinvenção 

Mais do que um livro, esta antologia, construída à sombra de cinco décadas das Independências, é mais do que uma comemoração: é um gesto de escuta e de reinscrição. Entre as narrativas aqui reunidas, ecoa não apenas a memória das lutas e dos processos de libertação dos Cinco países africanos em pauta, mas sobretudo a densidade humana das suas heranças, contradições e promessas por cumprir: estas narrativas não narram apenas o que aconteceu, mas o que restou, o que persiste e o que se deseja. Assim, a literatura funciona, aqui pelo menos, como escuta do que falta. Porque estas são vozes que cancelam o silêncio histórico, que revisitam o trauma colonial e a utopia da libertação com a linguagem sensível da poiesis – trazendo algo do não-ser ao ser, dando origem a algo que antes não existia, presentificando ausências e desvelando invisibilidades.

As narrativas aqui coligidas desenham um mapa de afectos, desafectos, partilhas, deslocamentos e perguntas. Nelas se revelam os interiores das casas e dos corpos, as ruínas emocionais da guerra e da paz, o exílio dentro da própria pátria. A figura do pai combatente e desiludido, como no conto “O Dia da Independência”, de Sérgio Fernandes – significativamente o último da antologia –, atravessa muitas destas histórias, fazendo eco da pátria que ordena, mas também fere, abandona ou cala. A casa, tantas vezes metáfora da Nação, aparece com paredes rachadas, cheias de fotografias desbotadas e slogans gastos. E lembranças da luta e da despedida, memórias dolorosas, com “cicatrizes na alma e as cicatrizes no corpo” (p. 165). Porém, ainda assim, aquela casa é o lugar da memória dos afectos. Porque a esperança é uma disponibilidade mental que está sempre presente. E o título da antologia – Construir Amanhã com Barro de Dentro: Vozes do Pós-Independência – tirado da pauta poética de Paula Tavares, do poema “Constrói-me a casa”, que transcreverei na íntegra, remete para um acto (poético, mas também político) de re-existência:

Constrói-me a casa
Com o barro de dentro
Entrelaça o colmo

Guarda dos caminhos
Guardião do fogo

Fixa um tronco aqui
E outro ali
Prepara a preciosa mistura de lamas
E procura a fibra vegetal exacta
Constrói-me a casa com o barro de dentro

Guarda dos caminhos
Guardião do fogo.

Porque a força simbólica desse poema convoca uma imagem central: a construção da casa com o barro de dentro – densa metáfora da memória ancestral, dos saberes tradicionais e das raízes identitárias que sustentam um futuro possível. Ao optar por este título, é minha convicção de que os autores terão procurado sugerir que o futuro só pode ser habitado com dignidade se for construído com os materiais herdados da memória colectiva. Porque a casa não é apenas abrigo: é projecto de um mundo melhor, fundado naquilo que sobreviveu – mesmo com feridas e cicatrizes – à guerra, às injustiças, à precariedade, ao desencanto, à despossessão…

Esta antologia não fala da Independência como evento concluso, mas como experiência inacabada. As personagens atravessam o tempo com feridas abertas, como o sangue que escorre pelo rosto de quem ousa dizer que a promessa da luta foi traída. Há nas entrelinhas uma crítica incisiva à forma como os Estados independentes reproduziram estruturas coloniais de desigualdade, exclusão, ganância, opressão (repressão também) e autoritarismo. A figura do “chefe único”, a sátira política e o ressentimento popular apontam para uma democracia capturada, onde o sonho da libertação cede espaço à mágoa e à resistência surda.

Mas também há doçura: nos gestos simples das avós que teimam em carregar consigo a memória colonial como um idioma do qual não se desaprende; nas crianças que brincam entre os escombros; nas mulheres que embalam filhos e segredos. Há uma dimensão do feminino que emerge como força ancestral de cura, como se vê na personagem Yejide, de “O luando da cura”, de Rosa Soares, que, entre rios e canções, carrega quatro gerações de dor e de redenção.

A intencionalidade textual das narrativas aqui reunidas não apontam para a ilustração da história. O que fazem, antes, é escutar os seus vazios. Um velho combatente mutilado, um menino com fome de futuro, uma jovem que percebe que o seu país não é tão novo quanto o diz o hino, uma figura mítica do Mindelo que oscila entre marginal e lenda, um crítico de arte que vê além da aparência – são figuras que constroem uma ética da escuta. Escutar o que não foi dito, o que foi distorcido, o que continua por dizer. A literatura emerge, então, como forma de resistência ao esquecimento, mas também à imposição de uma única narrativa.

A FECHAR: Palavras finais para um livro sem fim

Neste tempo em que se celebram os cinquenta anos de Independência, não se trata apenas de lembrar o passado, mas de escutar os seus espectros e os seus fantasmas. Como diz a avó da narradora do conto “Um latir bem do antigamente”, de Israel Campos, foram “cinquenta anos sem acordar” (p. 84). Talvez esta antologia seja um suave despertar. Não um sobressalto, mas um abrir de olhos lento e partilhado. Um chamado à escuta, à reparação, à imaginação política e poética de outros futuros possíveis. Porque, afinal, há histórias que ficaram por contar. E aqui estão elas: narradas, sussurradas, propondo a construção colectiva  do amanhã com barro de dentro.

Os textos reunidos nesta antologia não se propõem a contar uma história linear dos cinquenta anos das Independências. São antes rastos, desvios, interrogações. Alguns voltam ao passado com ternura ou revolta; outros interrogam o presente; outros ainda imaginam mundos por vir. 

Esta antologia convida o leitor a ler devagar, a cruzar vozes, a ouvir os silêncios. A cada página, uma pergunta se insinua: que Independência ainda falta conquistar? Ao longo destas páginas, encontraremos palavras que doem e inquietam, mas também que motivam, que dão esperança. Palavras que querem reinventar a gramática de uma história que se sonhou diferentes. Estes autores jovens escrevem a partir da experiência concreta, mas não deixam de encarar os precipícios do seu tempo.  E a escolha do título di-lo:  firmes na terra que pisam, esses jovens autores estão atentos às fracturas e silêncios que se abrem diante deles, narrando o presente com amarga lucidez. Não celebram, denunciam. Não proclamam verdades, sussurram dúvidas, expõem inquietações, revelam frustrações. E ainda assim, ou por isso mesmo, renovam o gesto inaugural dos poetas da Independência, os demiurgos do sistemas literários, os “pais fundadores” (deveria referir também as “mães fundadores”, porém não cabe no âmbito deste breve texto esta questão). Parece ser a este legado – “esse grande rio”, que deu origem a “nossos rios pequenos” – que remete ao poema de Paula Tavares, que resgato da epígrafe e com o qual termino esta travessia posfacial (cumprindo, aliás, os ditames de um posfácio: balanço e provocação):

o nosso antepassado

era um grande rio.

Fez nascer os nossos rios pequenos

 

Posfácio do livro Construir Amanhã Com Barro de Dentro - Vozes do Pós-Independência, Organização Israel Campos e Eduardo Quive, Catalogus. 

por Inocência Mata
A ler | 19 Agosto 2025 | antologia, Construir Amanhã Com Barro de Dentro - Vozes do Pós-Independência, Independência, palop