Nos Campos da Rebeldia

Martin Lienhard, catedrático de literatura hispânica e lusófona no Instituto de Línguas e Literaturas Românicas da Universidade de Zurique, tem uma obra marcada pela interdisciplinaridade, com um amplo diálogo entre a literatura, as artes, a antropologia e a história. Porém, esta não é a característica que sobressai do seu trabalho, e sim, como já o disseram Annina Clerici e Marília Mendes, a sua preciosa “arqueologia” das vozes e atitudes daqueles que foram marginalizados no decorrer dos diversos processos históricos e sociais.

Neste seu novo livro, Disidentes, rebeldes insurgentes. Resistência indígena y negra em América Latina. Ensayos de historia testimonial (Madrid: Iberoamericana/Vervuert, 2008), o título já revela que o foco central de suas histórias será a rebelião contra o sistema instaurado por Espanha e Portugal no continente americano, firmado na servidão das populações autóctones – transformadas em índios – e na escravidão dos negros importados da África.

O conceito central que o autor utiliza é a rebeldia; a dissidência remete, de acordo com o caso, a um antes da rebeldia aberta ou a uma rebeldia em estado latente; enquanto a insurgência, o estado supremo da rebeldia, remete para as suas manifestações mais radicais. Segundo Lienhard, citando Camus, “um homem rebelde é um homem que diz não. Mas, ao dizer não, não renuncia: desde seu primeiro movimento é também um homem que diz sim. Ainda de acordo com Camus, o escravo ao passar à ação, deixa de ser o que foi e se transforma em um homem novo. Ao reagir, o escravo se precipita de corpo e alma inteiras, a uma luta cujo desenlace não pode ser senão sua libertação ou a morte. Ao estudar casos concretos de rebeldia não é sempre possível determinar quando, como e em que medida alguém rompe com a sua condição de escravo. O que provoca a rebeldia aberta são, no mínimo, fatos relativamente banais, mas inesperados. A brusca mudança de regras do jogo pode levar um coletivo subalterno aparentemente “pacífico” a passar à  rebeldia aberta. Ainda quando parece surgir do nada, a revolta supõe, sem dúvidas, uma tomada de consciência.

Quais causas defendiam os rebeldes que protagonizaram as histórias? Dada a diversidade de situações, qualquer generalização permanece discutível. Vários protagonistas, entre eles o escravo doméstico Juan Francisco Manzano, não aspiravam senão “a que os deixassem em paz”. Outros pretendiam negociar “seus direitos” com seus senhores ou os donos do território. Outros mais haviam se precipitado no “tudo ou nada”, para fazer-se livres em outro lugar , como os escravos de Banes e Matanzas, ou para revolucionar toda a sociedade, como Juan Santos Atahualpa. Todos buscavam em última instância a liberdade, mas em que medida era a mesma liberdade a que aspiravam don Carlos Ometochtzin, em Tezcoco  ou Juan Francisco Manzana, em Matanzas, ou mesmo os escravos rebelados do Brasil ou Cuba? Para o autor, a ordem que todos pretendiam “mudar” não era a realidade, senão uma “utopia”. Mas, nem todos pretendiam um “retorno a um paraíso perdido”, para muitos rebeldes a “liberdade”  significava somente viver longe de seus senhores e dos brancos em geral. Eles não buscavam uma liberdade e igualdade para todos, como havia propugnado a Revolução Francesa, a “liberdade” que aspiravam era basicamente a sua “autonomia”. 

Para a realização do seu trabalho, utiliza-se do método que denomina de “história testemunhal, cuja inspiração advém da história oral. Como era impossível interrogar diretamente as testemunhas, a opção foi utilizar os depoimentos que foram recolhidos por outros na época em questão. Documentos diversificados, muitos deles contendo abundantes testemunhos dos rebeldes e das testemunhas que presenciaram os atos de insubordinação. Documentos, como os processos criminais, marcados pelo diálogo assimétrico, onde os índios e negros se encontram na defensiva. Um “jogo de cena” em que os rebeldes não tem nenhum interesse em declarar a verdade – “sua verdade”. Um “jogo de cena” onde muitas vezes entra uma variável violenta de coação: a tortura. Assim, excetuando a autobiografia de Juan Francisco Manzano – o único testemunho dissidente escrito por um negro na América Latina – a história testemunhal que se põe a prova no livro não parte de uma fundamental “veracidade” das fontes utilizadas; mas, sim, o que conta mais em um documento não é apenas o que ele revela, porém, mais importante, é o que ele oculta. É preciso pensar, segundo o autor, que qualquer texto remete ao contexto que o originou, revelando certas verdades sobre a sociedade onde se realizou, enfim, permitindo dizer “onde há fumaça, há fogo”.   

