Literaturas emergentes, identidades e cânone

Understanding semiotic interactions in colonial situations requires a diatopic (or pluritopic) position of the understanding subject.
Walter Mignolo

conceitos e pre(conceitos)

O conceito de literaturas emergentes surgiu nas últimas décadas como consequência das chamadas teorias pós-coloniais e alargou-se, por influência da poderosa academia norte-americana, tanto às denominadas literaturas de minorias (étnicas, de género, de orientação sexual), como às literaturas formadas no interior dos processos de colonização e descolonização, independentemente das características destes. Embora não recuse o interesse de um corpus teórico subjacente às reflexões sobre questões comuns às literaturas produzidas no quadro das diferentes colonizações, não posso deixar de concordar com algumas das reservas na sua aplicação, nomeadamente o facto de estas teorias terem os seus próprios limites e de correrem o risco de virem a ser cúmplices da “imaginação colonial”, ao representar de forma totalizante as literaturas que emergiram de situações coloniais, independentemente da conjuntura histórica em que se desenvolveram. Prefiro pois entender este conceito a partir de uma das suas componentes estruturantes, isto é,  dos processos de ruptura (na maioria engendrados por rupturas políticas) que acabaram por abranger o campo artístico. Há ou houve literaturas emergentes num dado momento histórico, em que contradições estéticas / ideológicas criaram condições para a ascensão de novos modelos culturais. De qualquer modo,  o conceito não é pacífico e presta-se a aplicações variadas,  muitas vezes marcadas pelos pressupostos do politicamente correcto.

 

Se estruturarmos cronologicamente uma das séries possíveis - porque existem evidentemente outras - para as grandes rupturas estéticas operadas desde o século XIX,  poderemos estabelecer algumas etapas:

- Com o Romantismo e o enquadramento ideológico que lhe deu a Revolução Francesa de 1789, a escrita literária passou a estar dominada pela necessidade de originalidade. Paralelamente, como consequência das autonomias políticas, as literaturas nacionais europeias passaram a reclamar a especificidade que as legitimassem como suporte identitário, o que ocorre ainda hoje em algumas formações culturais (Irlanda, Galiza, Catalunha, País Basco, etc).

- Ainda no século XIX, os países saídos das colonizações portuguesa e espanhola no continente americano, iniciaram processos similares de afirmação cultural, com características nativistas, culminando com a integração de elementos originários dos modernismos  europeus, de que é paradigma o Movimento Antropófago brasileiro nos anos 20.

- Mais tarde, e noutras esferas geográficas, a independência da Índia,  em 1947,  forjou nos dois países em que se dividiu o território - Índia e Paquistão - necessidades identitárias relativamente à cultura britânica.

- Num outro quadro político, catalisado pelas teses marxistas-lenistas, a Revolução Russa de 1917, arrastou consigo concepções culturais que se tornaram hegemónicas - o realismo socialista -  e que consagravam a cultura proletária,  contra a considerada cultura decadente burguesa e,  posteriormente, a rasura das literaturas nacionais ‘engolidas’ pela  poderosa literatura soviética.

- A partir de 1949 foi a China liderada por Mao Tse Tung quem, desenvolvendo o  modelo do realismo socialista, consagrou a visão maoísta de arte revolucionária.

 

As independências africanas, iniciadas em 1957 com a independência do Gana, não só foram tributárias deste passado histórico, orientado para a ideia de revolução social, como implicaram esta herança nos respectivos movimentos culturais e literários, concretizada em rupturas relativamente às literaturas da ex-potência colonial. Estas rupturas instituíram a tendência de autonomia por intermédio de algumas dominantes temáticas, tendentes a recuperar elementos históricos forjadores das novas identidades. Pode considerar-se como um dos paradigmas dessa postura, a obra ficcional do escritor nigeriano Chinua Achebe, o qual  considera ser um dos desígnios do romance africano o tornar-se o instrumento formal da reinvenção de uma cultura africana, de uma nova comunidade nacional, face à perda que a colonização representou.

