Ou corremos com os golpistas na Guiné-Bissau ou perdemos para sempre o que (ainda?) resta da nossa dignidade enquanto povo/nação

O dilema que hoje atravessa a Guiné-Bissau já não é uma questão de escolher entre duas propostas políticas; há muito que se trata de uma questão de posicionamento entre dois caminhos claros para o país: o da verdadeira transformação política, que exige esforço, lucidez e solidariedade; e o da encenação política, que conduz à servidão, à decomposição moral e à barbárie banalizada.

Hoje, dia 05.12.2025, à hora de almoço, fiz uma pausa no trabalho para ir ao Novo Banco pedir informações banais acerca do meu cartão sistematicamente bloqueado e saber se era possível transferir um crédito de um outro banco para o meu. Coisas simples, rotinas de cidadão….

A funcionária perguntou-me:

«Natural da Guiné-Bissau?»

Disse-lhe que sim, obviamente… nasci, cresci e para sempre serei guineense… naturalidade e nacionalidade estas que só não coloco acima da minha origem “ingoreense”, respondi a rir.

«Lamento, mas não podemos transferir o seu crédito. Temos ordens internas para não aceitar operações financeiras de clientes com nacionalidade ou naturalidade da Guiné-Bissau, por causa da situação política atual naquele país…». Disse-me a senhora, do seu nome Marta Fernandes. É este o nome real dela e é a prova em como esta situação ocorreu mesmo hoje não se tratando de nenhuma ficção da minha parte. 

A afirmação de que os clientes com nacionalidade ou naturalidade da Guiné-Bissau irão sofrer as consequências do encenado Golpe de Estado sissoquista, só por si, expõe, qual espeto de uma faca no estômago, a fragilidade extrema da cidadania guineense enquanto categoria reconhecida pelo mundo. E eu podia terminar o texto por aqui… que mais se pode dizer depois disto?

«Qual é a fonte dessa medida? Veio do Governo, da União Europeia, da CPLP, da OCDE…?» Perguntei, ainda com serenidade, embora sorridente.

Por momentos a senhora Marta Fernandes pensou que eu fosse contestar a medida… Depressa lhe fiz saber que eu próprio integro movimentos civis que têm confrontado a deriva autoritária instaurada na Guiné-Bissau desde há 6 anos, e que é precisamente por essa razão que aplaudo, com esperança paradoxal, quaisquer medidas que possam vir tomadas por instâncias internacionais ou do próprio governo português, desde que proporcionalmente não se revelem em demasia penosas e constrangedoras para muitos compatriotas e trabalhadores guineense residentes em Portugal, como é o meu caso.

É óbvio, pois, que não deseje a penalização cega dos meus concidadãos, em nome do combate à ditadura, mas, convenhamos, tenho consciência de que certas estruturas de poder (sobretudo os hipócritas democratas deste mundo fora) só se expõem à transformação quando enfrentam constrangimentos externos e insatisfação popular que desestabilizam a sua capacidade de reputação. 

Daí o meu desejo em que tal orientação do Novo Banco não fosse episódica nem localizada, mas sistemática, generalizável a todas as instituições financeiras, e dotada de coerência política capaz de interpelar a totalidade do sistema, com o objetivo claro de parar as atrocidades que têm tido imenso palco na Guiné-Bissau.

foto do autor foto do autor

«Pois, entendo…» Comentou a senhora Marta Fernandes num tom monocórdico e entristecido. «Mas são os cidadãos que sofrem mais… são sempre os cidadãos…» concluiu, reconhecendo uma evidência demasiado velha para ainda espantar!

E o comentário dela, aparentemente banal, deu-me que pensar…. Produziu em mim uma revolta renovada, mas também uma tristeza mais profunda do que o fundo do poço onde nos têm lançado reiteradamente ao longo destes anos (seis, dez, ou cinquenta, conforme a forma como cada um lê o tempo político). A frase dela ecoou com uma lucidez desconcertante…. 