A primeira narrativa aborda o processo inquisitorial empreendido contra Don Carlos Ometochtzin, que culminou com a execução de sua sentença de morte em 30 de novembro de 1539. O contexto geral em que se situa o processo é a implantação do sistema colonial no México central e as campanhas desenvolvidas para forçar a submissão ideológica dos nativos. Denunciado inicialmente por seu sobrinho, Francisco Maldonado, por não haver participado de procissões e outros rituais organizados pela Igreja para propiciar chuva. Posteriormente é acusado de idolatria por oferecer sacrifícios a Tlaloc, deus da chuva dos índios; polígamo, por ter dois filhos com sua sobrinha e por haver assediado a sua cunhada; herético, por atribuir a seus antepassados faculdades dos profetas bíblicos. Concluindo a acusação, não obstante a falta de provas, credita-se a Don Carlos, não apenas rechaçar os valores e as práticas introduzidas pelos espanhóis, mas também ressaltar a propagação de suas “heresias ancestrais”. Em resumo, o trágico final do do cacique de Tezcoco não foi derivado do que havia feito ou dito. Seus diferentes delitos – da recusa do catolicismo à poligamia – eram comuns entre os membros indígenas. Portanto, os motivos que conduziram a sua morte estão relacionados à animosidade de outras lideranças locais a sua pretensão de suceder a seu irmão Don Pedro, como senhor de Tezcoco. A sua condenação pelo Santo Ofício, se apoiava nos pronunciamentos estabelecidos pelos senhores locais.   Para os espanhóis, eliminar o cacique era livrar-se de um perigo em potencial. Por sua vez, a morte de Don Carlos como “herege” conduzia a Coroa espanhola a herdar todos os seus bens. Na realidade, Don Carlos podia ser visto como um dissidente, sendo improvável a sua participação em um movimento de resistência ao poder espanhol. O que os dados sugerem, é que seus pares estavam disputando suas prerrogativas de senhores locais, sob a égide e “proteção” dos espanhóis.

Em meados de 1742, até a década seguinte, Juan Santos Atahualpa, desenvolveu uma guerrilha nas selvas peruanas, objetivando tornar-se “Rei de todo o Peru”. Várias foram as expedições enviadas para a sua captura, porém, não lograram os seus objetivos. A maioria dos documentos fala de um homem quase invisível, denominado na correspondência oficial como o Índio, um “índio que denominando-se Inca, pretende coroar-se Rei”, o “Rebelde da Montanha”, o “Inimigo”, mas sobretudo, o “Levantado”. Os arquivos não oferecem um perfil do personagem histórico, senão os contornos de um fantasma que mobilizou milhares de índios. Através da correspondência de franciscanos, sabemos que, em 1742, o Inca enviou uma mensagem para ser pronunciada pelos negros Congo e Francisco. Nela, ele dizia que só existem nesse mundo três reinos: Espanha, Angola e seu Reino. E que “os negros e espanhóis são todos uns ladrões que roubaram a sua coroa”. Disse ainda que, em primeiro lugar, ele pretendia resgatar a coroa incaica e para isso mobilizaria os índios que os incas históricos nunca tinham conseguido incorporar a seu antigo Estado. E, demonstrava interesse que os frades evangelizassem os índios, o que explicitava o seu intento em manter diálogo com os missionários. Em 16 de agosto de 1744, o vice-rei peruano, Villa Garcia, escreve que Juan Santos é um impostor que persuade os bárbaros que domina dizendo que pode converter as pedras em ouro; que seu império dominará a terra, por ser enviado do Céu para estabelecer o Império dos Incas e expulsar os espanhóis.