 

Colonisation was the most important event in our history for all kinds of angles (…) most of the problems we see in our politics derive from the moment when we lost our initiative to other people, to colonisers.(…)1           

 

Mas, como salienta Arjun Appadurai, a propósito da forma como o cricket se ‘indianizou’, “la décolonisation, pour une ancienne colonie, ne consiste pas simplement à démanteler les habitudes et les modes de vie coloniaux, mais aussi a dialoguer avec le passé colonial.”2  Ora esse diálogo com o passado colonial tem produzido, no campo literário, situações discursivas hoje geralmente aceites como híbridas, sob influência do posicionamento teórico de  Homi Bhabha, que as caracteriza  como “(…) complex strategies of cultural identification and discursive adress that function in the name of the ‘people’ or the ‘nation’(…)”3
Este conceito adquire um significado mais amplo, quando associado aos de transculturação e de transtextualidade, porque possibilita a leitura do corpus literário produzido por/contra os sistemas literários trazidos pela colonização, como transformações e apropriações das suas formas, com utilização  de estratégias específicas que assim respondem à necessidade de forjar novos sistemas. São essas estratégias que, deixando entrever culturas diversas (orais e escritas), textualizam a nação, na perspectiva em que Benedict Anderson4  encara a construção dos elementos de pertença a um espaço nacional.  

 

corpus literário nacional
Esse foi um processo evolutivo que possibilitou que ao longo de cerca de 100 anos a “imaginação colonial”5 fosse cedendo o lugar à “imaginação nacional” e seja por isso possível perceber hoje a coerência e coesão dos paradigmas que em geral orientaram, desde o princípio do século XX, a produção escrita nos países africanos submetidos à colonização europeia, no caso presente à  portuguesa, e que em Moçambique me parecem  estruturados grosso modo, em torno dos seguintes conteúdos:

 

Ser Africano e Ser Europeu (Proto-nacionalismo) - Este primeiro paradigma está representado em Moçambique pela actividade jornalística e literária desenvolvida a partir dos jornais O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974) nas décadas de 20 e 30 e pela poesia de Rui de Noronha.6

Ser Africano vs Ser Europeu (Negrismo/ Negritude) - Na problematização do Ser Europeu,  visíveis nas primeiras manifestações poéticas de Orlando Mendes,  podem-se reconhecer alguns dos tópicos da poesia negrista de outras latitudes, embora um trabalho de desconstrução as possa identificar como formas de pré-negritude. Horizontalmente este tipo de Negrismo vai cruzar-se com as utopias pan-raciais de grande parte da poesia inicial dos poetas da geração dos anos 50 (Fonseca Amaral, Noémia de Sousa, Rui Knopfli) extensivas a Godido, de João Dias.  Esta tendência utópica transforma-se progressivamente num conjunto de valores de grupo exibidos como contra-discurso, criador de uma nova ordem, instituindo-se por isso em ideologia. Este movimento é coroado pela  poesia negritudinista de José Craveirinha representada em Chigubo (1964).

Ser Nacional vs Ser Universal (tendências variadas pós-independência) - A  filiação numa estética dita universal, por parte das recentes gerações de escritores, embora se possa também ler nacional/regional, mas não necessariamente étnica. Isto é,  parece que o percurso temático – e,  a um outro nível,  o discursivo - desta literatura se orienta no sentido da transformação da natureza do diálogo com o passado colonial,  de tal modo que os seus elementos estruturantes se vão naturalizando ou “indigenizando”, para usar a terminologia de Appadurai a propósito da indianização do cricket, desporto arqui-britânico à partida.

