O mundo é uma tribo - 'Africa Remix' revisitada

 

Atualmente, quando pessoas, idéias, formas, textos e imagens fluem intensamente pelo mundo, parece não haver razão para insistir no vício historiográfico de estruturar identidades artísticas a partir de limites geográficos, especialmente os de grandes regiões continentais. Mas há quem pense o contrário. A julgar pelo título, essa é uma das premissas de “Africa Remix. L’art contemporaine d’un continent”, exposição que começou em Dusseldorf, em 2004, seguiu para Londres e, depois, para Paris, em 2005, e chegará a Tóquio, em 2006, mas, estranhamente (?), não será apresentada no continente africano.

 Georges Adéagbo, Jane Alexander, Frédéric Bruly Bouabré, Allan deSouza, Marlene Dumas, Samuel Fosso, Romuald Hazoumé, William Kentridge, Bodys Isek Kingelez, Goddy Leye, Sabah Naim, Otobong Nkanga, Antonio Ole, Zineb Sedira Georges Adéagbo, Jane Alexander, Frédéric Bruly Bouabré, Allan deSouza, Marlene Dumas, Samuel Fosso, Romuald Hazoumé, William Kentridge, Bodys Isek Kingelez, Goddy Leye, Sabah Naim, Otobong Nkanga, Antonio Ole, Zineb Sedira

Entretanto, Marie-Laure Bernadac, uma das curadoras da mostra1, esclarece de saída: “Mais do que um continente, [África] é uma imagem, um ‘conceito’, uma forma híbrida, inacessível, um espaço de fantasmas e de projeções subjetivas e passionais, oscilando entre atração e repulsa”2. Para o poeta Abdelwahab Meddeb, o termo é mais do que uma designação geográfica: “Ele pode também ter a dignidade de um conceito cujo campo é a questão da relação entre história e antropologia”3 – marcando os pólos entre os quais são produzidos a maioria das obras em exposição e os textos do catálogo.

Abdelwahab Meddeb nasceu Tunis en 1946, é escritor, professor e ensaista.Abdelwahab Meddeb nasceu Tunis en 1946, é escritor, professor e ensaista.

Africa Remix investe em uma geografia ainda mais totalizante da África ao incorporar regiões como o Norte do continente e a África do Sul, usualmente excluídas da caracterização da identidade artística africana, mas o faz, paradoxalmente, para explorar a diversidade das partes que constituem o todo. Assim, parece fazer eco às observações de Olu Oguibe contra a crítica à construção de uma unidade africana, a qual, a seu ver, não seria destituída de pertinência política: “Culturalmente, a questão é não apenas reconhecer a pluralidade de africanidades, mas, também, aspirar à formulação ativa de uma ‘identidade’ singular africana, de algum modo paralela ao pan-europeísmo e à construção do Ocidente”4. E o todo não é homogêneo, já que não há obrigação, nem mesmo possibilidade, de selecionar ao menos um artista de cada um dos 54 países africanos; segundo Jean-Hubert Martin, há “lacunas que os nossos sucessores deverão preencher”5 (o projeto de historiografia totalizante resiste…). Abrandando a premissa geográfica, a exposição e seu catálogo evitam as subdivisões regionais na apresentação das obras, estruturando-as em quatro seções que atravessam o continente e além: identidade e história; corpo e espírito; cidade e terra; moda, design e música.

Olu Oguibe, Bridge, 2002.Olu Oguibe, Bridge, 2002.

Se logo fica evidente que a África ultrapassa limitações físicas, é múltipla, porosa, esgarçada, inter e extraconectada, o termo remix remete imediatamente à heterogeneidade, às reincidências e misturas da cultura de massas. Mas o universo pop não é, aqui, muito mais do que certos ritmos, expressões e imagens, pois basta olhar um pouco mais atentamente para perceber que a maioria das obras e dos textos deriva das cartilhas do pós-colonialismo. Nada nostálgicos, exposição e catálogo recusam o elogio da pureza mágica anti ou pré-racional que se tornou lugar-comum na abordagem da produção artística do continente, embora não consigam evitar um chavão atual: a mélange de culturas, idéias, práticas – em duas palavras, a “arte híbrida”. Se Magiciens de la Terre6 atualizou a imagem pura e encantadora da arte africana, Africa Remix configura um campo artístico complexo, up-to-date, ao mesmo tempo saturado e potente.