No documento “A Exclamação dos Índios Americanos”, em 1749, tendo como autor Calixto de San José Túpac, representando o pensamento de vários caciques e governadores indígenas do Peru, fica patente o reconhecimento do levante de Juan Santos. Porém, é relativizada a sua importância e atribuem a sua existência à “barbárie” de uns “índios incultos”.  Fica patente é que, por sua orientação messiânica, a sublevação de Juan Santos, se distingue, dos movimentos, protagonizados ao longo do século XVIII, pela “nobreza incaica institucional”. José Gabriel Condorcanqui Túpac Amaru, líder da grande insurreição andina dos anos 1780-1781, dizia-se “Inca de sangue real e do tronco principal dos reis”, mas diferentemente de Juan Santos, nunca reivindicou a “coroa” ou o “trono” dos Incas. Juan Santos teve a habilidade de identificar na área alto-amazônica um dos pontos fracos da dominação espanhola no Peru. Porém, jamais foi capaz de mobilizar as grandes comunidades quechuas – huancas – do vale de Mantaro. Acostumados a negociar os seus “direitos” com as autoridades espanholas desde 1530, e sendo relativamente autônomos, os huancas nunca embarcariam na aventura messiânica de Juan Santos.  

A autobiografia de Juan Francisco Manzano é, segundo Martin Lienhard, o único relato de certa envergadura escrito ou ditado por um escravo ou ex-escravo latino-americano. Instado por seu protetor, Domingo del Monte, em 1835, contou a parte “mais urgente de sua vida, até 1820, deixando o restante de sua história para ser realizada a médio prazo. Quem necessitava com urgência o texto de Manzano era um amigo de Domingo del Monte, o comissário inglês Richard Madden, instalado em Havana para fazer cumprir o acordo hispano-britânico sobre o fim do tráfico de escravos. Em 1840, Madden acabou publicando uma versão abreviada em Londres (em inglês), denominada  “A história da juventude do poeta negro”, e só em 1937, quase um século depois, apareceria uma edição cubana em espanhol. Como sugerem as relações com  Del Monte e outros membros de sua tertúlia, antes e depois de sua manumissão, Juan Francisco se movia com certa facilidade no ambiente dos donos de escravos. Já de há muito era conhecido como o escravo poeta por excelência. Sua mãe era uma criada de distinção de dona Beatriz de Justiz, Marquesa de Santana, e seu pai não o queria jogando “com os negrinhos da fazenda”. Enfim, os pais de Juan Francisco faziam de tudo para assimilar o estilo de vida de seus donos, e não queriam vê-lo ser confundido com os negros da plantação. “A verdadeira história de minha vida” começa em 1809, quando Juan Francisco, aos 12 anos, conheceu a sua nova dona, a marquesa de Pardo Ameno. Segundo hipótese de Martin Lienhard, a sua verdadeira história é inverificável, nem tampouco ele poderia fazer  um manifesto anti-escravista disfarçado de autobiografia. A pretensão de Manzano era denunciar o sistema escravista, através de uma história que mostrava a sua real perversidade, seu impacto desastroso nas relações humanas. Ao largo dos anos passados com a marquesa, o que o amargura não é a dureza do trabalho, nem a falta de liberdade, mas as constantes mudanças de humor de sua ama em relação a sua condição de subalterno. O que “complica” as relações entre eles é a dimensão afetiva: “ele a ama como uma mãe” e ela defende-se da atração que sente pelo escravo jovem e talentoso, com castigos inesperados, denunciando o seu sadismo. Ele somente toma consciência da impropriedade dos atos de sua dona, quando ela resolve humilha-lo diante dos olhos de uma jovem por quem Juan havia se enamorado. Logo a sua rebeldia iria se revelar, quando viu, a mando de sua ama, quatro negros agredirem violentamente sua mãe. Ele reage e esteve perto da morte com sua atitude. Rebeldia passageira, mas  revela que mesmo em um escravo com tendências possivelmente masoquistas, tudo tem limites. Quando morre a mãe de Juan Francisco, a relação entre o escravo e a marquesa entra em sua última fase, caracterizada provavelmente por um ódio mútuo. Quando ela o ameaça enviar-lhe para o engenho, o que seria para ele um “inferno”, a perspectiva de se ver rebaixado à condição de escravo comum seria para ele insuportável. O temor de ser comparado a um “negro boçal”, vence a sua indecisão e ele sela um cavalo e foge para a liberdade. O que se observa é que Juan Francisco não manifesta a menor solidariedade com os demais escravos, o mundo que desejava pertencer – ainda que seja como escravo – era o dos brancos e da casa-grande. Porém, o que a sua Autobiografia também mostra é que o sistema escravista, independente da maldade ou bondade dos senhores, é um regime de horror baseado na apropriação do homem pelo homem, atingindo até mesmo os escravos privilegiados.    