Esta consequência pareceria conferir ao corpus literário uma consistência ontológica que lhe garantiria  por si só a existência, se não considerássemos o facto de, na definição de sistema literário nacional,  não intervirem  apenas o conjunto de obras produzido. Na verdade, o desejo (consciente ou não) de nação vai sedimentando temas e formas discursivas, como parte de um novo sistema literário, mas a sua existência só é  assegurada por um  reconhecimento posterior  pelos diversos elementos de recepção - crítica, reconhecimento nacional e internacional, prémios, edições nacionais e traduções - e que, integrados no sistema de ensino - (curricula, programas, manuais) reproduzem conceitos e valores que, actuando em cadeia, convergem para a instituição do novo cânone, a literatura nacional.
É pois sobre estes  elementos de  recepção que desejo orientar esta reflexão, devendo antes de mais, como sugere Mignolo (1991), tornar explícita  a posição a partir do qual a mesma se processa.  

 

Num cenário empírico, incrustam-se alguns elementos constantes no imaginário imposto pela História, que sucessivamente se vão articulando à volta dos ‘perigos’ que ameaçam a ‘nação’. Cenário paradoxalmente desarticulado, com pontos de referência contraditórios, aberto neo-liberalmente a qualquer investimento ideológico, sem capacidade ou vontade de produzir resposta à sua amplificação pelas auto-estradas da informação. Este cenário parece compor-se de uma diversidade de atitudes, que vão das nacionalistas e partidárias obliteradas até recentemente -  e subitamente ressurgidas -  às pragmáticas que se entrecruzam e colocam na concorrência o futuro da vida cultural do país, incluindo a literária. Atitudes cuja origem não é sempre localizada, mas que se encontram disseminadas e são reconhecíveis:   

- nas  políticas de ajustamento estrutural impostas pelo FMI/ Banco Mundial, na globalização crescente, na cada vez mais apertada malha de condições impostas pelos parceiros/ doadores na definição de projectos de investigação e consequente enfraquecimento das instituições estatais. O Estado, com as suas instituições fragilizadas, tem dificuldade em manter políticas de educação e de cultura consistentes, nomeadamente a criação de um plano nacional de leitura no que é des(ajudado) pelas múltiplas, diversas e por vezes contraditórias políticas de ajuda;

- na prioridade dada ao ensino básico nos últimos quinze anos devido à quase total destruição da sua rede durante a denominada  guerra de destabilização, dos dezasseis anos ou guerra civil e relativo abandono do ensino secundário, nomeadamente o apetrechamento das bibliotecas escolares;

- nas condições salariais dos professores e consequente atracção pelo duplo emprego no ensino privado;

- nas sucessivas vicissitudes das universidades públicas - principalmente a Universidade Eduardo Mondlane - que continua a ser o principal centro de recrutamento de docentes universitários - as quais passaram a viver o paradoxo da resposta ao mercado,  no momento em que começam a ter condições científicas para  produção de saber, ficando a investigação submetida a condicionamentos primariamente económicos ou a desígnios políticos menos transparentes;

- na  comunicação social, principalmente a  imprensa escrita preocupada em perseguir a vida política e económica da nação, deixando de lado a esfera cultural e educativa, ou reservando-lhe o papel de derivativo;

- nos segmentos da sociedade (a chamada burguesia ou classe média/ alta em formação, onde incluo a classe política), que sustenta um ensino privado de elites em Maputo, fora do sistema nacional de educação (escolas dos sistemas americano, francês, português, sul-africano, etc.), num quadro que embora legal se apresenta bizarro, dado que a sua frequência é maioritariamente de alunos moçambicanos, oriundos desses grupos sociais. Esta seria uma situação in(significante) dentro do quadro do cosmopolitismo que caracteriza a capital de Moçambique se não coincidisse com algum discurso nacionalista, por vezes chauvinista e mesmo xenófobo proveniente dos mesmos grupos sociais. Este facto vem revestir a relação entre esses grupos, com influência ideológica no Estado, e as políticas culturais, que este poderia / (deveria?) instituir, de um potencial simbólico em que se movem contraditoriamente o discurso nacionalista/ patriota e as opções económicas neo-liberais. Não sendo determinante para a situação que pretendo caracterizar, é contudo um sintoma do desfasamento entre um discurso geral aparentemente integrado no desejo de formular a nação (a frequência com que os lexemas identidade, moçambicanidade, raízes, pátria amada, orgulho moçambicano, aparecem, nos últimos anos, em formulações discursivas são disso sinal)  e uma prática assente em objectivos que contradizem esse desejo;

