“Menino, não fala política”: o país que não se cala na obra de Luís Santos
(Imagens do artista gentilmente cedidas pela Galeria Reservoir.)


A arte de Luís Santos resulta de um processo de criação complexo, que envolve escuta, observação e abstração do bulício urbano, permitindo um olhar panorâmico sobre a sociedade e uma imersão nos sons interiores. Longe de ser uma prática solitária ou alheia ao outro, a sua arte transforma o caos social em objecto artístico, condensando mensagens e movimentos que emergem de vozes muitas vezes incompreendidas, mas que não se resignam ao medo.
O fundamento do seu trabalho assenta na acção humana e na atitude que impacta, antes de mais, sobre os outros. Direitos humanos, liberdades, clima e meio ambiente, questões de género: estes temas tornam inevitável a abordagem proposta pela instalação que Luís Santos ironicamente intitulou Menino, não fala política, apresentada na galeria RESERVOIR, na Cidade do Cabo, África do Sul.
Para uma compreensão mais profunda da sua obra, é necessário percorrer o processo histórico de Moçambique, principal referência do seu discurso político e estético.
Moçambique conquistou a independência de Portugal em 1975. Assim, há 28 anos, quando a população ainda lambia as feridas e se contorcia sob a devastação causada pela Guerra Civil (1976–1992) que opôs a RENAMO à FRELIMO, e que culminou na assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), instalou-se um sistema político democrático, com os poderes executivo e legislativo sufragados pelo voto popular. Luís Santos, nascido em 1993, é, portanto, cidadão de um país independente, sem guerra, mas ainda num processo democrático embrionário.
As primeiras eleições multipartidárias realizaram-se em 1994. A partir daí instala-se o carma de um país marcado por pequenos e grandes tumultos entre ciclos eleitorais, numa permanente tentativa de fundamentar o chamado poder popular, expressão tornada célebre por Samora Machel e mais tarde amplamente divulgada pelo rapper Azagaia: “o povo é que está no poder”.
Trata-se de uma experiência democrática que emerge do conflito, tal como a própria Nação: dos conflitos tribais pela conquista de territórios, à ocupação colonial, passando pela Luta Armada de Libertação Nacional. Violência, contestação, proibição e silêncio formam o cordão umbilical com que Moçambique ainda se debate, na tentativa de alcançar liberdades que permanecem incompletas e a utopia de uma Nação que possa realmente existir, como anteviu José Craveirinha:
Eu!
Homem qualquer
cidadão de uma nação que
ainda não existe.
(CRAVEIRINHA, Xigubo, 1999)Não tendo vivido diretamente o barulho das armas, Luís Santos cresceu, ainda assim, num país ferido, traumatizado, fustigado por uma guerra que vitimou mais de um milhão de pessoas. O jogo democrático que se seguiu construiu-se sobre a desconfiança mútua, com recorrentes ameaças de instabilidade político-militar. Exemplos disso foram os períodos pós-eleitorais de 2009 e 2014, que conduziram a novas “negociações” e a discursos cíclicos de reconciliação nacional.
As eleições gerais de 2024 abriram um capítulo inédito: apesar da tensão pós-eleitoral, não houve retorno à guerra nem incursões armadas. Ainda assim, as ruas, sobretudo de Maputo, foram ocupadas por manifestações populares que deixaram marcas. Para além do acto eleitoral de 9 de Outubro, escutaram-se vozes diversas: de uma geração adulta desiludida com um desenvolvimento que tarda, e de uma nova geração que cresce sem um projecto claro de Nação, ao contrário daquela que, no pós-1975, “sonhou um país”.
Essa geração de jovens, não tão jovem num país cuja esperança média de vida ronda os 61 a 63 anos, cresceu a testemunhar a depressão de pais e avós e exige respostas mais urgentes. Estão em causa o acesso a serviços públicos básicos, a exploração de recursos naturais, os milhões anunciados que não chegam à mesa da maioria das famílias e a profunda crise de confiança na classe política. Este desgaste da política tradicional não é exclusivo de Moçambique e ecoa em diferentes geografias, da Primavera Árabe aos recentes levantamentos no Sri Lanka, Nepal ou Madagáscar.