No último capítulo, denominado “A Carta e o Chifre Mágico”, o autor atenta que, ao estudar os processos culturais que se desenvolvem na América portuguesa e espanhola, se acaba descobrindo que o princípio da diglosia governa, não só as práticas linguísticas, mas todas práticas culturais relevantes. Marcadamente “diglósicas” eram as relações entre o cristianismo e as religiões tradicionais, mais ou menos clandestinas, dos índios e africanos. Ao optar pela insurgência contra um sistema que os escraviza, os escravos convertem-se em sujeitos de outra política, deixam de observar as regras da diglosia, e tomam a liberdade de combinar, em sua conveniência, os repertórios ideológico-culturais a seu alcance. Para Lienhard, a rebeldia dos escravos do Brasil e do Caribe hispânico se apóia em dois pólos: a ideologia reatauracionista (o “retorno” à África) e o pensamento ilustrado radical. Entretanto, este marco bipolar não contempla todas as configurações da insurgência negra. Conforme irá demonstrar, algumas dessas manifestações apresentam motivações muito mais “imediatas”.  Movimentos sem uma marca ideológica cultural, efêmeros e espontâneos, que surgem tendo por base atos injustos, cometidos pelos donos dos escravos ou seus representantes. Tais sublevações representam algo assim como o “grau zero” da rebeldia dos escravos. O seu motor parece ser a “solidariedade natural” dos cativos diante da arbitrariedade de membros do regime escravista. Um exemplo paradigmático de um movimento “espontâneo” deste tipo foi a insurreição que se produziu  na tarde de 23 de outubro de 1827, no cafezal  Carmen, em Guira de Melina, em Cuba.  O capataz  Ramon Viera não encontrou em casa o seu cozinheiro Pomuceno, negro congo de 20 anos. Quando o encontrou começou a espanca-lo. Do testemunho de Ventura, conterrâneo de Pomuceno, se depreende que em um primeiro momento os açoites aplicados não suscitaram maiores reações. Porém, quando Viera pretendia aplicar-lhe um segundo castigo, mais cruel - bater-lhe na boca, foi o que desencadeou a insurreição. Neste panorama, o ato do capataz era injustificado e excessivamente cruel a seus olhos. Assim, eles foram devolvidos a uma realidade que pretendiam ignorar: o terror da escravidão. Merece lugar de honra na perspectiva do autor, a rebelião de dezenas de escravos do rio Atibaia, em São Paulo, no ano de 1832. O que desencadeou o processo foi a denúncia do dono de um engenho, o Sargento-Mor Antonio Francisco de Andrade. Entre 11 e 23 de fevereiro se interroga a 34 escravos e a 16 homens livres. Pelo menos 75 por cento dos escravos interrogados são africanos, predominando os de origem congo, cabinda e monjolo. Segundo os testemunhos de acusação, João Barbeiro, era o dirigente, negro liberto de origem africana, que residia em São Paulo e já havia comandado outra sublevação em 1830. Segundo testemunhas, os escravos haviam criado uma associação político-militar, chamada “clube”, inclusive com intercâmbio de cartas. Para o autor, a denominação de “clube”, sugere que localizavam o movimento na tradição jacobina. Por outro lado, vários réus tinham conhecimento exato da conjuntura política brasileira, ao fazerem alusão à proibição do tráfico de escravos pelos ingleses (1830). Porém, o mais importante do processo foi a descoberta  de uma pintura

