A pátria de Camus (acerca do artigo homónimo de Henrique Raposo)

Para expor, nas páginas do jornal Expresso, as suas ideias – respeitáveis – sobre o terrorismo e a melhor maneira de o combater – Henrique Raposo recorre a um artifício infelizmente frequente em Portugal: invocar escritores ou outras personalidades célebres para «ilustrar» a sua própria prosa e dar-lhe um toque «intelectual chic». E é assim que estabelece um paralelismo histórico entre a guerra da Argélia (1954-61) e a actual «guerra contra o terrorismo» declarada por George W. Bush em 2001. É certo que cada um pode reescrever a história à sua maneira, embora algumas comparações escandalizem, e com razão, os historiadores. Outras são simplesmente ridículas, como por exemplo comparar os atentados terroristas actuais na Europa com a Batalha de Argel filmada por Pontecorvo em 1966. 


Um provérbio francês que muito aprecio diz «Qui trop embrasse mal étreint», que significa aproximadamente o mesmo que a expressão portuguesa «dar um passo maior que as pernas». É o que Henrique Raposo (HR) faz ao invocar Jean Paul Sartre, Raymond Aron e Albert Camus para falar da Guerra da Argélia e reduzi-la a uma alegada escolha moral entre o terrorismo – assassino de «seres humanos concretos» e o «cosmopolitismo» democrático e reformista. Acontece que na sua «reivindicação» de Camus - a reboque de vários ensaístas e politólogos americanos da última década, que parece conhecer melhor que os autores franceses citados (em segunda mão?) - HR revela uma profunda ignorância quanto aos factos históricos que com ligeireza evoca. A abordagem superficial facilita o emprego de fórmulas contundentes como a «infâmia» e «imoralidade» de Sartre, «frieza» e «amoralidade» de Aron e a «decência» e «generosidade» de Camus.

 Mas expõe também a «quiproquós» hilariantes como a do próprio título do artigo. Atrevo-me a lembrar a HR que a única «pátria» de Camus era …. a língua francesa!  Sei que a frase tem direito de autor em português mas Camus utilizou-a sem vénia no seu famoso discurso de aceitação do Premio Nobel de Literatura de 1957.

'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo com Jean Martin, Yacef Saadi, Brahim Hadjadj, Fusia El Kader. 'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo com Jean Martin, Yacef Saadi, Brahim Hadjadj, Fusia El Kader.

Mas adiante. Não muito porque logo na primeira linha HR faz esta afirmação surpreendente: «Entre 1954 e 1962 a guerra civil de Argélia…» Guerra civil? A historiografia oficial francesa tem, como a portuguesa, ainda muitas dificuldades em assumir o passado colonial, inventou muitos eufemismos para se referir a este período. Durante muitos anos falou-se dos «acontecimentos» de Argélia, de «distúrbios» e «conflito argelino» mas foi a primeira vez que ouvi falar em «guerra civil» para designar este período. Para os franceses guerra civil só há uma, a da década de 90, o que profundamente irrita os argelinos que falam em guerra antiterrorista e se orgulham de ter saído vitoriosos do confronto com o islamismo armado.

 A guerra da Argélia marcou a minha geração e fez de mim o que sou. Era na altura estudante na Sorbonne onde tive Aron como professor de sociologia, participei activamente na vida associativa e política, o que me obrigou a tomar partido acerca do assunto. Foi uma das muitas guerras de libertação ou guerras coloniais da segunda metade do século XX e a última que a França travou e perdeu.

Os ventos da História e a «razão analítica» reduziram a um punhado de indefectíveis defensores do colonialismo os que se atrevem ainda a reduzir os independentistas argelinos ou outros a um punhado de «terroristas» («viets» e «fellaghas» para os franceses, «turras» para os portugueses). E em relação à disputa ideológica entre Sartre e Camus, se o segundo antecedeu o primeiro na denúncia dos totalitarismos do século XX (L´Homme Revolté), o primeiro tinha a razão do seu lado quando escreveu Le colonialisme est un système, moral e historicamente injusto independentemente da «inocência» de alguns colonos pobres (como a mãe de Camus).

Gostava que HR citasse as fontes que lhe permitem afirmar que Sartre defendeu «o assassínio de compatriotas que viviam do outro lado do Mediterrâneo» considerando-os «desprezíveis, descartáveis, espezinháveis». Ou que a propósito de Raymond Aron, fizesse referência ao seu livro La Tragédie algérienne (publicado em 1957), um ano depois do envio de soldados do SMO (chegaram a ser cerca de meio-milhão) para defender a «Argélia francesa» ou, como se dizia então, «La France de Dunkerque à Tamanrasset».

'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo 'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo

Para muitos franceses, e sobretudo para os jovens «mobilizados», foi este contacto directo com as realidades que lhes abriu os olhos sobre a «injustiça» intrínseca do sistema colonial e à violência de uma «guerra assimétrica» que só podia conduzir – e conduziu de facto – a uma escalada de atrocidades de ambas as partes que, como disse justamente Aron – «não se equilibravam mas juntavam-se» - e que só poderiam acabar pondo fim à guerra mediante uma solução política que passava já em 1957 pelo reconhecimento do direito dos argelinos à independência.

Da recusa em participar nesta escalada e da rejeição das suas consequências letais para a democracia e os direitos humanos, nasceu a oposição francesa e a continuação da guerra da Argélia que culminou (tardiamente) no «Manifesto dos 121» (apelo à deserção e ao apoio aos independentistas argelinos) que Sartre assinou.