«Sim, são sempre os cidadãos… Nós…»

Ainda há dias, conversava com a minha amiga e camarada Rita Ié sobre a forma como nos expomos, ou recusamos a expor, os nossos sentimentos nas redes sociais…. Lembro-me de lhe ter dito que não me sinto minimamente compelido a deixar qualquer opinião minha nas redes sociais sobre a situação política do meu país. Para já, porque além de saber que (porque não acompanho assim tanto) a minha intervenção não acrescentaria muito, ao que já é dito com vigor e inteligência, por tantos outros camaradas tão mais dotados do que eu, me sinto representado por aqueles cujas palavras e práticas traduzem, com amplitude e consequência, o que penso…. Colegas como @Tcherno Amadú Baldé, @Sumaila, @Edson, @Mwalimo, entre outros, são a prova disso mesmo. Melhor do que eu, desempenham bem esse papel, mas sabem que eu também estou na luta e que sou uma peça em quem se pode esperar lealdade, determinação e, sobretudo, abnegação. Digo isto apenas para sublinhar que não me coloco em nenhuma “neutralidade” confortável; pelo contrário, estou disposto a perder o que é meu para que o país possa, um dia, ganhar aquilo que ainda lhe falta: a paz e a dignidade do seu povo… 

«O nosso povo sofre…»

É precisamente sob esta consciência de resistência abnegada e exigência ética a favor do nosso povo que ecoou em mim o comentário da senhora Marta Fernandes, nas instalações do Novo Banco, ao ponto de me mobilizar para deixar este testemunho, que assumi desde princípio que seja longo, porque a complexidade da realidade raramente cabe na brevidade dos tempos de hoje. 

«E porquê que o nosso povo tem de sofrer sempre?» 

A resposta pode não ser óbvia, mas é clara na sua crueldade. Os cidadãos sofrem porque o poder, para reconhecer os limites da sua própria violência, precisa de ser confrontado com as consequências humanas das suas decisões. Só quando o sofrimento deixa de ser invisível e silencioso é que o poder se vê obrigado a abandonar a lógica da autoperpetuação e a assumir, ainda que parcialmente, a responsabilidade pela transformação da vida coletiva. 

Mas há aqui uma armadilha: o sofrimento não é, por si só, pedagógico. Um povo que não compreende a origem da sua dor não sabe a quem exigir a transformação da sua vida. E, consequentemente, pode tornar-se simultaneamente vítima e cúmplice do sistema que o oprime.

É por isso que a ignorância (que não se deve confundir com as limitações “formativas”, mas entendida como ausência de consciência política), não beneficia ninguém: nem o povo que sofre sem compreender; nem a sociedade que se degrada sem resistência; nem o futuro que se esvazia de projetos. No entanto, essa ignorância não se dissolve sozinha. Não basta esperar que o povo entenda; a espera passiva perpetua a opressão.

Eu não posso aguardar sentado que os meus familiares, a quem envio dinheiro com frequência, e cujas necessidades representam parte significativa do sistema económico da Guiné-Bissau, sustentado pelas remessas dos migrantes, adquiram, por espontânea iluminação, a consciência da necessidade de enfrentar a ditadura e exigir dos golpistas sissoquistas a divulgação dos resultados eleitorais e a investidura de Fernando Dias no poder, poder esse que, em princípio, é e pertence ao povo.

Não posso esperar sentado por esse milagre, porque os milagres, na história política, nunca existiram; o que existe são processos, lutas, rupturas e reinvenções. E, mais uma vez, a espera, quando se prolonga em demasia, converte-se num dispositivo de reprodução do próprio mal que pretendemos superar.

foto do autor foto do autor

Aqui há uns tempos, lembro-me de ter lido em “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, a propósito da relação entre ignorância, responsabilidade e poder, uma passagem em que se discutia se os dez milhões de checos tinham ou não consciência de que, no interior do universo comunista, apesar de existirem indivíduos que não eram totalmente ignorantes e que, de algum modo, tinham ouvido falar dos horrores cometidos, e que continuavam a ser cometidos, na Rússia pós-revolucionária, sabiam ou não que os comunistas eram responsáveis pelo empobrecimento do país, pela perda de independência e pelos assassinatos judiciais.