(sobre um papel) que “mostrava um negro sentado em uma cadeira e dois brancos, um de cada lado, coroando o negro”. Foi o que mais indignou os senhores, pois revelava a existência de uma utopia negra, cuja lógica não era do igualitarismo jacobino, mas de um “mundo invertido”. Outros aspectos remetem ao protagonismo de uma lógica que o autor denomina africana, seja pela nominação dos participantes do “clube”, seja pelo uso da expressão “quilombo. Configurando ainda mais a importância das tradições africanas, Leinhard remete à venda de “remédios”. Fabricadas a partir de raízes, estas substâncias serviam “para amansar os brancos e aliviar os negros do chumbo”. Portanto, o movimento sugere que os escravos de Atibaia haviam aprendido a combinar os dois principais repertórios culturais que tinham à mão: eram pois, culturalmente bilíngües.

Encontramos o mesmo fenômeno na insurreição que se instalou em 1825, na província de Matanzas, em Cuba. Segundo o testemunho de Tomás mandinga, a sublevação estava sendo preparada ao largo de muitas semanas. Todos os domingos, Lorenzo de Sateliens conclamava os negros a matar todos os brancos. Lorenzo e Federico (de Armitage) se diziam bruxos e que estavam fazendo bruxarias para causar mal aos brancos Ao  aproximar-se o dia da insurreição, Lorenzo e Federico (os dois bruxos) ordenaram aos escravos que comesses suas galinhas e mais o que tivessem, pois durante a guerra tudo haveria de se perder. Previa-se uma guerra com mortes entre os escravos e seus donos, o que terminou sucedendo. Houveram mortes nos dois lado. Oito escravos, dirigentes da insurreição, após o julgamento, foram fuzilados. Se a bruxaria africana foi um dos recursos utilizados na insurreição, não faltam nos testemunhos dos escravos, declarações em que eles interpretavam os processos políticos nacionais e internacionais: uma prática típica do pensamento ilustrado. Segundo Francisco, mandinga, um negro que era boiadeiro do engenho do senhor Monet, disse que “o rei dos brancos e o governador de Havana haviam dado ordens para matar todos os negros velhos e para substituí-los traria  boçais”. Por sua vez, outros escravos falavam da vinda de um navio da Inglaterra para lutar contra os crioulos e os brancos locais. Ao estudar estes rumores no seu contexto, se percebe que são interpretações “populares” de fatos históricos perfeitamente verificáveis. Quanto à “morte dos velhos”, o historiador cubano Morenos Fraginals ressaltou a “altíssima taxa de mortalidade que obrigava à contínua importação de escravos para substituir os consumidos pelo trabalho”. Quanto ao segundo rumor, é provável que aluda às tentativas da Inglaterra de extinguir o tráfico de escravos. Em 1817, Inglaterra e Espanha firmaram um acordo que estipulava o ano de 1820 para o fim do tráfico. Se bem que este acordo não funcionou para Cuba, é provável que alguns escravos cubanos, em particular os vindos de paises anglo-saxões – como Luzia, oriundo da Virginia – tivessem conhecimento da política atlântica dos ingleses. Salienta o autor que a coexistência de saberes e práticas distintas não implica que  todos os integrantes sejam “culturalmente bilíngües”. Em um mesmo coletivo, podemos encontrar pessoas que preferem manejar pautas ilustradas e outras mais apegadas a tradições africanas.

