O pós-colonialismo e as instituições culturais portuguesas: o caso do programa Gulbenkian Próximo Futuro e do projeto Africa.cont

O presente ensaio pretende analisar a forma como o paradigma pós-colonial tem vindo a ser incorporado em algumas instituições culturais (museus e centros de arte) em Portugal. Tratando-se de um paradigma que tem sido amplamente discutido em várias áreas disciplinares, procurar-se-á analisar de que forma algumas instituições portugueses se têm posicionado (deliberadamente ou não) perante as ideias principais que informam o paradigma pós-colonial e de que forma essas ideias se manifestam nas práticas dessas instituições. Serão analisados em detalhe dois projetos: o programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian e o projeto do Centro Cultural Africa.cont. Estes dois projetos foram escolhidos por se considerar que são os projetos que mais diretamente abordaram a temática pós-colonial em Portugal e as suas questões fundamentais. O ensaio inicia-se com uma breve exposição sobre o tema em questão, procurando-se apresentar de que forma o debate sobre o pós-colonialismo é concebido e tem marcado presença na esfera internacional. Paralelamente, procura-se refletir sobre a forma como esse debate tem sido recebido em Portugal, quer na esfera académica quer no que se refere às instituições culturais. De seguida, são apresentados os estudos de caso a analisar: o programa Gulbenkian Próximo Futuro e o projeto do Africa.cont, procurando-se refletir sobre a existência de uma agenda pós-colonial nestes programas.

 

As teorias pós-coloniais

 Os estudos pós-coloniais constituem uma área que marca cada vez uma maior presença nos debates contemporâneos. Se na esfera académica e universitária eles parecem estar definitivamente consolidados (Medeiros 2006: 339), muitas vezes como uma área autónoma, não se pode deixar de notar a sua intervenção no campo mais vasto da história, da literatura, da arte e mesmo nos debates em torno das migrações e do multiculturalismo. É comum apontar a origem dos estudos pós-coloniais aos textos escritos por Frantz Fanon e Albert Memmi, e a sua consolidação aos escritos de Edward Said (no livro seminal Orientalismo), Stuart Hall, Homi Bhabha e Paul Gilroy (Santos 2006: 217; Barreiros 2009: 46), a que se vão juntando outros autores que se têm ocupado em refletir sobre esta temática.

 As teorias pós-coloniais foram primeiramente concebidas como um fenómeno anglo-saxão, surgidas no seio dos estudos literários e dos estudos culturais (Barreiros 2009: 46). De facto, todos os autores acima mencionados possuem em comum o facto de serem “intelectuais na diáspora” (idem, 46), já que possuem raízes em territórios que constituíam antigas colónias inglesas mas vivem e trabalham em países ocidentais. Apesar das suas diferenças e especificidades próprias, estes autores procuravam realizar uma crítica à forma como as potências coloniais (ou mais propriamente a potência colonial britânica) concebiam a colonização e os colonizados, as suas histórias e as suas identidades, acusando a presença de uma atitude eurocêntrica e hegemónica que não deixava espaço para a auto-representação dos colonizados. Tal significava que o conhecimento era construído exclusivamente a partir do ocidente, sendo o colonizador o sujeito do conhecimento e o colonizado o seu objeto. Edward Said demonstrou como a ideia do oriental constitui, mais que uma realidade, uma construção ideológica do ocidente, repleta de estereótipos que circulavam na sociedade ocidental sobre o Oriente, o oriental e o seu modo de vida (Said 2004). Como consequência, não havia espaço para a representação do colonizado a partir do seu ponto de vista e de acordo com as suas conceções, permanecendo este votado ao silêncio sobre a sua própria condição.

 Robert Young apresenta uma visão relativamente diferente das anteriores no que diz respeito à teoria pós-colonial. Para este autor, “o pós-colonialismo envolve antes de mais o argumento de que as nações dos três continentes não ocidentais (África, Ásia, América Latina) estão largamente numa situação de subordinação à Europa e à América do Norte e numa posição de desigualdade económica (Young 2003: 4). Consequentemente, “o pós-colonialismo nomeia uma política e uma filosofia de ativismo que contesta esta disparidade, continuando de uma nova forma as lutas anti-coloniais do passado” (idem, 4). Na sua conceção eminentemente política, Young concebe o pós-colonialismo mais como uma forma de intervenção económica moralmente comprometida e menos como um paradigma científico baseado num conjunto de princípios. Para este autor, a agenda radical do pós-colonialismo é demandar a igualdade e o bem estar para todos os seres humanos na terra (idem, 7).

