Ortografia do caboverdiano: ciência, identidade, e respeito pela diversidade
O projeto de investigação ORIZON – Ortografia e Identidade em Caboverdiano, de que sou Investigadora Responsável, foi agora aprovado para financiamento num concurso muito competitivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (no painel de Línguas e Literaturas, apenas três das dezoito candidaturas foram aprovadas). Este reconhecimento enche-me de orgulho, mas também de humildade e de um enorme sentido do dever.
O projeto reúne investigadoras caboverdianas com distintas formações e experiências, e parte de uma convicção clara: compreender como a profunda ligação identitária às variedades do caboverdiano influencia a adoção de um sistema ortográfico comum é essencial para pensar o futuro da língua. Este é assim um tópico da linguística que envolve questões de cultura, de identidade e de coesão social, sendo portanto compreensível que suscite opiniões diversas e debate de ideias. Como linguista e antiga jornalista, acredito que estes devem ser – sempre – guiados por respeito mútuo, diálogo informado e escuta ativa.
O que está em causa
Cabo Verde é um arquipélago de uma só língua materna mas de muitas vozes. As variedades do caboverdiano – tradicionalmente agrupadas em função das ilhas de Sotavento e de Barlavento – contêm memórias, afetos e histórias vivas que se fundem num forte sentimento de pertença. Cada traço fonético, cada palavra ou cada expressão, cada ordem de palavras numa frase, tudo traz consigo traços de marcador identitário. É por isso que qualquer proposta ortográfica que não represente esta diversidade de forma justa e equilibrada é inevitavelmente sentida por muitos como incompleta, ou até como um gesto de exclusão deliberada.
A ciência linguística, em múltiplas vertentes – pela análise exaustiva de dados empíricos quanto às suas propriedades fonológicas e morfossintáticas, em articulação com a sociolinguística e a linguística histórica – conhece numerosos casos bem documentados de outros contextos que sistematicamente demonstram isto: nenhum sistema ortográfico é neutro. A escrita das línguas vem sempre associada a ideologias e disputas, refletindo relações de poder e visões muito distintas sobre o sentido coletivo. Ou seja, esta não é uma realidade exclusiva de Cabo Verde, é algo que acontece em processos semelhantes por todo o mundo.
É precisamente este pano de fundo, abrangente e natural, que torna tão relevante a recente polémica a propósito da publicação de um manual escolar experimental para o ensino secundário, o qual foi elaborado por membros caboverdianos da nossa equipa. O manual propõe uma ortografia que está sem dúvida mais próxima da realidade pluricêntrica da língua caboverdiana. No entanto – e apesar de uma nota pública de esclarecimento sobre a sua elaboração e os critérios científicos nele adotados – assistimos a um exemplo vivo do tipo de tensões desproporcionadas que a ortografia pode provocar: as autoras têm sido alvo de ataques pessoais em diferentes órgãos e redes sociais, por vezes com recurso a uma linguagem abusiva. Pior ainda, estes surgem associados a um pseudo parecer científico que, na realidade, não cumpre os requisitos mínimos de rigor académico. Esse parecer, produzido por um grupo ad hoc no seio da Delegação da ALMA-PT (DALMA-PT) e elaborado à margem do Conselho Científico da ALMA-CV, não tem qualquer referência bibliográfica a ancorar as suas ideias; baseia-se apenas em opiniões privadas e ultrapassadas, expressas por pessoas sem publicações sobre este tópico que tenham sido sujeitas a uma rigorosa e independente revisão por pares. O resultado é um conjunto de observações incorretas, algumas com implicações éticas inadmissíveis.
O que faremos
Curiosamente, este tipo de reação extremada, ainda que lamentável, fará também parte do nosso objeto de estudo – o projeto ORIZON foi concebido para analisar o debate social e cultural no planeamento de uma ortografia, e irá fazê-lo com um forte sentido de compromisso científico, como é reconhecido pelo painel internacional que o avaliou.
Ao longo destes dezoito meses de investigação, vamos examinar a relação estreita entre padronização linguística e identidade, inspirando-nos também em estudos recentes e complexos sobre o que se passa noutros contextos multilingues e pós-coloniais. O financiamento permitirá: (i) realizar trabalho de campo em diferentes ilhas, captando a riqueza fonológica, morfossintática e lexical da língua caboverdiana; (ii) promover ambientes de reflexão com jovens e educadores, incentivando o pensamento crítico sobre a escrita e o seu significado; (iii) analisar discursos públicos, da imprensa às redes sociais, que moldam e refletem a perceção da ortografia; (iv) organizar encontros abertos à sociedade civil e a instituições educativas, para discutir resultados e recolher contributos que possam fundamentar futuras propostas; e (v) divulgar conclusões em conferências internacionais e em revistas científicas, colocando o caso caboverdiano no centro do debate global sobre diversidade linguística e padronização.
Uma nota pessoal
Tenho plena consciência do que a minha nacionalidade portuguesa pode sugerir num contexto de estudos pós-coloniais em Cabo Verde. No entanto, os meus vinte e cinco anos de inteira dedicação à investigação do caboverdiano – com vários projetos financiados e a construção de um vasto corpus de dados orais que documenta e divulga a diversidade tanto das suas propriedades linguísticas como das perceções dos seus falantes quanto a esta variação interna e às potencialidades da sua escrita – permitem-me acreditar que a sua vitalidade é a sua maior força e também a sua maior responsabilidade coletiva. Ou seja, a língua caboverdiana constitui um património humano que exige rigor científico, debate sério, sensibilidade cultural, e profundo respeito por cada voz que a compõe. Em vez de imposições ou dogmas, merece políticas linguísticas que integrem em vez de excluir.
* Linguista | Investigadora Principal
Faculdade de Letras, Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
https://www.clul.ulisboa.pt/pessoa/fernanda-pratas
CIÊNCIA ID: AA1F-CAE4-E104