Em 13 de agosto de 1833, houve uma rebelião no cafezal El Salvador, em Banes (Cuba), tendo os escravos se revoltado contra seu dono e os brancos da região. A tropa só conseguiu dispersar o motim na madrugada seguinte, morrendo 57 escravos, entre eles os dirigentes da insurreição, Luis, Joaquim e Fierabrás. Segundo o processo judicial, como eram falantes de línguas africanas, foram necessários intérpretes que os identificavam com os nomes cristãos e os nomes africanos. De acordo com um dos réus, quatro escravos – Fierabrás (=Edu ), Joaquim, Ago e Bale, confabularam para matar os brancos. Quando estourou o motim, duas negras do serviço doméstico e um homem ( Nicolas) se opuseram a que os rebeldes entrassem na casa dos senhores. Uma delas, Margarita, lucumi, revela que teve uma grande alteração com seu marido, Joaquim, também lucumi, por também resistir a fugir com seus dois filhos. E que ele disse que “ia matar todos os brancos e que seriam livres”.  Outro depoente, Ayai (= Pascoal), respondeu em sua língua, que a culpa foi dos ladinos. O que Ayai insinua é que os escravos ladinos ao não aliar-se aos escravos boçais (recém-chegados da África), os obrigaram a cometer os atos de violência de que eram acusados. Mas, não foi esta a única tensão étnica no conflito. Diego Barreiro, empregado do cafezal, declarou que, ao ver-se ameaçado pelos insurretos, foi salvo por três escravos de origem gangá. Nem todos os africanos estavam dispostos a submeter-se à hegemonia lucumi.  Segundo vários depoimentos, os dirigentes diziam que seu objetivo era “levar a todos para a terra de negros para serem livres”, Como nada indica que pretendiam voltar para a África, a “terra de negros” estava na própria ilha, provavelmente na região montanhosa a oeste de Havana, uma terra típica de palenques. Ainda pouco desafricanizados, buscavam sua salvação na recriação de uma “sociedade africana” no “monte”, selvagem e inacessível da ilha de Cuba. De acordo com Barreiro, a sublevação foi convocada com as palavras hó=bé, que em língua lucumi significa reunião. Sua declaração insinua a hegemonia política e cultural dos escravos boçais de ascendência ioruba. YORUBA, GELEDE MASKYORUBA, GELEDE MASKSegundo ele, um dos dirigentes, Luís, lucumi, levava um “guarda-sol colorado e aberto” e outros depoentes também mencionaram os “guarda-sóis encarnados abertos”. Na Nigéria, um guarda-sol real vermelho protege os reis iorubás contra o sol e a chuva, eminentemente simbólico, o guarda-sol  significa a “Grande Mãe”.  Ao assinalar que Luís, usou um “vestido e um chapéu de mulher”, o garoto Matias contribui com outro “dado” que vincula a coreografia dos insurgentes à ritualidade iorubá. Na Nigéria, homens mascarados e vestidos de mulher formam o ritual ioruba dos “geledés”. Celebração do poder da Grande Mãe, o geledé se realiza em determinados momentos do ano, por exemplo, ao caírem as primeiras chuvas, mas também em situações de crise da comunidade. O autor alude ainda a dois componentes do mundo africano: a presença de uma ave, como representação do poder real  e a presença de três tambores, o que nos conduz à santeria, religião afrocubana, de origem iorubana.

YORUBA, GELEDE MASK #7, 15.5YORUBA, GELEDE MASK #7, 15.5Para o autor, não existe documentada nenhuma rebelião de escravos de inspiração exclusiva ou predominantemente “jacobina”. Ele toma como exemplo “a revolta dos alfaiates”, ocorrida em Salvador em 1798. Embora alguns escravos tenham participado, toda a sedição foi protagonizada por pardos forros ou livres. O objetivo central do movimento era a abolição da discriminação racial e a criação de um estado republicano ao estilo francês. Outro propósito da rebelião era o abandono da religião católica “pois os portugueses eram fanáticos”. Contudo, a liberdade dos escravos não figurava entre as suas preocupações. Enfim, o problema crucial para eles não era a escravidão, mas a falta de mecanismos de ascensão social e superação do racismo. Por sua vez, o catolicismo, com suas irmandades negras estava entranhado nas práticas da população negra e escrava, sendo um dos suportes para a libertação e a integração, mesmo subalterna, na sociedade local. Para Lienhard, os escravos que aparecem no processo, em sua maioria são pardos urbanos, filhos de pais que haviam nascido no Brasil e completamente “desafricanizados”.  Uma das poucas evidências dos movimentos estudados é que em nenhum deles cabe falar de hegemonia do “jacobinismo. E que, mesmo o movimento negro de São Domingos prefigurou, com a sua combinação de saberes de diferente origem, vários movimentos insurrecionais nos anos e décadas seguintes na América escravista. 

por Jeferson Bacelar
A ler | 20 Maio 2011 | dissidência, escravatura, Espanha, Portugal, rebeldia