Independentemente das polémicas e debates que as teorias pós-coloniais têm vindo causar1, o paradigma pós-colonial revela-se especialmente útil para condensar um conjunto de questões prementes nas sociedades contemporâneas. O pós-colonialismo pode assim ser encarado como um conjunto de princípios que ajudam a pensar uma nova ordem política e social e mundial. Esses princípios podem ser condensados nos seguintes pontos:

1. A necessidade de revisão da narrativa histórica colonial. Este ponto consiste essencialmente no questionar de teorias construídas na época colonial pelas potências e agentes coloniais, questionando-se o seu fundamento. No caso português, destaca-se frequentemente a necessidade de se questionar a denominada “excecionalidade do colonialismo português”, que difundiu durante muitos anos a ideia de que a colonização portuguesa foi menos violenta do que as outras, sendo antes baseada na mestiçagem.

2. A crítica ao eurocentrismo. Como refere Manuela Ribeiro Sanches, “a abordagem pós-colonial questiona as certezas epistemológicas e as metodologias disciplinares, a linearidade de um tempo histórico centrado no Ocidente” (Sanches 2006: 8). De facto, uma das reivindicações fundamentais da maioria dos textos pós-coloniais prende-se com a necessidade imperiosa de reverter a hegemonia das visões eurocêntricas na construção do mundo, seja no campo político, histórico, identitário ou artístico. Nas palavras de Vale de Almeida, trata-se da “suspensão do privilégio das formas de pensar europeias sobre as outras” (Vale de Almeida 2000: 236).

 3. A emergência de “outras” narrativas, por vezes denominadas subalternas ou do terceiro mundo. Trata-se, em suma, de dar espaço a que outras vozes possam emergir, seja no campo da história, da arte ou da representação social. São as epistemologias do sul descritas por Sousa Santos (2006), ou seja, o conhecimento produzido não do Norte sobre o Sul do e sobre o próprio Sul.

 Estes três pontos têm marcado presença, de diferentes maneiras, em áreas tão diversas como a história, a história da arte, a antropologia, os estudos culturais, a ciência política, etc. No que diz respeito à história, verifica-se nos últimos anos um crescimento de investigações sobre a época colonial, muitas vezes baseada em arquivos, que contribuem para questionar alguns lugares comuns sobre a época colonial (Canelas 2015). Já no campo da história da arte vão-se multiplicando as críticas a uma história da arte pretensamente universal, mas que de facto constituía a história da arte ocidental (cf. Barreiros 2009: 35). Como refere Inês Barreiros, as outras civilizações eram por vezes mencionadas em nota de rodapé, permanecendo – aqui literalmente – nas margens; a África, por exemplo, “era simplesmente considerada selvagem e por isso não era digna de ser mencionada” (idem, 35). No caso da antropologia, a temática pós-colonial aproxima-se muito das problemáticas presentes nesta disciplina, havendo mesmo “uma sobreposição entre práticas antropológicas e as teorizações pós-coloniais”2 (Almeida 2000: 236). Ainda que com algumas nuances e especificidades próprias a cada disciplina, e quer se trate ou não de uma consequência direta do diálogo com os textos fundadores das teorias pós-coloniais (ainda que se trate certamente de uma consequência da vivência numa época pós-colonial), são várias as disciplinas que vão incorporar formas de pensamento que se podem designar de pós-coloniais.