- nas escolas, cuja falta de orientação pedagógica decorrente de uma consistente política nacional de ensino e de cultura, encontra as soluções mais variadas que, contudo, parecem convergir num aspecto: o corpus literário moçambicano passou a ter um reflexo descontínuo no ensino;

São estes elementos que, em conjunto ou associados, disseminam um leque de posturas discursivas que legitimam a desvalorização do campo cultural em geral, de onde decorre o efeito de invisibilidade da literatura nacional e dos valores a ela associados. Sintomaticamente Francisco Noa faz eco desta situação num texto recente, com características de manifesto, intitulado “A riqueza das nações”, de que transcrevo uma parte substancial, por me parecer que reflecte o incómodo das novas gerações de intelectuais moçambicanos que, não tendo - felizmente - vivido em pleno a situação colonial, isto é, sendo de alguma forma ‘filhos da independência’ e da sua dinâmica de orientação socialista  inicial, não se revêem na nova conjuntura política e económica, trazida pela economia de mercado, ainda que dela possam parcialmente beneficiar, o que dá a medida dos efeitos  gerados pelas factores que tentei caracterizar como conducentes à desvalorização do campo cultural:

(…) meter no mesmo saco, ciências sociais, livro, cultura (refiro-me a cultura como edificação), como alvos a abater, implícita e explicitamente, é bem um dos grandes sintomas de ligeireza do nosso tempo e da tirania do materialismo pós-industrial e rasca. E é também revelação do temor que se tem em relação à palavra enquanto expressão de ideias livres, plurais, dinâmicas, construtivas, inconformadas, diversificadas, questionadoras. Sobretudo, enquanto afirmação de sabedoria e de um apurado sentido crítico.
É (…) com lúcida frontalidade, que o historiador congolês Elikia M´Bokolo, numa entrevista reproduzida pelo semanário Savana (23/02/2007), reconhece que não existe propriamente uma intelligentsia real, em Moçambique, capaz de, à semelhança de outros países africanos como o Senegal, o Gana, o Quénia e a Nigéria, debater os interesses do país, tomar posições e fazer avançar as suas resoluções.
(…) Basta que nos detenhamos a olhar para o espaço  público e para espaços que deviam ser verdadeiras fábricas de soluções e de conhecimento, caso das universidades, e verificar como todos eles estão invadidos pela incompetência, o aventureirismo, o analfabetismo funcional, a subserviência, o arrivismo, a impostura intelectual e uma assustadora ausência de profissionalismo indiciando uma insuportável tibieza no que concerne a posturas, atitudes, valores e exigências.
Entre muitas coisas que se nos vão impondo, a cada um e a todos, o que precisamos, mesmo, é de produzir muito pensamento, muita investigação, muita imaginação (sobretudo muita imaginação para nos sabermos reinventar a nós próprios e aos nossos destinos), muita cultura, materializados em ideias, arte, ciência, acções concretas e livros infindáveis, belíssimos e úteis. (…)7  

corpus - identidade -  cânone

Chegados a este ponto, poder-se-á pensar que estou a augurar para a literatura moçambicana uma espécie de futuro escatológico, mas não é nesse sentido que caminha esta reflexão. O que pretendo demonstrar é que a sua desvalorização, principalmente no ensino, está associada a essa actual  ausência de pensamento crítico referida por Noa, o que tem contribuído para que a discussão sobre o campo literário, tenha sofrido oscilações que a levaram  a um percurso descendente,  do ponto de vista de um pensamento consistente, inverso ao percurso ascendente da sua produção: do campo rigidamente teórico, onde imperou a aplicação estrita dos princípios do realismo socialista, na sua versão maoísta,  ao campo do senso comum, onde não há teoria reconhecida, mas constatações empíricas.

