"Terceira Metade": Conjugando (subvertendo?) o 'glocal' a partir do Benim: Hazoumé, Quenum, Zinkpé

A partir da África, mais especificamente do Benim, Dominique Zinkpé1,Gérard Quenum2 e Romuald Hazoumé3 desenvolvem suas poéticas, se inserindo nos sistemas de arte e de cultura mundial, que os absorvem em processos característicos da contemporaneidade4.

Hazoumé, Quenum e Zinkpé conjugam o glocal, pois suas obras transitam entre os contextos locais, a partir de onde atuam, e a cultura mundial, à qual estão atentos e articulados. A um primeiro olhar, em seus trabalhos, os sintagmas (objetos, figuras) e a semântica (temas, conteúdos) são locais, enquanto a sintaxe é característica das práticas artísticas atuais, uma vez que eles adotam os procedimentos plásticos e conceituais hoje dominantes. Com efeito, Hazoumé, Quenum e Zinkpé produzem obras com meios tradicionais e recentes. E falam de tópicos Beninenses, africanos.

Romuald Hazoumé, 'Avion de Terre' 2004, Fotografia em papel ed. 1/6 | 120 x 80 cm, Col: Queensland Art Gallery, créditos Romuald Hazoume 2004 /ADAGP. Licensed by Viscopy, Sydney, 2010 Romuald Hazoumé, 'Avion de Terre' 2004, Fotografia em papel ed. 1/6 | 120 x 80 cm, Col: Queensland Art Gallery, créditos Romuald Hazoume 2004 /ADAGP. Licensed by Viscopy, Sydney, 2010

Entretanto, o fato de lidarem muitas vezes com alguns dos estereótipos entranhados no imaginário Ocidental em relação à África – a máscara, a escultura, o artesanato, a simbologia religiosa, a vitalidade do corpo humano – é um caminho para perceber como eles revertem, cada qual a seu modo, as expectativas do sistema de arte e cultural para que conjuguem com sotaque o esperanto da arte internacional hoje.

Hazoumé atende à persistente demanda por máscaras africanas. Contudo, para fazê-lo, ele se apropria de um elemento a princípio não artístico e mundialmente corriqueiro: galões para transporte de líquidos; em seu caso, os galões são adquiridos junto aos motociclistas que participam do comércio ilegal de combustíveis transitando por todo o Benim. De modo semelhante, em esculturas recentes, Zinkpé lida com a persistente demanda por esculturas africanas de cunho espiritual ao se apropriar e articular estatuetas fabricadas em série e vendidas nos mercados de artesanato para uso no culto religioso aos gêmeos (hoho na língua fon, ibéji em ioruba), os quais foram outrora temidos e depois passaram a ser entendidos como sinais de riqueza e felicidade. Quenum responde ao anseio por fetiches africanos com suas longilíneas montagens compostas por peças de madeira gastas e irregulares, bonecas de plástico produzidas no Ocidente, previamente usadas, doadas a crianças africanas por intermédio de organizações internacionais, novamente desprezadas e escurecidas pelo artista, mais outros refugos, industrializados, artesanais ou orgânicos, que ele encontra aqui e ali.

Romuald Hazoumé, 'Cher Maître', 2001Romuald Hazoumé, 'Cher Maître', 2001Romuald Hazoumé, 'Vidéo', 1999 Romuald Hazoumé, 'Vidéo', 1999

Extrapolando a crítica às demandas do mercado de arte e da indústria cultural com relação à África, esses artistas se mostram irrestritos ao ensimesmamento da arte contemporânea, embora não alheios à sua problemática. Assim, não deixam de questionar os processos nos quais as realizações de artistas da África, em geral, e do Benim, em particular, se inserem e são assimiladas nos sistemas de arte e cultural. Pois aquelas séries de obras não se limitam à crítica, menos ou mais irônica e lírica em cada caso, ao anseio por peças escultóricas imbuídas de simbologia exótica, forma primitiva e vitalidade ancestral, capazes de insuflar vigor à cultura ocidental, que persiste desde as apropriações modernistas. Elas se plasmam com outras questões.

Exemplos de articulação de elementos ocidentais a hábitos sociais do Benim são as instalações “Táxis-Zinkpé”, com veículos e uma vasta tralha, assim como as assemblages e instalações multimídia similares de Hazoumé, também constituídas por automóveis, galões e outros itens, a peça “Táxi-Brousse” (Táxi-Bucha) e a tela, ambas de 2009, nas quais Quenum representa fuscas amarelos entalados ou transbordando de passageiros. Nessas obras, se pode entrever o costume tão africano de adaptar os veículos como meios de transporte coletivo de pessoas e coisas, configurando espaços móveis de intenso intercâmbio social. Não por acaso esses táxis coletivos interessam aos três artistas, pois estão conectados a outros tópicos problemáticos das sociedades africanas.