 

O pós-colonialismo em Portugal             

No contexto português, a temática pós-colonial tem tido uma presença marginal em algumas áreas disciplinares, sendo de notar que “tanto no domínio académico como no de uma esfera mais ampla da designada sociedade civil, tenha sido notória a desatenção aos aspectos mais problemáticos da história do império” (Peralta 2011 s/p). No caso das ciências sociais e humanas, os trabalhos de Sousa Santos (2006), Vale de Almeida (2000) e Ribeiro Sanches (2006) e a reflexão que efetuaram sobre o pós-colonialismo permaneceram relativamente isolados durante algum tempo. Contudo, nos últimos quatro ou cinco anos o crescente interesse pelo estudo da época colonial tem trazido diversas pesquisas que contribuem para reescrever a narrativa colonial oficial. Tal não significará, tout court, que a temática pós-colonial seja diretamente abordada, mas que o corpus de trabalhos que tem vindo a ser produzido contribuirá certamente para a revisão de certas ideias feitas sobre a época colonial3.

 Uma situação semelhante encontra-se no campo das artes, onde esta temática tem vindo a ser crescentemente explorada nos últimos dois ou três anos, o que contrasta grandemente com o panorama apresentado por alguns autores em anos anteriores. De facto, em 2009 Inês Barreiros referia que “o país, de certa forma, se auto-exclui destes debates, talvez porque ainda não tenha feito o processo de anamnese em relação ao seu passado imperial” (Barreiros 2009: 24). Já José Marmeleira, citando Fernandes Dias, refere que “têm surgido coisas interessantes na literatura e no cinema, mas o mundo da arte portuguesa continua a entender o colonialismo e o pós-colonialismo como assuntos difíceis” (Marmeleira 2011 s/p). No mesmo texto de José Marmeleira, significativamente intitulado “a arte portuguesa ainda não descobriu o fim do Império”, aparece ainda citada a artista Ângela Ferreira, precisamente uma das (poucas) artistas que tem abordado a questão colonial/pós-colonial em Portugal, que refere que “não temos um discurso pós-colonial. Temos poucas pessoas a pensar isso e não há grandes diálogos. Mas devíamos ter esse discurso, para não termos necessidade de o importar. Portugal foi um país colonizador” (idem).4

Nos últimos anos, contudo, e no que ao campo das artes diz respeito, esta situação tem vindo a inverter-se, manifestando-se no crescente número de artistas que tem abordado nas suas obras estas temáticas. Para citar apenas alguns exemplos, destacam-se Filipa César, Vasco Araújo, Daniel Barroca, Manuel Santos Maia ou Mónica de Miranda. A artista Ângela Ferreira fala agora inclusivamente em “centenas de jovens artistas a trabalhar (…) o pós-colonialismo” (Ferreira 2015) e que há uma grande “adoção do discurso pós-colonial” (idem). José Marmeleira, por sua vez, refere que “com mais ou menos visibilidade, o debate sobre questões coloniais e pós-coloniais está aí” (Marmeleira 2015). De facto, será talvez na produção artística que este tema tem vindo a ser mais explorado.

Tal não significa, contudo, que as questões pós-coloniais tenham chegado quer às instituições públicas quer à sociedade civil. No que a estas esferas diz respeito, o panorama de exaltação do Império Português parece permanecer inquestionável. Inês Barreiros refere que “continua mesmo a haver uma mistificação desse passado, como inclinação, como interpretação do senso comum e, tantas vezes ainda, como representação oficial” (Barreiros 2009: 24). Neste aspeto, a Expo 98 é apontada como um caso paradigmático, onde foi visível uma exaltação mítica do génio português, através da mobilização da idade de ouro portuguesa: os descobrimentos (Almeida 2004: 18). De facto, sempre que é necessário realizar alguma comemoração oficial, é escolhida a época dos descobrimentos como a época áurea do povo português, e funciona como uma forma do Estado construir uma imagem positiva da nação (cf. idem, 15). Como refere Elsa Peralta, “o império mantém-se indisputável fonte de orgulho colectivo, concebendo a identidade nacional à luz de um quadro idílico de trocas interculturais e de diálogos civilizacionais estabelecidos por via das extensões imperiais da nação” (Peralta 2011 s/p).