Para melhor explicitar o meu argumento vou centrar-me na forma como a identidade literária tem sido discutida e (in)definida desde o momento em que, tendo Moçambique alcançado a independência, se colocou a questão das instituições nacionais no quadro de um novo aparelho de Estado e o poder político percebeu o valor e o papel da instituição literária. Estou a falar do Partido Frelimo que a partir de 1975 passou em regime de Partido único, com orientação declarada marxista-leninista a partir do seu III Congresso, a governar os destinos do país, dentro das normas e princípios do sistema conhecido como centralismo democrático.  
Entre os finais dos anos setenta e princípios de oitenta, assistiu-se à construção de algumas ideias que intervieram eficazmente na definição política de literatura nacional, como resultado da influência ideológica da Frelimo na então intensa vida cultural do país. Salientava-se o papel da literatura – com relevo para a poesia – na construção de uma ideia de nação. Esta era modelada pela experiência da luta armada e das zonas libertadas. Numa concepção bastante aproximada do realismo socialista jdanovista, o escritor só era legitimado pela praxis revolucionária, elevando-se então à categoria de símbolo nacional, tal como a bandeira, o hino, a moeda, a forma de vestir ou o passaporte, todos elementos sígnicos da nação emergente. Como consequência desta concepção, à ideia de autor nacional (e por extensão à sua produção artística), passou a  estar associada a de território nacional o que determinava a ‘condenação’ ou retirada da cidadania literária aos escritores que, por várias razões (algumas pessoais),  não residiam ou tinham deixado de residir no país. Externamente esta concepção, embora com algumas variantes foi perfilhada por estudiosos como Manuel Ferreira e Alfredo Margarido. Como reforço desta perspectiva, assistia-se à consagração dos escritores cuja atitude ideológica se integrava latu sensu na prática revolucionária da época, tendo essa integração assumido graus variados desde a completa identificação com todas as formas dessa prática (caso de Rui Nogar ou de Orlando Mendes) até atitudes cépticas ou críticas das mesmas (caso de José Craveirinha, Leite de Vasconcelos ou Heliodoro Baptista). Numa espécie de plataforma comum assistiu-se, por iniciativa do Estado, à publicação de inúmeros autores cujos livros não tinham sido publicados no período colonial, por razões políticas, como Rui Nogar ou José Craveirinha, ou de outros com orientações estéticas diferenciadas como Orlando Mendes, Albino Magaia ou Heliodoro Baptista e Luís Carlos Patraquim. Num grau superior assistiu-se à consagração política de alguns escritores, que encarados (ou assumindo-se) como intelectuais orgânicos se viam revestidos de funções partidárias ou reconhecidos  através de  condecorações  e homenagens.

Foi esta, portanto, a primeira forma de equacionar a questão da literatura nacional que, com todas as reticências que hoje possa suscitar, foi definitiva para o (re) conhecimento da existência de um corpus literário nacional que, integrado no sistema de ensino, fortemente controlado pelo Estado/Partido. O paradigma desse novo cânone é representado pela colectânea de contos de Luís Bernardo Honwana Nós matámos o cão tinhoso8, obra de fortuna considerável desde a sua primeira edição e que ficou consagrada,   nessa altura, nos programas de vários níveis de ensino.

 

Em 1982 cria-se a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), cuja designação e Estatutos ainda relevam dessa perspectiva e da sua de forte componente nacionalitária. Segue-se em 1984 a fundação da revista Charrua, no interior da AEMO, liderada pelo grupo de jovens que viria a imprimir nova dinâmica à vida literária do país. Estes dois factos possibilitaram a abertura de um espaço de discussão que escapava ao esquematismo dos pontos de vista formais associados, directa ou indirectamente,  à orientação ideológica do Partido Frelimo, ainda que alguns dos seus quadros de alto nível – Fernando Ganhão, Júlio Carrilho, Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, –.participassem na vida da AEMO, com uma atitude menos paternalista  que o seu estatuto, e alguns preconceitos,  fariam hoje supor. Convém relembrar que o então  Secretário-Geral, Rui Nogar,  funcionava como garante de uma certa ‘pureza ideológica’ em que convictamente acreditava, mas que o Presidente da Assembleia Geral, José Craveirinha, dotado de um personalidade rebelde e, por vezes, provocatória acabava por estabelecer com ele uma tensão que estimulava a emergência de uma  diversidade de pontos de vista nem sempre conciliáveis.