A exposição 'Les Magiciens de la Terre' teve lugar no Centro Georges Pompidou, Paris, França.A exposição 'Les Magiciens de la Terre' teve lugar no Centro Georges Pompidou, Paris, França.

A despeito da embaçada conjuntura pós-colonial, a África continua sendo vista, apesar de todos esforços, como um manancial (não exclusivo) de pujança primitiva. Situada entre a tribo e o mundo, preserva a imagem de lugar exótico e perfeito para a regeneração do cul-de-sac em que se meteu a arte contemporânea7. Suscita, assim, um interesse que não é só artístico. Entre as justificativas da exposição, Bernadac diz ser a África “a peça que faltava do novo mapa mundial da arte” e “que, 15 anos após Magiciens de la Terre, se tornou urgente fazer um balanço da criação africana e dar conta de sua contemporaneidade”, embora também reconheça que “o interesse pela arte e pela cultura africana vai de par com uma verdadeira tomada de consciência política de destruições econômicas e do empobrecimento desastroso causado por numerosos países, do qual o continente é objeto”8. Uma “fascinação repulsiva”, no entender de Jean-Loup Amselle: “Se a África, uma certa África, está em voga no Ocidente, se ela fascina, é ao preço de um desinteresse profundo pelo continente”9.

Africa Remix não tem como objetivo a descoberta de valores puros supostamente perdidos no continente africano, passando ao largo do “gosto pronunciado por uma forma de neo-exotismo ou de primitivismo fim-de-século que leva a pensar que o artista africano pós-colonial está sempre em situação de alteridade em relação ao do Ocidente”10. Fora uma única exceção – Wim Botha –, cujo currículo resumido não indica participação em eventos fora da África do Sul, os demais 87 artistas já representaram seus países e/ou o continente nas bienais que proliferam atualmente pelo mundo11 e também apresentaram suas obras em instituições de prestígio no sistema de arte mundial12. Se alguns são autodidatas, e suas produções transitam sem problemas entre os universos da religião e da arte, como tende-se preconceituosamente a esperar de um artista africano, há muitos com formação parcial ou integral em instituições artísticas na Europa e nos EUA. A isso some-se que, sendo apenas 10% dos artistas nascidos na Europa, 53% vivem e trabalham na África, 16% têm residências na África e no exterior (também Europa e EUA), e 31% já estão radicados fora do continente africano (idem).

Não espantam, portanto, a diversidade das obras expostas nem a especial fluência no esperanto da arte atual13, com a predominância da fotografia e do vídeo ou DVD em instalações (as quais não significam propriamente uma novidade, sobretudo no contexto africano, como bem observa John Picton)14. O que leva a pensar na observação de Hans Belting sobre o prestígio das novas tecnologias entre os artistas não ocidentais devido à (suposta) ausência de normas estéticas rígidas nessas mídias15.

Jean-Loup Amselle, formado em antropologia social e etnologia, pesquisou no Mali, na Costa do Marfim e na Guiné.Jean-Loup Amselle, formado em antropologia social e etnologia, pesquisou no Mali, na Costa do Marfim e na Guiné.

Prevalece o enfrentamento de questões locais de alcance global, posto que pensadas na condição pós-colonial, com meios artísticos difundidos internacionalmente, embora não dissociados de práticas tradicionais africanas. Não causa surpresa, contudo, alguns artistas trabalharem com objetos e temas não africanos ou não imediata e exclusivamente africanos, ainda que não distantes de sua problemática, outros, com objetos locais ou não com enfoques universalizantes, ao lado de atualizações das tradições artísticas locais e da presença quase imediata do fotojornalismo. Muitas obras acendem a vontade de conhecer melhor o trabalho de seus autores. Grande parte delas também deixa em dúvida se a arte distingue-se hoje de uma reflexão sobre temas de extensão ilimitada, elaborada com meios técnicos não mais exclusivos nem especificamente artísticos.

