O argumento do terceiro homem

Quando acabamos de filmar a velha pôs-se doida. Tínhamos pedido que o casal de bêbados dançasse um bocado à frente da câmera. Porque me deram este homem se eu gostava era de outro, virava-se para nós, abria bem os olhos, as mãos no ar agitavam e num gesto obsceno prendia a capolana entre as pernas, punha as mãos no sexo e gritava que tinha muito fogo, fogo ali dentro, depois punha-se a dançar sozinha e roçava o cu nas nossas calças, quero um homem branco para lhe sacar um mulato, dá-me um branco e eu faço um mulato. Atrás, Zendequias explicava ao Pedro, beber álcool todos os dias não faz mal, não faz mal nenhum, quantas línguas falas, parlez-vous français? I speak 27 languages, entre dialectos e outras, I speak 27 languages, beber todos os dias não faz mal, se for em excesso sim, todos os dias não, se se beber muita água morre-se, muita água faz mal, é como rir, quem se ri muito pode cair e bate com a cabeça no chão, morre, mas beber todos os dias é bom. A velha cantava esbaforida, abria os olhos, dá-me fogo ou dinheiro.

João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Three albinos telling jokes at the fire, 2013. Chromogenic colour print, 60 x 90 cmJoão Maria Gusmão + Pedro Paiva. Three albinos telling jokes at the fire, 2013. Chromogenic colour print, 60 x 90 cm

Era  o último dia que estávamos em Moçambique. Deu para compreender que nada há aqui para perceber, uma senhora francesa uma vez disse-nos que um europeu devia ter vergonha de ir a África, que era criminoso voltar ao lugar do colonialismo, ela tinha razão. Existe sempre um terceiro homem, o colono, o colonizado e o mulato. Com a FRELIMO no poder e na luta armada desde 64, primeiro contra o regime português até 75, e depois contra a RENAMO numa guerra civil até 92, onde se estima terem morrido 1 milhão de pessoas, Moçambique parece à primeira vista incólume das feridas mais profundas do colonialismo. Perguntávamos a um moçambicano albino se tinha alguma anedota sobre portugueses, riu-se, chegou um português aqui a Maputo e surpreendido com tudo isto perguntou a um moçambicano com um ar simpático e bem parecido como se chamavam os filhos da puta em Moçambique, meu senhor, nós não os chamamos, eles é que vêm sozinhos de Lisboa. E lá estávamos nós, dois filhos da puta em Maputo 38 anos depois da independência 20 anos depois da guerra civil, a velha bêbada aos berros, os olhos dela raiavam sangue e miséria, dá-me um mulato, dá me um mulato ou dinheiro meu filho da puta. Ficámos alojados uma semana em casa de um português que se tinha estabelecido nos arredores de Maputo, dizia, vocês têm que perceber uma coisa, os pretos não são coitadinhos, e a seguir, ainda hoje tive que desancar o Silva, disse-lhe bem a sério, o patrão aqui sou eu e a senhora, a seguir são os meninos e a seguir são os cães, percebeste? então repete, e o Silva repetiu, o patrão são os cães, existe sempre um terceiro homem. Quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha. Em Moçambique existem duas galinhas, a africana e a branca, e duas cervejas, a preta e a clara. A galinha africana mal se deixa apanhar, a branca sempre vai para a panela primeiro, é mole e depois de assada menos rija. O albino que contava anedotas disse ainda, aqui no bairro todos me conhecem pelo portuga, nunca fui a Portugal, mas gosto, o meu cunhado que teve lá a trabalhar um ano foi um dia fazer uma fotografia tipo passe, quando viu a foto achou que estava um bocado escura, foi ao balcão e disse, desculpe acho que está um pouco escura, a senhora respondeu, está escura porque o senhor é preto, se fosse branco estava clara, o que é que você quer? o senhor é preto. Esta vai ficar gravada na minha memória, disse o albino, nunca mais me vou esquecer, ria ria, nós riamos também, ele voltou à loja porque achava que a fotografia estava escura e ela disse, mas o senhor é preto, e ria. Isto foi em Lisboa, filhos da puta. Conhecemos um tipo maluco que não respondia a ninguém, escrevia números e contas de multiplicar no chão, quando via os alunos da escola punha-se aos berros, vocês não sabem matemática, burros, burros! MA-TE-MÁ-TI-CA! Mostrámo-lhe o PI, perguntámos-lhe se ele podia escrever este número enquanto filmávamos, ele olhava para o infinito. Escreves este número e depois continuas e nós filmamos, pode ser? Damos-te um cigarro e filmamos, pode ser? Ele aí levantou-se já com o cigarro na mão, pegou num pau, baixou-se à sombra e começou a escrever. Pi é infinito… Espera, depois do 3,14 vem o 1592653589793, não parava de escrever, já não era Pi, mas outro número qualquer sem fim, toma outro cigarro, tens sede, a sede é infinita. Lembra-te quem são os patrões Silva, e para nós, estou aqui há 24 anos e nunca bebi água da torneira, nós cá em casa só água engarrafada. Beber água em excesso mata. Álcool não, se for todos os dias não faz mal nenhum, pelo contrário. Queres um cigarro? tens que perceber uma coisa, depois do 3,14 vêm muitos números, nunca mais acaba, estás a compreender é como estarmos a contar as estrelas, são muitas, para cada uma existe outra e uma infinidade mais de estrelas… quisemos filmar uma galinha africana, disseram-nos, oh, isso é muito difícil, é preciso uma estratégia, Pedro fica aí à espera atrás da palhota eu vou por este lado, quando ela aparecer tu saltas-lhe em cima. Já provaram o prato nacional? Frango assado com piri piri e batata frita, não comas a salada, e quando chegarem a casa têm que fazer a desparasitação. A galinha fugiu, escondeu-se debaixo daqueles bidões de óleo. Depois a câmera avariou.