Se Camus /falecido em janeiro 1960 / não pode participar na intensa polémica suscitada pelo manifesto (publicado em novembro do mesmo ano) não há dúvida de que estava claramente do lado dos signatários do Manifeste des intelectual français pour la résistance à l’abandon que invectivavam os «professores de traição» e rotulavam o FLN de «minorité de rebelles fanatiques, terroristes et racistes».

Mais estranho é o facto de Camus não ter reagido publicamente após a publicação (em 1958) de «La Question», de Henry Alleg que denunciava (depois de ter la vivido) a tortura praticada sistematicamente pelo Exército francês contra os «terroristas» argelinos e os seus «cúmplices» e de ter afirmado em Estocolmo que os jornalistas franceses eram livres e que as autoridades francesas não exerciam a censura (salvo algumas excepções condenáveis) como é imperdoável que se tenha recusado a assinar a petição em defesa de Alleg, preso e condenado a dez anos de prisão em França por «traição».

Alleg «pied noir» de origem judia e polaca era, desde 1951, o chefe de redação do diário Alger Republicain, jornal que publicara em 1939 os artigos do jovem Camus que denunciavam a miséria e a exploração da população argelina. Porque esta falta de solidariedade de Camus com Alleg? Porque Alleg era comunista e as suas acusações «interessadas»? Ou porque a prisão e tortura de Alleg (em 1957) desfaziam as ilusões dos liberais argelinos a quem Camus tinha dirigido em 1956 o seu «Apelo à trégua civil» para «salvar vidas humanas e preparar um clima mais favorável a uma discussão finalmente razoável»?

'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo 'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo

Águas passadas, deixemos os mortos em paz: a história já os julgou. Preocupa-me mais que, mais de meio século depois da independência de Argélia, HR considere ainda possível e até preferível que o desfecho da guerra tivesse sido outro, que em vez da fuga apressada dos pieds noirs e «do mar de cinzas sem Fénix à vista» tivesse sido encontrada uma solução «institucional», um «centro democrático entre a xenofobia branca e o terrorismo árabe», uma «Argélia autónoma mas integrada na soberania francesa». Esquecidos o putsch de Argel, o terrorismo da OAS e a ameaça contra a democracia em França.

Para HR competia à França «aculturar os argelinos aos valores da França». O argumento é conhecido e, apesar das sangrentas aventuras do Afeganistão, Iraque, Líbia etc.. haverá sempre suprematistas iluminados para defender que o Ocidente deve ensinar a democracia ao resto do mundo se necessário com bombas.

HR vai mais longe ainda porque vê na «turbulência das comunidades muçulmanas» da Europa os fanáticos terroristas árabes de sempre ao assalto da margem norte do Mediterrâneo, recorrendo à mesma tática que os levou a vitória na batalha de Argel (sic). Exagero? Caricatura? Talvez, mas o facto é que quando HR trata de explicar como poderia ser esta «pátria de Camus» liberal e equidistante do multiculturalismo da esquerda pseudo-revolucionária e tercermundista de Sartre e do radicalismo islamita, o seu raciocínio se faz confuso e a linguagem imprecisa. Diz, e bem, que o termo «muçulmano moderado é perverso» e disfarça o «racismo escondido no politicamente correcto» mas comete o mesmo erro quando acusa (sem prova) a esquerda (qual?) de ridiculizar os «muçulmanos liberais» e de respeitar e legitimar os islamitas «homofóbicos e misóginos».

Sei que a língua portuguesa é traiçoeira e que os jornalistas portugueses que escrevem sem aspas «soarista», «cavaquista» ou «socrático» ainda não aceitaram de escrever «islamista» para distinguir os islamitas «radicais» dos outros …que como observa justamente HR podem ser muitas coisas, conservadores, liberais, fascistas, socialistas, feministas, e europeus. Pois … e é neste ponto que HR (qui trop embrasse….) pisa o risco da desonestidade intelectual quando afirma que «nunca existiu uma política de integração na Europa».

'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo 'Batalha de Argel' (1966), de Gillo Pontecorvo

Esta política existiu e funcionou durante décadas em relação a (quase) todas as imigrações ou pelo menos em relação às menos «visíveis» (o racismo é outra dimensão do problema) nomeadamente em França.

Mais: há seculos que o Islão faz parte da história e da cultura europeias e há Estados europeus cuja população é maioritariamente muçulmana (Albânia) ou de cultura muçulmana, nos Balcãs e no Cáucaso.

Por outro lado, quando evoca os motins de Birmingham «entre negros e muçulmanos», HR finge ignorar que muitos emigrantes negros são muçulmanos e que há muçulmanos (e negros) racistas. Então, falar em «aliança entre democratas europeus e democratas muçulmanos» é um nonsense. Trata-se de ser «europeus E democratas». Mas a fórmula parece incomodar HR porque não consegue encaixar a sua «pátria», as suas «raízes» entre o choque anunciado entre «o direito do solo e o direito do sangue». Mas como ele diz que isto é «assunto para outra conversa» sejamos pacientes e aguardemos. Sem deixar de ser atentos e vigilantes porque a «guerra civil» que HR vê como «talvez inevitável» pode vir de muitos outros lados… As desigualdades socioeconómicas, a exclusão por exemplo. Não menos letais para a democracia e não menos geradoras de guetos, ódios e ressentimentos que as religiões, diabolizadas ou divinizadas…    

 

por Nicole Guardiola
A ler | 5 Setembro 2016 | argelia, Camus, Henrique Raposo, Mçulmanos, terrorismo