Africa Remix reincide na condição complementar entre exposição e catálogo, que se tornou comum no meio de arte atualmente. Com certeza, o volume impresso está aquém da exposição, pois parece ser cada vez mais difícil traduzir em páginas bidimensionais impressas a extensão multissensorial das obras de arte contemporâneas. Contudo, também vai além. Aprofunda reflexões que norteiam a mostra com três apresentações das instituições promotoras e uma da empresa patrocinadora – a petrolífera Total –, dois textos introdutórios da curadoria, oito ensaios analíticos (sobre história cultural, ação curatorial, recepção da arte, cinema, moda, performance e até obras de arte), uma entrevista, uma breve enciclopédia da arte contemporânea africana, textos de apresentação das seções da mostra, reproduções das obras expostas, verbetes biográficos dos artistas, dos curadores e dos autores dos textos, bibliografia de referência e informações técnicas das obras, da exposição e do catálogo.

Nessa profusão de dados e análises, as obras de arte, que ocupam pouco menos da metade do catálogo, correm o risco de se tornar meros pretextos: ou se as evita, ou se as ultrapassa. Apenas algumas delas são analisadas brevemente, com tamanho de letra e espacejamento de parágrafo menores em relação ao restante do catálogo, longe das imagens, junto aos verbetes biográficos, em que se priorizam a trajetória e a produção geral dos artistas. Interpretações que privilegiam a abertura das obras a contextos variados (geopolíticos, históricos, antropológicos, filosóficos) aos modos como complexos problemas plasmam-se nas obras. Visada mais centrífuga do que centrípeta; crítica menos de arte do que cultural.

Olu Oguibe (atrás uma pintura mural de Odili Donald Odita). Foto de Christine Eyene.Olu Oguibe (atrás uma pintura mural de Odili Donald Odita). Foto de Christine Eyene.

É esse também o tom característico dos textos de apresentação das seções da mostra. Os três pares de noções – identidade e história; corpo e espírito; cidade e terra – são genéricos: não foram concebidos a partir da especificidade das obras em questão, mas, sim, da problemática cultural contemporânea; constituem uma “grade de leitura” aplicável a outros conjuntos e contextos artísticos, embora sejam pertinentes em relação à África e iluminem razoavelmente as obras expostas.

A quarta seção abarca duas áreas a princípio inesperadas – moda e design –, que reforçam o sentido de atualização de tradições africanas, e a música, que acompanha a abertura das artes plásticas aos outros sentidos, prestando tributo ao campo artístico africano com maior ressonância mundial; o som é dado por uma juke-box cujo título – “Ah-Freak-Iya” – tenta dar o tom do evento articulando dois termos da música pop norte-americana dos anos 70 com uma expressão iorubá. Também os ensaios discutem mais os contextos de produção e recepção do que propriamente as obras. Mas esse pode ser um erro de visão do resenhista; talvez os textos apenas sigam a maioria das obras, que não se constituem independentemente do cerco da cultura. É obrigatória a rima conjuntura pós-colonial, arte e crítica pós-cultural?

Simon NjamiSimon Njami

O catálogo é desde já uma obra de referência, pois, além de apresentar um panorama da arte atual referida à África, tem um dicionário sucinto e parcialmente ilustrado da história recente dessa produção artística. “A la manière d’um sampler”, são apresentados 130 verbetes relativos a pessoas, idéias, instituições, coleções, eventos, exposições, revistas, grupos e movimentos artísticos e culturais que participaram da construção do campo da arte contemporânea africana, desde o final do século XIX, que se adensa em meados dos século XX e se avoluma nos anos 90. Em sua grande maioria, as entradas referem-se a realizações na África; quase um terço delas, na Europa16; aproximadamente 5%, nos EUA; duas, no Oriente17. O único verbete relativo à América Central – a Conferência de Povos da Ásia, da África e da América Latina, conhecida como Tricontinental – não destaca que o evento aconteceu em Havana, em 1966. Configura-se, portanto, uma geografia que privilegia as conexões da África com a Europa e os EUA, reforçando a centralidade dessas regiões e a dependência africana. Por um lado, parece não ter havido interesse em saber se e como a constituição desse campo contou com esforços na América Latina, na Oceania e no Oriente; uma vez mais, um mapa feito pelo e para o Ocidente, que se dispõe a olhar o outro para nele se ver. Por outro lado, é preciso reconhecer que certas nações européias e os EUA continuam sendo os pólos dinamizadores do sistema de arte internacional, por onde passa e se pensa a produção artística com pretensões mundiais. Pode-se, ainda, a partir da experiência brasileira, perguntar: há algum esforço local para olhar outra produção artística contemporânea que não a referendada e, sobretudo, produzida nos contextos europeu e norte-americano? Alguém quer ver a África aqui?

