Morrer por ser. O racismo estrutural na França contemporânea

Grand-mother, from postmemory | 2019 | Rachida Brahim (cortesia do artista)Grand-mother, from postmemory | 2019 | Rachida Brahim (cortesia do artista)A atualidade francesa tem sido regularmente marcada por casos que envolvem agentes da Polícia na morte de jovens de ascendência africana. Este tema da morte violenta ligada à colonialidade do poder inscreve-se numa longa história. Uma história completamente subterrânea e, no entanto, ensurdecedora, que remonta ao período colonial e que continua a fazer o seu caminho nas nossas mentes, apesar das ablações das nossas memórias e línguas, apesar dos silêncios e das humilhações. Quando essa história ressurge, é para nos contar uma coisa tragicamente banal: não deveríamos morrer apenas por causa do nosso nome, da nossa cara, da nossa aparência. E, no entanto, tudo parece organizar-se de forma a que alguns morram ainda prematuramente unicamente por causa do nome, da cara e da aparência. Como é que esse terrível paradoxo se encaixa na tranquilidade dos nossos gestos quotidianos? Como é que ele se sobrepõe à ideia de paz social orquestrada pelos nossos organismos estatais? Como é que consegue ser compatível com as nossas instituições democráticas?
 
Só a noção de racismo estrutural permite compreender este paradoxo no seio do qual coexistem a proclamação do direito à vida e o facto de deixar morrer alguns de nós. O racismo estrutural veicula a ideia de uma guerra insidiosa que persiste sob os ideais republicanos de igualdade, de fraternidade e de liberdade e que coloca em desvantagem todos aqueles que foram rotulados de “fora do normal” e problemáticos. O racismo estrutural expressa a ideia de uma sociedade que seria fundamentalmente racista, de uma sociedade que seria, antes de mais, um sistema de classificação onde os critérios de classe, de género e de raça permitem inferiorizar e expor a uma violência específica todos aqueles que acumulam os traços considerados como mais depreciativos. O racismo estrutural designa, em suma, um sistema que permite a produção e a manutenção das desigualdades e das violências produzidas pela construção racial para além da sua denúncia.
 
Pessoalmente propus a hipótese que o direito assumia um papel central na produção e na manutenção dessas desigualdades. Interessei-me por um período determinante em França, que se situa entre os anos 1970 e 2000. A chamada lei Pleven, adotada em 1972, é considerada o pilar da legislação anti-racista francesa. No entanto, foi necessário esperar até 2003 para que a França adotasse uma lei que permitisse ter em conta “a intenção racista” de um crime. Desde essa data, e apenas sob certas condições, a motivação racista constitui uma circunstância agravante no que respeita a infrações de tipo criminal. Assim, durante esse período de cerca de trinta anos, enquanto a questão dos crimes racistas ocupava a esfera militante e da comunicação social em intervalos regulares, a noção de “motivação racista” estava, pela sua parte, ausente da esfera jurídica. Duas conceções de uma mesma realidade coexistiram nesse período: por um lado, a realidade do grupo afetado por essas violências e, por outro, a emanada da legislação francesa. Se, para as pessoas mobilizadas, a natureza racista das violências era inquestionável, pelo contrário para os legisladores a própria noção de motivação racista era regularmente rejeitada.
 
Em França, as lutas da imigração e dos bairros populares foram conduzidas por diferentes gerações: a geração dos que tinham imigrado durante o período colonial e logo após as independências, assim como a geração dos filhos destes imigrantes, nascidos em França nos anos 1980 e 1990. As ações coletivas levadas a cabo por estas duas gerações assumiram formas muito variadas que, se inscrevem em diferentes contextos. Apesar disso, o objeto das lutas manteve-se sensivelmente idêntico ao longo dos anos. Tratou-se de protestar contra as desigualdades denunciando a maneira como o racismo impregnava as diferentes esferas da vida social: do direito de permanência, do trabalho, do alojamento, da educação até à saúde. A questão dos crimes racistas contem, igualmente, semelhanças entre os diferentes movimentos. Com efeito, a denuncia dessas violências e do seu tratamento tem sido uma constante no seio dessas mobilizações.
 
Para se ter uma ideia um pouco mais precisa da evolução desta violência, no âmbito da minha tese de doutoramento procurei construir uma base de dados recenseando os actos denunciados como racistas entre os anos 1970 e finais de 1990. Registei setecentos e trinta e um casos. Os arquivos policiais não são facilmente acessíveis e existe um grande risco de os dados oficiais serem incompletos, mas permitem chegar a algumas conclusões. No que diz respeito às diferenças, e em primeiro lugar do ponto de vista das vítimas, os alvos são variados: desde indivíduos isolados, grupos de indivíduos, edifícios públicos representando o Estado Argelino até bairros, centros de acolhimento para refugiados e cafés frequentados por Magrebinos. A principal diferença reside no facto de que a partir dos anos 80 “os jovens das periferias” árabes ou negros substituem “os trabalhadores árabes” que eram alvo de violências policiais durante a década precedente. Para além disso, quanto mais se avança no tempo, mais o Islão se torna um alvo.
 