Paralelamente, também nos museus portugueses esta temática parece estar ausente, contrastando com o que aconteceu com vários países onde os debates sobre a reformulação da narrativa propagada em certos museus proporcionou grande discussão pública. O caso paradigmático é o do Museu do Quai Branly, que abriu em 2006 para agrupar as coleções etnográficas extra-europeias de Paris, e que esteve deste sempre envolto em polémica (Goldstein 2008). De facto, e apesar dos museus com coleções etnográficas serem lugares especialmente favoráveis para pensar as questões coloniais e pós-coloniais – já que eles constituem a materialização das viagens coloniais – nenhum debate tem surgido nos museus portugueses com coleções etnográficas. Compete mais uma vez às instituições artísticas o papel pioneiro no questionamento do pensamento vigente a a tentativa de criação de novas perspetivas sobre o (pós) colonialismo.

 

 O programa Gulbenkian Próximo Futuro e o projeto Africa.cont

O programa Próximo Futuro constitui um programa da Fundação Calouste Gulbenkian “dedicado em particular, mas não exclusivamente, à investigação e criação na Europa, na América Latina e Caraíbas e em África”5. O programa dedica-se à realização de exposições, conferências, espetáculos de música, cinema e outros projetos diversos. Este programa foi inicialmente pensado para o triénio 2009-2011, tendo agora sido renovado e repensado para abarcar os anos de 2012 a 2014. Antes do programa Próximo Futuro, a Fundação Calouste Gulbenkian tinha contado já com outros dois programas similares: “O Estado do mundo” (2006-2007) e o programa “Distância e Proximidade” (2008), sendo que todos eles tiveram como organizador/programador António Pinto Ribeiro, o mesmo acontecendo com o programa “Próximo Futuro”. Todos estes programas, apesar das suas especificidades, possuem em comum a procura de uma reflexão sobre “temáticas relacionadas com os temas da mobilidade das pessoas e da criação artística internacional” (Lucas 2009). Assim, enquanto o programa “ O estado do mundo” terá abordado alguns dos desafio da globalização, e o “Distância e Proximidade” algumas questões ligadas ao multiculturalismo, o programa “Próximo futuro” concretiza-se na continuidade dessas temáticas, procurando contudo adensar e complexificar o debate, apresentando continuamente novas referências internacionais e novas propostas de reflexão. Destaque-se ainda o facto deste programa ser muito mais prolongado no tempo do que os outros. O programa apresenta os seguintes objetivos principais: refletir sobre o que é hoje a contemporaneidade e como ela se expressa e atua na representação da produção artística e cultural; contribuir para a redefinição das identidades, dos novos fluxos, quer de mercado, quer de pessoas, e das novas centralidades, em particular da importância definitiva que as cidades nesta época de transnacionalidade adquirem” (Ribeiro 2009: 4).

O que este programa possui de específico é precisamente a proposta de “refletir sobre a contemporaneidade por uma atenção demorada em África, América Latina e Caraíbas” (Mota 2009: 3), apresentando um conjunto de propostas culturais e artísticas produzidas quer a partir desses países quer a partir de situações de mobilidade (ou diáspora) onde esses artistas e intelectuais frequentemente se encontram, algo que tem marcado uma parte considerável da produção intelectual e artística dos últimos anos. Este programa surge, portanto, no “desafio de encontrar formulações adequadas aos tempos de hoje” (Lucas 2009: s/n), assentando na convicção de que, nos dias que correm e ainda mais num futuro próximo, é essencial um conhecimento das narrativas que vão surgindo em vários pontos do mundo. Trata-se, também, de não ter dúvidas de que esses países, outrora considerados periféricos ou “terceiro mundo”, possuem uma diversidade cultural e artística que é importante mostrar e divulgar (idem).