João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Third Man Argument, 2013. Installation view Sies + Höke Galerie, Düsseldorf. Photography, Achim Kukulies.João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Third Man Argument, 2013. Installation view Sies + Höke Galerie, Düsseldorf. Photography, Achim Kukulies.Fomos  ao curandeiro, levámos-lhe a máquina de filmar, dissemos-lhe que a tínhamos tentado reparar e como não ficava boa só podia ser feitiço. Ele olhou para nós, deve ter pensado como nos iria sacar mais dinheiro, olhou para nós e perguntou, quantas pessoas usam a máquina? nós os dois, levou a mão á terra e apanhou daquela areia húmida vermelha, espalhou a terra no banco… vocês têm que perceber uma coisa, olhem ali para a carrinha, está limpa, se eu puser a mão em baixo fico com as mãos sujas, depois quando for a usar o carro sempre que lhe tocar já não vai estar limpo, como este banco, pus a mão suja e agora quem aqui se sentar vai estragar umas calças. O Feitiço não está na máquina, está em vocês, e quem precisa de remédio são vocês e não a máquina. A máquina está boa. Para libertar o espirito da máquina de filmar tenho que vos limpar também. São 60.000 meticais, não é preciso pagar tudo de uma vez, primeiro metade antes do trabalho e depois se der resultado vêm cá pagar o resto. Era muito caro, dissemos que íamos pensar, que depois lhe dizíamos qualquer coisa. Perguntei ao nosso motorista se podiam também haver feiticeiros brancos, ele pensou um bocado… pegou no meu telemovel, o feiticeiro branco quando faz magia é para o desenvolvimento, está a ver, funciona, inventou o telemóvel para nós o comprarmos, agora podemos falar para toda a gente, o feiticeiro preto usa arbustos, usa arbustos para telefonar? Não, usa arbustos e ervas para fazer remédios. Mas o feiticeiro preto também mata muita gente, não é como o branco que é para o desenvolvimento. Mata gente se mata. Do outro lado da baía, em Catembe, aí os feiticeiros matam com a trovoada; lançam um feitiço, cai-te um trovão em cima, morreste. O Samora não morreu de feitiço, eles, os que mataram Samora, sabiam que ele estava protegido em terra, não podiam fazer nada, em Samora o feitiço não colava, tinha que ser lá em cima, foi assim que eles o mataram, porque na terra estava protegido e lá em cima não, foi assim que o avião caiu com o Samora dentro e ele morreu.