É neste contexto que Luís Santos vive e cria. Para o artista, a arte não pode ser um exercício isolado do meio social. A arte é sobre pessoas e sobre o que elas vivem, e essas pessoas não podem ser excluídas do resultado. Ainda assim, o artista define com clareza a forma como pretende expressar essa crónica de vidas complexas, muitas vezes diluídas numa globalidade que ofusca as singularidades individuais.
A sua obra revela um artista que, em plena angústia colectiva, encontra na arte um espaço de liberdade, denúncia e questionamento. O projecto artístico desenvolve-se numa lógica de introspecção e de imersão crítica nas narrativas estabelecidas. Em tempos de silenciamento, a arte assume a força do grito, ainda que envolto na subtileza do belo. O inconformismo emerge face à Era da Informação, em que humanos e máquinas disputam protagonismo num planeta em ebulição: crise política, crise ecológica e climática, processos de descolonização identitária e a permanente questão das liberdades e dos direitos humanos.
A instalação Menino, não fala política organiza-se em torno de quatro elementos: esculturas de pés e dedos em cerâmica vidrada, bancos de madeira, chapas de ferro e arames, e papel.

Na cerâmica, produzida a partir dos rios da província de Maputo e misturada com pó de vidro obtido na África do Sul, encontra-se a essência da exposição. Dela nascem 51 esculturas de pés, todos esquerdos, moldados de forma a sugerir movimento. O número remete para o artigo 51.º da Constituição da República de Moçambique, que consagra o direito à liberdade de reunião e manifestação.
Os pés esquerdos, sem distinção de género, evocam os movimentos populares associados às ideias de esquerda e à noção de poder do povo. Os dedos dos pés sugerem o andar silencioso, pela ponta dos dedos: “xê, menino, não fala política”. Marchar sem se fazer ouvir. Ou agir como os bajuladores, os “lambe-botas”, que insistem em elogiar o rei mesmo quando ele vai nu.
Os pés e os dedos funcionam como portas de entrada para a complexidade social que envolve o artista e preparam o olhar para além do belo. Os silenciamentos, as amputações das vozes incómodas, sobretudo dos anónimos sem horizonte de futuro, retiram-lhe o sossego. Não é possível falar apenas de amor, beijos ou flores quando corpos suam no alcatrão quente, descalços, em busca de um lugar melhor.
São corpos que votaram e, por isso, reivindicam o direito de apontar o dedo a quem lhes deve serventia. É nessa direcção que apontam os dedos indicadores manchados de tinta, símbolo do exercício soberano do voto.
A madeira dos bancos provém de uma única mafurreira, árvore presente nos quintais e nas paisagens moçambicanas. Os bancos funcionam como palanque, palco e símbolo de superioridade. É de cima que se fala às massas ou se ignora quem está por baixo. Entre os suportes, pés descalços sustentam o peso do poder, enquanto outros tentam derrubá-lo. Essa é também a sina de quem se eleva.
As chapas de ferro e os arames surgem como corpos estranhos, aparentemente discretos, mas impossíveis de ignorar. A ferrugem e as formas insinuam leituras dentro do panorama da instalação. Os cartazes, por sua vez, atribuem palavras ao que o movimento dos corpos deixa subentendido.
Quem acompanha o percurso de Luís Santos reconhece a sua versatilidade, a minúcia no tratamento dos materiais e a tentativa obsessiva de dar forma ao caos. Num tempo em que a tecnologia sugere simplificação e automação, essa escolha afirma-se como um manifesto pela arte enquanto uma das mais elevadas formas de expressão humana.
A instalação constrói um cenário do mundo contemporâneo: um caos com ordem aparente, controlado por uns e incontrolável para outros. Vivemos mais de reacções do que de acções, num ciclo de guerras e horrores humanitários, anestesiados pelo entretenimento do extrativismo tecnológico, como observa Laila Lalami: “Techno-capitalism has infiltrated our lives to such an extent that our only real break from it comes when we sleep.” Contra essa corrente, os mais frágeis dispõem apenas do próprio corpo e da miséria para enfrentar as balas.
Pelo modo como expõe os subterfúgios limitativos das nossas sociedades, pela escuta das vozes que gritam em surdina e pela capacidade de lhes dar espaço e densidade, Luís Santos afirma-se como um artista que compreende o seu tempo. Talvez por isso, tão jovem, já seja uma certeza na cena artística moçambicana, pronto para ocupar o seu lugar no mundo.