É ainda de destacar o facto do Próximo Futuro constituir um programa com uma vocação não exclusivamente artística mas também de pensamento e reflexão (Ribeiro in Canelas 2015). Ao mesmo tempo que constitui uma plataforma para a apresentação de obras em vários campos artísticos (música, dança, artes plásticas, fotografia, cinema), existe uma clara orientação para a investigação e para a produção de conhecimento, manifesta, entre outras coisas, na realização de workshops, encontros e debates e nas parcerias existentes entre o Próximo Futuro e vários centros de investigação ligados essencialmente às ciências sociais. De facto, o programa Próximo Futuro (bem como os seus antecedentes) tem sido responsável pela vinda a Portugal de nomes como Arjun Appadurai, Nestor Garcia Canclini, Spivak, etc, precisamente os nomes que, numa perspetiva internacional, mais têm contribuído para um alargamento do debate das temáticas pós-coloniais. Para além dos debates, foram ainda realizados um conjunto de workshops, em ligação com alguns dos centros de investigação. Os temas dos workshops (a crise, as cidades, gestão das organizações culturais e sociais, a felicidade, o estado das artes em África e na América Latina) são igualmente indicadores do tipo de reflexão que o Próximo Futuro procura dinamizar, que se prende com os problemas que hoje povoam a sociedade contemporânea no seu todo, muito para além da fronteira portuguesa.

            Destaca-se ainda quer o site quer o blog do Próximo Futuro, que constituem não só plataformas de divulgação das atividades mas também lugares onde são apresentados os resumos das comunicações dos participantes envolvidos nos debates (no caso do site) e, no caso do blog, várias referências internacionais (artísticas, intelectuais, exposições várias, etc) que extravasam o domínio do programa Próximo Futuro.

            Por fim, destaca-se ainda o jornal Próximo Futuro, com distribuição gratuita em papel e igualmente disponível on-line, e que constitui, um espelho do programa e seus objetivos. Trata-se de uma pequena edição que junta a divulgação das atividades, a publicação de alguns textos teóricos de temáticas relacionadas com o programa e um conjunto de trabalhos artísticos.

            O projeto Africa.cont surge em 2007 por iniciativa do Dr. Luís Amado, na época Ministro dos Negócios Estrangeiros em Portugal (Jurgens 2008: s/n). O projeto terá surgido por altura da Cimeira União Europeia/África durante a presidência portuguesa na União Europeia, onde Luís Amado se terá apercebido da ausência de um Museu de Arte Africana Contemporânea em Lisboa (idem). Luís Amado terá partilhado as suas convicções com o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa que, por sua vez, terá contactado o antropólogo e professor universitário José António Fernandes Dias para pedir uma opinião sobre o assunto (idem). Após a apresentação da sua opinião sobre o projeto (que resultou na apresentação de uma proposta) e a sua subsequente análise (por parte de António Costa e Luís Amado), ficou estabelecido que o projeto poderia avançar sob a forma de um Centro Cultural dedicado às várias expressões artísticas africanas contemporâneas.

            De facto, e quando confrontado com a proposta de um possível Museu de Arte Africana Contemporânea, José António Fernandes Dias refere que a ideia de um museu não lhe parecia a mais apropriada, uma vez que, em primeiro lugar, não existe em Portugal um acervo de arte africana contemporânea, sendo muito difícil quer projetar um museu sem uma coleção quer constituir um acervo significativo num tempo reduzido. Por outro lado, Fernandes Dias destacou que o museu constitui “uma estrutura muito pesada, muito estática, onerosa, devido à existência de coleções, reservas e funções de conservação”(idem). É então que surge a ideia de produção de um centro cultural, uma instituição mais dinâmica e com maiores possibilidades de programação, e que poderia contemplar a criação de um acervo a longo prazo, sem que isso fosse a sua prioridade. 

            Na conceção de Fernandes Dias, a criação de um centro cultural seria ainda condizente com a ideia de que esta estrutura não deveria dedicar-se exclusivamente às artes visuais mas que a sua programação deveria englobar “a generalidade das expressões culturais da África contemporânea e reunisse as artes visuais mas também o cinema, a fotografia, o vídeo, o teatro, a música, a dança, a literatura, a arquitetura, o urbanismo e ainda as ciências sociais, o design, a moda e a culinária” (sem autor 2008). O Africa.cont consistiria assim numa estrutura multidisciplinar e interdisciplinar para o conhecimento da África e das suas diásporas nos seus desenvolvimentos contemporâneos. O nome Africa.cont fazia referência quer ao termo contemporâneo quer ao continente africano (Jurgens 2008 s/n). A nível institucional, o Africa.cont consolidar-se-ia sob a forma de fundação cultural de direito privado e utilidade pública, contando, num primeiro momento, com o apoio maioritário do Estado e da Câmara municipal de Lisboa, contando-se que posteriormente aumente o investimento privado.