Kundera sugere que a questão decisiva não era essa. A pergunta fundamental era outra: “É-se inocente porque não se sabe? Um imbecil sentado no trono fica livre de qualquer responsabilidade pelo simples facto de ser imbecil?”

Esta pergunta introduz uma ironia trágica: a ignorância, mesmo quando genuína, não absolve a responsabilidade histórica. A falta de consciência não elimina as consequências da ação, sobretudo quando essa ação é exercida a partir de uma posição de poder. 

E Kundera acrescenta uma afirmação que complexifica ainda mais a nossa compreensão dos regimes totalitários: “os regimes criminosos não foram moldados por criminosos, mas por entusiastas convencidos de terem descoberto a via única para o paraíso. E defendem valentemente essa via, matando para isso muita gente. Mais tarde, torna-se claro como a luz do dia que o paraíso não existe e que, portanto, os entusiastas eram assassinos.”

Esta reflexão desafia a nossa tendência para conceber o mal político apenas como perversidade consciente. O mal pode emergir de convicções sinceras, de certezas ideológicas que se acreditam redentoras, de ignorância voluntária que dispensa a dúvida, e, sobretudo, da incapacidade de reconhecer a complexidade da vida humana para lá das abstrações que prometem salvá-la.

A questão não é apenas moral, é também antropológica: os indivíduos e as famílias podem praticar o mal movidos por boas intenções, e é precisamente essa ambivalência que torna o fenómeno tão resistente e tão difícil de enfrentar.

Por isso, o combate ao mal não se faz apenas com denúncias indignadas… faz-se com consciência abnegada, capaz de assumir riscos e sacrifícios que, não raramente, implicam perdas significativas, talvez até de vidas, e certamente de recursos, de confortos, de estabilidade. O preço da resistência é, frequentemente, suportado por aqueles que já se encontram em situação vulnerável, o que cria uma tensão ética quase insuportável: a luta justa pode, no imediato, agravar o sofrimento de inocentes.

A medida cautelar adotada pelo Novo Banco (e que, até onde pude averiguar, não foi replicada por outras instituições financeiras em Portugal – é preciso incentivar isso) pode ser interpretada como consequência distante do mal que corrói o nosso país. No entanto, eu prefiro extrair dela outra lição: o que fazer diante de uma medida que penaliza o cidadão, mas aponta para a falência estrutural do poder político?

Uma resposta fácil seria rejeitá-la, denunciá-la, classificá-la como injustiça cega. Porém, existe outra via, e é a que prefiro seguir… 

Mostrar aos entusiastas do regime, entre os quais se incluem familiares meus que apoiaram e ainda apoiam a ditadura, que o mal que legitimaram produz consequências concretas e regressivas. Consequências que, a curto prazo, podem impedir os migrantes de enviarem o dinheiro que sustenta famílias inteiras e corrige, como remédio precário, a falência do Estado.

Perante isso, prefiro assumir uma posição que muitos considerariam paradoxal: vir a público incentivar outros bancos portugueses, europeus e, idealmente, os dos países da CEDEAO e da CPLP, a adotarem medidas semelhantes. Se as sanções atingirem também os indivíduos que sempre acharam que o mal do país não lhes dizia respeito, porque estavam protegidos pelo estatuto, pela proximidade ao poder, ou simplesmente pela indiferença, talvez se quebre o circuito de irresponsabilidade que alimenta o regime despótico, clientelista, marginalista e narcotraficante sissoquista.

A esperança é mínima, mas real: que o impacto dessas medidas, ainda que doloroso, produza um abalo na esfera dos que ainda acreditam que o colapso moral e político é um problema que recai apenas sobre os outros. Em suma, trata-se de transformar o sofrimento inevitável em consciência possível.

por Amadú Dafé
A ler | 9 Dezembro 2025 | golpe, Guiné Bissau, política