No que diz respeito às continuidades, pude reparar que, independentemente da década, a violência pode manifestar-se de três maneiras. Em primeiro lugar, estão as violências políticas praticadas por pessoas que agem em nome da sua proximidade ou adesão às teses da extrema direita. Estes atos violentos manifestam-se sob a forma de atentados, agressões ou ataques punitivos. Há, em segundo lugar, as violências situacionais, que acontecem durante a vida quotidiana. Para o autor dos factos, o objetivo é geralmente o de proteger o que ele considera ser sua propriedade, no sentido lato e subjetivo do termo; pode tratar-se da sua casa, do seu comércio, dos membros da sua família, de uma mulher, de uma comemoração nacional ou simplesmente da sua tranquilidade. Nestes casos, a passagem ao acto criminoso explica-se pela presença de dois factores: por um lado, o incómodo ou a ameaça que a presença de um Magrebino representa para o agressor e, por outro lado, a ideia de um bem a proteger. Por fim, estão as violências disciplinares, mais conhecidas como violências policiais, que são associadas, desde os anos 1970, a crimes racistas. A noção de disciplina é interessante porque nos permite ver o que está subjacente a essas violências e, em particular, o facto de se usar a força ilegalmente com o objetivo de responder a um desejo de coerção, a uma vontade de disciplinar corpos classificados como desviantes.
 
Desde os anos 1970, os militantes têm vindo a denunciar estes crimes, mas a grande maioria dos processos têm vindo a ser encerrados com penas suspensas, absolvições ou arquivamento. Em termos gerais, o argumento dos militantes é que a etnia ou a raça – por outras palavras, o facto de desqualificar certas características de um ser humano para estabelecer um relacionamento de poder – mata duas vezes. A primeira violência, física, consubstancia-se no golpe que foi infligido a um indivíduo por causa da categoria étnica que lhe foi atribuída. A segunda violência, psíquica, é uma consequência do tratamento penal que nem sempre consegue colocar o racismo em julgamento.
 
De facto, se a raça mata duas vezes, é porque ecoa um movimento duplo realizado pela lei e do qual os grupos minoritários são prisioneiros. O primeiro movimento corresponde ao primeiro ato de racialização e assenta numa abordagem ligada ao direito de feição particularista, segundo o qual os indivíduos são categorizados segundo critérios étnicos. Desde a descolonização, os discursos públicos e da comunicação social têm vindo a definir e a participar numa série de marcadores e participaram numa categorização racial, associando frequentemente pessoas com certas características físicas ou culturais a um problema público, o do alojamento, do desemprego ou da insegurança. Estes discursos têm por alvo a questão migratória e enfatizam a natureza irredutível das diferenças entre africanos e europeus. A abordagem particularista traduz a ideia segundo a qual leis particulares devem ser adotadas para governar os problemas públicos em relação aos quais esta parte específica do corpo social é associada. Durante o período estudado, nas políticas públicas relacionadas com a questão da migração, uma série de disposições parece ter resultado dessa necessidade: o fechamento das fronteiras em 1974, que visava a imigração pós-colonial, as políticas de retorno direcionadas aos argelinos no final da década de 1970, as leis de Pasqua-Debré das décadas de 1980 e 1990, que dificultavam as condições de entrada e de permanência, os regulamentos relativos à construção do espaço Schengen ou até as políticas urbanas. Por sua vez, as pessoas associadas a um problema em virtude de marcadores étnicos sentem frequentemente que são remetidas para uma diferença imprópria que justifica o tratamento particular a que são submetidas. Essa categorização racial expõe-nas a uma violência específica na esfera institucional e interpessoal: discriminação, agressão ou assassinato.
 
E é precisamente no momento em que estas vítimas denunciam esta violência específica que intervém um segundo tipo de direito: um direito universalista que perpetua as categorias raciais e as sucessivas violências, um direito cego em relação ao processo de racialização inaugurado paralelamente pelo direito particularista. Esta operação atinge o seu paroxismo no âmbito da legislação antirracista. O percurso jurídico da noção de “motivação racista” é revelador nesse sentido. Ele demonstra como, no âmbito das quatro leis votadas de 1972 a 2003, em todas as ocasiões os parlamentares recusaram-se a definir esta “motivação” escudando-se na ideia do direito comum, ou seja, na ideia de que o direito deve ser igual para todos e, assim sendo, era impossível criar um direito específico. Essa falta de qualificação de “motivação racista” tem como regular resultado a atribuição de penas suspensas, absolvições ou de arquivamento de processos. O direito universalista consiste, portanto, na aplicação de regras comuns a grupos previamente diferenciados, ou seja, na universalização dos indivíduos no momento exato em que denunciam a violência produzida pelo particularismo. Enquanto o particularismo cria a raça, o universalismo mantém-na, ocultando-a. Esta combinação entre particularismo e universalismo faz do racismo mais uma estrutura do que um sentimento que a nossa razão poderia aniquilar. É o fruto de uma relação de poder permanente e duradoura, na qual a continuidade dos privilégios concedidos a alguns assenta na reprodução de desigualdades que penalizam os outros. Garantir essa continuidade requer a criação de categorias excludentes graças ao particularismo e a sua manutenção, apesar das pretensões de igualdade expressas através do universalismo.
 
Esta constatação extremamente amarga que condena alguns a morrer incessantemente pode parecer ter como desfecho o desespero. Mas não é bem assim. Tentai ir mais longe. Tentai imaginar a energia que este desespero é capaz de gerar.

 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Translation:  Fátima Rodrigues

por Rachida Brahim
A ler | 18 Janeiro 2020 | frança, Memoirs, morte, racismo, violência