            O Africa.cont teria então como missão e objetivos: “estimular o aprofundamento do conhecimento e a fruição da cultura africana contemporânea; constituir acervos de arte contemporânea africana que passarão a ser património inalienável da Fundação; promover a investigação científica e a produção de conhecimento sobre os diferentes contextos da produção cultural africana contemporânea (artes visuais, cinema e vídeo, fotografia, banda desenhada, arquitetura, urbanismo e paisagem, design, teatro, música, dança, literatura e ciências humanas, moda e culinária) em estreita cooperação com outras instituições de referência, investigadores, curadores e artistas, nacionais e internacionais; desenvolver uma programação temporária qualificada, assente numa rede internacional de investigação e cooperação, que incentive a permanente atualização do conhecimento, que estimule o debate sobre as culturas africanas contemporâneas, em confronto com outras realidades, contextos e produções culturais, que fomente o diálogo entre o reconhecido e o experimental, que impulsione uma imagem construtiva e atual de África, como agente da contemporaneidade cultural global, favorecendo também a integração e o “empowerment” das comunidades africanas em Portugal; promover a afirmação institucional do Africa.cont no tecido cultural nacional a par da sua integração nos circuitos internacionais, projetando a sua dimensão universalmente; desenvolver programas educativos e científicos qualificados que permitam um leque amplo de oferta promovendo a divulgação e o fácil acesso, por diferentes públicos, à informação produzida, diversificando formas e suportes; promover o desenvolvimento de parcerias institucionais, de relações com diversos agentes sociais, de captação de mecenatos e patrocínios junto de diferentes entidades públicas e privadas; organizar, manter em funcionamento e disponibilizar ao público serviços de arquivo, um Centro de Documentação e uma Base de Dados com informação acessível e atualizada; criar um Programa de Residências Artísticas abertas a todas as disciplinas criativas e promover os apoios necessários ao desenvolvimento do trabalho criativo pelos artistas” (sem autor 2008: 7 e 8).

            O centro cultural Africa.cont teria uma sede fixa, a ser implementada na zona de Santos em Lisboa, que partiria da reabilitação do conjunto constituído pelo Palacete Pombal e pelos três edifícios denominados Tercenas de Santos ou Tercenas do Marquês. O projeto de construção do Africa.cont ficaria a cargo do Adjaye Associates do arquiteto David Adjauy, ele próprio uma “personalidade” da diáspora. Tal como acontece com outros museus ou centros de arte contemporânea, a construção do edifício do Africa.cont tinha a pretensão de se constituir como um lugar central da vida cultural da cidade de Lisboa, contribuindo para a reabilitação de uma zona da cidade (que tem estado abandonada) e apostando na criação de uma praça de convívio (idem, 21). Assim, “o África.cont será uma cidade das artes dentro da cidade” e os visitantes poderão não só usufruir da arte mas de “uma experiência que terá também lugar na vida pública facilitada tanto pelas estruturas como pelos espaços informais externos” (idem, 21). 

            Apesar do projeto do edifício do Africa.cont ter sido abandonado, o Africa.cont manteve uma programação em diferentes espaços da cidade de Lisboa. Assim, foram realizadas duas exposições de fotografia (Urban Africa e Africa: see you, see me!), um ciclo de cinema africano no Cinema São Jorge de Lisboa, a apresentação de um livro, espetáculos de música e pelo menos um debate intitulado “A relação para além da tolerância” com a participação de Manthia Diawara, Migue Vale de Almeida, Manuela Ribeiro Sanches e António Fernandes Dias. 

A curadoria pós-colonial

 Os dois projetos analisados – o Programa Gulbenkian Próximo Futuro e o Africa.cont - servem aqui de estudos de caso para uma reflexão sobre a forma como as instituições culturais em Portugal podem explorar a problemática pós-colonial. Esta reflexão baseia-se na convicção de que as instituições culturais (museus, centros culturais, centros de arte) devem ser permeáveis aos debates mais prementes na sociedade contemporânea, recusando a neutralidade política e ideológica atribuída ao museu moderno.