Dominique Zinkpè, Taxis Zinkpè, Dakar, 2002 Foto. Christian Hanussek 2002Dominique Zinkpè, Taxis Zinkpè, Dakar, 2002 Foto. Christian Hanussek 2002

Com seus veículos e galões usados para transporte ilegal de derivados do petróleo, Hazoumé fala de problemas que afetam a população beninense: o tráfico de combustíveis, que estrutura a economia e dinamiza a vida social no Benim presentemente, o tráfico negreiro, cujas marcas persistem em sociedades dos dois lados do Atlântico, as atuais transações com passes de jogadores de futebol e explorações de músicos, com suas disparidades que aludem às assimetrias de tempos pretéritos. Também é corrosivo o tom de “Magré tout!” (Apesar de tudo!), de Zinkpé, uma instalação com um copro deitado sobre um leito de hospital e alimentado por sondas identificadas com siglas e nomes de diferentes órgãos de cooperação internacional, a qual denuncia como a África sofre também por conta do assistencialismo praticado por essas agências, as quais, em parte, a querem sempre carente, exaurida, contribuindo, assim, para manter a situação de dependência externa do continente, de nações e pessoas na África. Em uma das pinturas recentes de Quenum é também ao peso do controle inerente ao assistencialismo internacional que remete a profusão de semicírculos (cúpulas, capacetes) com a letras UN (United Nations, a Onu – Organização das Nações Unidas), na parte superior da tela, sobre o emaranhado de cabeças, pessoas, na parte inferior.

Também é óbvia a relação das bonecas enegrecidas de Quenum e dos gêmeos de Zinkpé às crianças africanas e seu sofrimento cotidiano, histórico, mítico, assim como os vínculos das máscaras-galões de Hazoumé aos motociclistas transportadores de combustível, elos fracos em uma economia encadeada para o enriquecimento de outrem.

Mas não é apenas crítica social o que essas obras destilam. Elas também retomam mitos tradicionais na região, como o da prosperidade simbolizada pelos gêmeos por Zinkpé; os bocio, representações de indivíduos, famílias, antepassados e espíritos que são atualizados nos totens feitos por Quenum com suas peças compostas de pedaços de madeira e bonecas usados mais outros elementos; as telas com evocações do Ifá e de sistemas simbólicos de outras regiões da África, assim como as marcas de iniciação religiosa presentes em alguns dos galões apropriados por Hazoumé.

Dominique Zinkpè participou no Festival International de teatro do Benin,  com a intervenção 'awobobo Zinkpè', quatro viaturas gigantes que se passearam na cidade de Cotonou.Dominique Zinkpè participou no Festival International de teatro do Benin, com a intervenção 'awobobo Zinkpè', quatro viaturas gigantes que se passearam na cidade de Cotonou.

Tudo feito com procedimentos típicos da arte hoje, com a indiferenciação entre meios menos e mais tradicionais: desenho, pintura, escultura, fotografia, colagem, assemblage, ready made, instalação multimídia. Entretanto, é importante ressaltar que os modos como eles transformam elementos variados em objetos, instalações e imagens estão conectados a práticas culturais locais, especialmente as religiosas, vigentes de longa data, de plasmar, consubstanciar seres com elementos heterogêneos. A presença de palavras provenientes de diferentes idiomas – francês, ioruba, fon, inglês – nos títulos das obras desses artistas é outro indício das múltiplas referências que eles manipulam, dos cruzamentos e misturas que produzem.

Assim como ao lidar com as linguagens, artísticas ou não, esses artistas transitam entre o local e o global, na abordagem de questões culturais, sociais, históricas, econômicas e políticas, eles ultrapassam seus contextos de origem, suas bases de atuação.

Por exemplo, a tela de Gerard Quenum que figura um Fusca amarelo poderia ter surgido em muitas partes do mundo. Primeiro, por ser o Volkswagen Fusca um automóvel de presença mundial, fabricado que foi, desde a segunda metade da década de 1940, na Alemanha, até 2003, no México, onde foi produzido o último exemplar do veículo, além de ter sido e continuar sendo consumido largamente pelo mundo. Depois, pelo modo como o quadro foi feito. É uma tela, um dispositivo de representação criado na Europa, e a linguagem remete à prática do grafite urbano, que também é quase onipresente mundialmente hoje, bem como aos movimentos artísticos do modernismo que, a partir da Europa ganhou boa parte do mundo. A visão frontal também mostra, dentro do automóvel, cinco cabeças humanas, cujas representações algo esquemáticas podem levar a pensar que são apenas homens. Delineia-se uma cena: pessoas transitando em um fusca. Embora figure hábitos locais – o uso de táxis coletivos na África – como visto anteriormente, essa é uma obra cujo tema ressoa a vida cotidiana mundial a partir da segunda metade do século XX.