Em casa víamos no youtube os discursos pós revolucionários de Samora Machel, líder histórico da FRELIMO: “Uns sentem-se orgulhosos, porque foram colonizados pelos ingleses. Os ingleses são civilizados e construíram um grande império. (Risos) E outros porque foram colonizados pelos franceses, pensam que intelectualmente são mais desenvolvidos, mais civilizados, mais evoluídos, porque foram colonizados pelos franceses. (Risos) Eu… eu fui colonizado pelos portugueses, país mais subdesenvolvido da Europa, mas colonialista (Gargalhadas).”  “A luta continua! (e o povo repetia, a luta continua), a luta continua! (e o povo repetia, a luta continua) contra o quê?” perguntava Samora.

Explicávamos então ao albino porque queríamos fazer um filme com ele, Vicente, era assim que ele se chamava, Vicente nós não queremos filmar as pessoas na machamba, nós não viemos para fazer documentários, viemos porque tudo o que o homem pensa de si próprio é uma mentira, porque o homem não é só ele, é também o que ele vê e transforma, ao dar nomes às coisas, ao contá-las e somá-las, quando compra e vende, só pensa em vender, em comprar tudo o que vê, porque deforma sempre que ordena as coisas para as melhor poder compreender, poder comprar e vender, porque acha que há sentido na vida quando é mentira, comprar e vender. É como estava escrito ali atrás na parede: “o falso génio”, o homem é um falso génio. Vicente, tu és preto, mas ao mesmo tempo não és, porque és branco, mas não és como os brancos mulatos, tu és como um extraterrestre, nem branco, nem preto, nem mulato, vieste do espaço como o homem das cavernas, nem branco nem preto, sem representação, e é esse o nosso trabalho, lutar contra todas as representações, sobretudo aquelas que são abstractas. Vicente, se soubesses como é doentiamente hipócrita a arte, porque se acha muito importante, e é feita por gente vaidosa que se acha importante e com uma sensibilidade preciosa, gatos pretos quartos escuros, o problema é que o nosso raciocínio é demasiado abstracto para evitar isso mesmo contra o qual lutamos, existe aqui uma questão de fragilidade intelectual que importa referir, é que por mais que tentemos o irrepresentável, soçobra sempre qualquer coisas demasiado humana, é um paradoxo, um homem é humano se existir um segundo homem ideal em que possa espelhar a sua humanidades, ora para este segundo homem, não lhe basta olhar para o primeiro, tem que encontrar um terceiro maior e mais humano, esse terceiro faz o mesmo, e assim indefinidamente em regressão infinita, um paradoxo, e que tal, aceitas fazer o filme? Mas qual é o valor da gratificação? 700, se fizerem mil aceito.

João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Third Man Argument, 2013. Installation view Sies + Höke Galerie, Düsseldorf. Photography, Achim Kukulies.João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Third Man Argument, 2013. Installation view Sies + Höke Galerie, Düsseldorf. Photography, Achim Kukulies.

Sentados no mercado de peixe de Maputo um velho professor de liceu falou-nos acerca de um mergulhador que conhecia em Inhambane, e que antes da independência trazia as maiores raridades do mar para vender aos turistas portugueses que ali chegavam de toda a parte. Ele trazia animais nunca antes vistos, peixes sem nome, e as coisas sem nome nadam nos fundos, este pescador meu amigo não tinha medo, não pescava mais nada, só peixe sem nome. Um dia, viu um peixe pequenino de baixo de água, ele tinha tanto aquela vontade de apanhar coisas desconhecidas que foi atrás daquele bicho, foi atrás e ele zás, entra numa gruta. Em Inhambane, vocês não conhecem, a água é transparente como o vidro, mas o buraco por onde entrou o peixe pequenino era escuro, e dentro não se via nada, o meu amigo sem medo entrou porque ele queria mesmo aquele peixe pequenino, mas o peixe pequenino entrou na boca de um peixe mesmo grande, e ele foi atrás. Zás, esse monstro fechou a boca e ele ficou lá dentro, é o que acontece quando se querem coisas sem nome. Nunca mais entrou na água esse pescador, mas como é que ele conseguiu sair da barriga do peixe, perguntávamos, isso não posso adiantar, mas saiu, vi-o depois na praia muitas vezes, esse homem nunca mais foi à agua, tinha medo, o peixe comeu-lhe o espírito de pescador.

Texto da exposição “O argumento do terceiro homem” de João Maria Gusmão + Pedro Paiva, na Galeria Sies + Hoke, Dusseldorf, até 8 Junho de 2013

por João Maria Gusmao + Pedro Paiva
A ler | 24 Abril 2013 | arte contemporânea, moçambique