  Após a análise detalhada dos dois projetos, seus autores, programas e atividades, é possível questionar se, de facto, e à luz do que foi avançado anteriormente, estes projetos reentram na temática pós-colonial. O que distingue primeiramente estes projetos são as áreas geográficas de programação: África, no caso do Africa.cont e África, América Latina, Caraíbas e Europa, no caso do Próximo Futuro. A opção por estes territórios permite já a estes programas a aquisição de uma certa singularidade no contexto português, uma vez que permite a difusão de contextos pouco explorados pelas instituições culturais. Contudo, relembrando Fernandes Dias, é possível afirmar que “nem todas as exposições sobre o outro são pós-coloniais” (Dias in Dias 2009: 11). O que aproxima estes projetos da temática pós-colonial é o facto de se centrarem na produção contemporânea destes territórios, recusando as visões mais comuns de que estes estão culturalmente atrasados. Como refere Fernandes Dias, “os portugueses têm muitas ideias feitas sobre África que estão ligadas ao colonialismo e vêm a cultura e arte africana sobretudo no seu aspecto arcaico e rural” (Jurgens 2008 s/n). De facto, com a sua programação centrada na arte e cultura africana contemporânea, o Africa.cont desafia conscientemente alguns dos lugares comuns que povoam o imaginário português sobre o continente africano: entre outras assunções, a de que África é essencialmente um continente tradicional (sem uma modernidade artística e cultural) e a de que a produção artística africana se resume às máscaras e estatuetas de madeira. De facto, neste projeto encontra-se a divulgação de uma visão heterogénea, questionadora e crítica de África, dos africanos e das suas identidades.

 A recusa das visões tradicionais sobre estes territórios e a opção pela contemporaneidade permitem a emergência de novas narrativas sobre as suas populações, produzidas pelos próprios agentes (sejam eles artistas sejam intelectuais destes países ou da diáspora) o que, como se verificou anteriormente, caracteriza a problemática pós-colonial. Contudo, há que referir que as novas narrativas produzidas no espaço das instituições não se pretendem hegemónicas ou finalistas, já que não pretendem consolidar uma visão única ou linear dos territórios; pelo contrário, pretendem anunciar a pluralidade de posicionamentos (teóricos, identitários) dos artistas e intelectuais apresentados. Trata-se da ideia, também ligada às teorias pós-coloniais, de que “as identidades do terceiro mundo são relacionais e não essenciais, desviando a atenção da origem nacional para a posição de sujeito” (Vale de Almeida 2000: 46). Assim, é possível a apresentação das fotografias tiradas por David Adjaye (na exposição Urban Africa), demonstrando-se não como é a urbanidade do continente africano mas como ela é vista por Adjaye. É o sujeito na singularidade das suas experiências de vida e na forma como essa singularidade afeta o seu trabalho artístico que se pretende apresentar.

            Paralelamente, ambos os programas pretendem abordar diretamente um conjunto de temáticas que marcam os debates pós-coloniais: os movimentos populacionais, as migrações, o multiculturalismo e a convicção de que o mundo contemporâneo não pode ignorar as questões ligadas à identidade e à diferença. Esta centralidade dos conceitos de movimento e fronteira relaciona-se com outra característica do pensamento pós-colonial: a constituição mútua do ocidente e do “terceiro mundo”, do nós e do outro, da metrópole e da colónia. Não é por acaso que a palavra Europa surge como área geográfica do programa Próximo Futuro.