 

Publicado em Concinnitas - Revista do Instituto de Artes da Uerj, Rio de Janeiro, ano 9, volume 1, número 12, junho 2008.

  • 1. Os curadores da exposição são: Simon Njami, curador-geral, Marie-Laure Bernadac, do Centre Pompidou, David Elliot, do Mori Art Museum, Roger Malbert, da Hayward Gallery, e Jean-Hubert Martin, do Museum Kunst Palast. Njami, Simon et alii (ed.).
  • 2. Bernadac, Marie-Laure. ‘Remarques sur ‘l’aventure ambiguë’ de l’art contemporaine africaine’. In: Njami et alii, op. cit., p. 10.
  • 3. Meddeb, Abdelwahab. L’Afrique commence au Nord…. In: Njami et alii, op. cit., p. 45.
  • 4. Oguibe, Olu. In the ‘Heart of Darkness’’. In: Fernie, Eric (editor). Art history and its methods. London: Phaidon, 1995, p. 320.
  • 5. Martin, Jean-Hubert. La réception de l’art africain contemporain et son évolution. In: Njami et alii, op. cit., p. 27.
  • 6. Mostra também exibida no Centre Pompidou, em 1989, que se tornou um dos marcos da arte contemporânea e, em particular, uma referência especial do campo da arte contemporânea africana.
  • 7. Amselle, Jean-Loup. L’Afriche’. In: Njami et alii, op. cit., p. 68.
  • 8. Bernadac, op. cit., p. 11.
  • 9. Amselle, op. cit., p. 67.
  • 10. Boutoux, Thomas; Vincent, Cédric. ‘Africa Hoy’ ou ‘Africa Now’. In: Njami et alii, op. cit., p. 243.
  • 11. Havana, Kwangju, Liverpool, Lyon, São Paulo, Sarjah, Sidney, Tel-Aviv e Veneza.
  • 12. Centre Pompidou e Fondation Cartier pour l’Art Contemporaine, em Paris, P. S. 1 Contemporary Art Center, em Nova York, Witte de With, Center for Contemporary Art, em Rotterdam, Museum Ludwig, em Colônia, Documenta de Kassel, entre outras. No Brasil, além da presença de Abdoulaye Konaté na Bienal Internacional de São Paulo, em 1998, aparecem no catálogo as participações de Tracey Derrick no 4 Encontro de Fotografia Africana, realizado no Museu de Arte Moderna de Salvador, em 2003, e de Otobong Nkanga na manifestação Internacional de Performance que aconteceu em Belo Horizonte, em 2003.
  • 13. Sobre o esperanto artístico contemporâneo, ver Kudielka, Robert. ‘Arte do mundo – arte de todo o mundo?’. In: Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n 67, nov. 2003, pp. 131-142.
  • 14. Picton, John. ‘Made in Africa’. In: Njami et alii, op. cit., p. 64.
  • 15. Belting, Hans. ‘Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais’. Arte & Ensaios, UFRJ, ano IX, n. 9, 2002, p. 170.
  • 16. Inglaterra, Espanha, Alemanha, França, Bélgica, Holanda e Itália.
  • 17. Indonésia e Japão.

por Roberto Conduru
A ler | 11 Maio 2011 | Abdelwahab Meddeb, Africa Remix, arte africana contemporânea, Jean-Loup Amselle, Les Magiciens de la Terre, Simon Njami