G. Quenun, 'Vodounsi (Priestess)', 2006G. Quenun, 'Vodounsi (Priestess)', 2006

Assim como nessa e em outras obras de Quenum, nas realizações de Hazoumé e Zinkpé não é difícil perceber como eles lidam com questões de micro e macro política ao explorarem articulações entre economia, indústria cultural e imaginário na conjuntura política contemporânea. Pois os questionamentos que eles processam artisticamente é indissociável de reflexões sobre questões políticas de alcance local, regional e mundial – os usos dos recursos naturais, humanos e financeiros disponíveis, o consumo no regime pós-industrial –, bem como sobre práticas culturais de cunho universal: religião, memória, história, relações de gênero, indumentária, ludicidade.

Contudo, mais do que dominarem as linguagens geradas no Ocidente e se apropriarem de coisas e práticas de um múltiplo universo cultural, inventando elementos com os quais se afirmem como autores e ampliando o campo de possibilidades da arte, eles procuram delinear poéticas de grande alcance.

Gérard Quenu, 'Benin está vivo ainda lá  Ancestralidade e Contemporaneidade', Museu Afro Brasil.Gérard Quenu, 'Benin está vivo ainda lá Ancestralidade e Contemporaneidade', Museu Afro Brasil.

As máscaras feitas com galões, cabelo, tecidos e outros itens de Hazoumé configuram sujeitos, ao articularem títulos a elementos que remetem aos processos de construção subjetiva por meio de marcações religiosas, penteados femininos, indumentária, adereços e outros signos derivados ou associados ao corpo. Além das evocações humanas que saltam dos “Táxis-Zinkpé”, com sua mescla exuberante de veículos, coisas e seres, o grafismo e a cor dos desenhos e pinturas de Zinkpé são indícios não só de apropriação de meios e linguagens estrangeiros, mas também de como essas obras, mais ou menos intimistas, falam dos seres humanos, suas relações e memórias, seus ideais e sentimentos. Além da atualização dos bocio, com suas evocações memorialísticas e míticas, nas assemblages com bonecas, as telas de Quenum também expressam sentimentos e paixões humanas universais, como explicitado no vermelho coração pulsante em uma de suas pinturas recentes.

Universalismo que ajuda a não reduzir as obras desses três artistas à condição de panfletos subsidiários à política, qualificando-as como objetos e ações políticos feitos com, na e pela arte.

Gérard Quenu, 'Benin está vivo ainda lá  Ancestralidade e Contemporaneidade', Museu Afro Brasil.Gérard Quenu, 'Benin está vivo ainda lá Ancestralidade e Contemporaneidade', Museu Afro Brasil.

Ao fundir sintagmas, semânticas e sintaxes, Hazoumé, Quenum e Zinkpé evidenciam como, de diferentes maneiras e com diversos alcances, a equação que incentiva, demanda ou obriga a conjugar o glocal é por eles subvertida, embora não abandonada, com infiltrações que corroem as expectativas ocidentais e locais quanto ao que deva ser a arte contemporânea feita a partir do Benim, da África. Assim, eles produzem atritos nos processos de institucionalização internacional em que se inserem e estão incorporados O que implica, além de outras visadas para a arte elaborada a partir da África, revisões da crítica e da historiografia da arte, tanto a da África quanto a mundial, desde a modernidade até hoje e mesmo antes.

 

Roberto Conduru participou em Terceira Metade, uma programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a curadoria de Marta Mestre e Luiz Camillo Osorio, e que se desenha no espaço geográfico e mental do Atlântico, em especial na triangulação Brasil, países africanos e Portugal.

  • 1. Sobre Dominique Zinkpé, ver ZINKPÉ, Dominique. Táxis Zinkpé. Cotonou: AYIZO, (s.d.).
  • 2. Sobre Gérard Quenum, ver QUENUM, Gerard. Gérard Quenum. London: October Gallery, 2009.
  • 3. Sobre Romuald Hazoumé, ver HAZOUMÉ, Romuald. ‘Ensaio’. Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, UERJ, ano 11, v. 1, n. 16, jul. 2010, p. 57-72; –. Made in Porto-Novo. London: October Gallery, 2009; –. La Bouche du Roi. Paris: Musée du Quai Branly; Flammarion, 2006; –. Romuald Hazoumé. Cotonou: Fondation Zinsou, 2005.
  • 4. A realização desse texto contou com o apoio do Ministério das Relações Exteriores, do Embaixador Arnaldo Caiche D’Oliveira, de Milton Guran e André Jolly, aos quais o autor agradece.

por Roberto Conduru
Vou lá visitar | 2 Maio 2011 | Dominique Zinkpé, Gérard Quenum, Romuald Hazoumé, Terceira Metade