            Este último ponto está ainda relacionado com outra característica dos programas: a sua vocação internacional. Ambos apresentam a produção artística contemporânea não na sua ligação a uma nacionalidade específica mas numa perspetiva transnacional, onde não se procuram correspondências entre a produção artística e uma nação particular6. Ainda que esta vocação internacional seja compreensível no âmbito de ambos os projetos, ela não permite um confronto direto com a história e a memória colonial portuguesa. Parece não haver nestas instituições uma tentativa clara de repensamento da questão colonial portuguesa, nem das suas consequências, seja em território português seja em territórios africanos. De facto, uma referência clara ao colonialismo foi apenas encontrada no projeto arquitetónico do Africa.cont, quando é referido o significado simbólico do Palácio Pombal: “desde esta herança colonial até aos nossos dias, podemos agora sugerir uma reversão simbólica ou reinterpretação do seu uso: o que antes foram contentores para comerciantes, armazenamento dos frutos do império, são agora contentores culturais. Esta transformação rumo a uma nova relação entre Portugal com o continente africano irá inspirar a estratégia arquitetónica” (sem autor 2008: 20).

            Em jeito de conclusão, refletindo sobre os dois projetos à luz das problemáticas pós-coloniais, considera-se o seu caracter pioneiro e inovador na introdução desta temática nas instituições culturais. Por um lado, a centralidade em zonas geográficas periféricas aliada à procura de uma visão contemporânea, heterogénea e não hegemónica dessas regiões torna possível a caracterização destes projetos como pós-coloniais. Nestes espaços, procura-se tornar visível a diversidade de narrativas e pontos de vista existentes sobre um conjunto de temáticas, realizada do ponto de vista dos sujeitos que aí expõe as suas obras. 

            Por outro lado, em nenhum dos projetos se encontra uma vontade de reformulação ou de reescrever a história colonial portuguesa, o que para alguns autores é uma característica fundamental das correntes pós-coloniais. De facto, ambos os projetos se esquivam às questões ligadas particularmente ao passado colonial português e mesmo ao tema da “Lusofonia”, um tema recorrente nas ligações Portugal-África. Não há, nestes programas, uma relação privilegiada com os países lusófonos.

            A análise destes dois projetos permitiu ainda perceber duas questões fundamentais: em primeiro lugar, que a tensão entre local e global está sempre presente, tornando-se uma área de debate fundamental. Os movimentos populacionais, a vida na diáspora ou as migrações são temas centrais para as questões pós-coloniais. Em segundo lugar, a temática do pós-colonialismo tornou-se eminentemente transdisciplinar, destacando-se as contaminações entre a história, a antropologia e diversas disciplinas ligadas às artes. Os dois projetos analisados são um espelho desta característica: ambos entendem a necessidade de programar não só exposições mas também palestras, ciclos de cinema, debates, etc, havendo uma clara aposta na reflexão e no pensamento. Seguindo este ponto de vista, há aqui uma visão que vai de encontro à de Young, quando defende que o pós-colonialismo é uma filosofia de “ajuste de contas”, que visa a intervenção social direta. Apesar do trabalho pioneiro na abordagem destes dois projetos às questões pós-coloniais, é necessário esperar outras e mais iniciativas capazes de abordar esta problemática em toda a sua complexidade.

           

Bibliografia

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Páginas consultadas

http://www.africacont.org/

http://www.proximofuturo.gulbenkian.pt/

http://proximofuturo.blogs.sapo.pt/

http://www.buala.org/

 

Artigo publicado originalmente na E-Revista de Estudos Interculturais do CEI_ISCAP em maio de 2016, Nº4.

  • 1. A este respeito ver Vale de Almeida (2000).
  • 2. Na conceção de Vale de Almeida, o que difere as duas é que o pós-colonialismo privilegia a análise dos discursos e representações e a antropologia a análise a partir dos agentes sociais (Vale de Almeida 2000: 236).
  • 3. A este respeito ver o artigo de Canelas (2015).
  • 4. A exceção foi encontrada no projeto Buala, uma plataforma digital criada em 2010 que se dedica à documentação e reflexão sobre culturas africanas contemporâneas, e que parece constituir um primeiro espaço onde estas questões são problematizadas.
  • 5. Citado a partir de http://www.proximofuturo.gulbenkian.pt/.
  • 6. Esta questão é frequentemente abordada quando se fala de “artistas pós-coloniais”: eles devem operar dentro de uma esfera artística internacional sendo simultaneamente levados a manifestar marcas das suas origens geográficas.

por Maria Manuela Restivo
A ler | 17 Junho 2017 | africa.cont, pos-colonialismo, próximo futuro