 

Ainda assim, esses pontos de vista tinham um denominador comum: a definição da literatura moçambicana a partir de valores intrínsecos. A contribuição para esta definição já não provinha do Estado mas sim dos próprios implicados, escritores ou críticos,  cuja heterogeneidade era visível,  quer em debates realizados na AEMO, quer em artigos de opinião e debates nas páginas do Suplemento de Artes e Letras do semanário Tempo, importante espaço de divulgação e promoção cultural e artística na década de 80.9 Assiste-se então à defesa de uma  autenticidade fosse ela temática ou discursiva, alargando-se o leque de opiniões, ainda que prevalecesse a tendência para incluir ou excluir quem não coubesse no figurino julgado mais certo.
Um dos pontos altos desta discussão foi gerado pela publicação em 1986 de Vozes Anoitecidas de Mia Couto, tendo dado origem a uma polémica com vários intervenientes. Essa polémica marcou, quanto a mim, a transição de uma reflexão fundamentada nos princípios rígidos do realismo socialista, para o confronto entre posicionamentos diversificados marcados uns pelo senso comum e outros por diferentes perspectivas  teóricas,  mas que começavam a afastar-se dos pressupostos dirigistas iniciais. Parece-me que,  mesmo assim, deu consistência a uma concepção de literatura assente em pressupostos essencialistas, ainda hegemónica em alguns círculos da criação e da  recepção literárias.

 

Mais do que o conteúdo da polémica, o que me interessa sublinhar aqui é que ela revela o poder dos mecanismos de recepção dos textos literários em situações marcadas pelo factor emergente ou pós-colonial, onde a fronteira entre o que é do próprio e o que é do outro se articula de forma ambígua e prolonga,  até aos interstícios da memória, o diálogo/ confronto com o passado colonial, produzindo um efeito de instabilidade do sistema literário, o que dificulta a emergência do cânone. O que paradoxalmente (ou não) em Moçambique não é extensivo a todas as artes.

 

A forma como as artes visuais  e a dança - para citar o que me parece realmente um novo fenómeno - têm operado o alargamento das suas opções estéticas sem questionamentos identitários, com resultado na criação de novos públicos, contrasta com a problematização que se opera quando o discurso verbal está implicado10.
Novos elementos parecem estar a introduzir-se neste cenário ainda em aberto. O surgimento de canais de televisão e editoras privados, a cobertura telefónica com rede móvel, permitindo interacções variadas por sms, a vulgarização da Internet e da blogoesfera, produzem novos campos na esfera pública, onde o debate de ideias se materializa em outras formas de percepção da questão identitária em geral, que inevitavelmente irão influenciar a forma como no futuro serão percebidas as formas artísticas incluindo a literatura nacional.

 

Por outras palavras, como literatura emergente ou pós-colonial (com tudo o  que estes epítetos possam significar), a literatura moçambicana tem a sua prática/ praxis inserida num passado de conflitualidade traduzido em várias oposições binárias de onde lhe advém a necessidade de afirmação identitária. Mas, em simultâneo, impõem-se-lhe as várias formas de relativismo trazidas por concepções do mundo tendentes a desconstruir os vínculos que a inseriam num espaço e num tempo históricos.    

 

Redimensionar estes dados é o desafio que se coloca aos centros de produção de conhecimento, às universidades e aos seus investigadores. Para além das reflexões já feitas ou a fazer, tendo como ponto de partida a análise das estratégias discursivas e dos seus efeitos estéticos e ideológicos ou as reflexões sobre o sistema textual específico, agrupado por géneros, tendências ou movimentos, creio que uma das vias será a adopção de um novo paradigma crítico fazendo passar a reflexão sobre a identidade e a função da literatura nacional, pelo filtro da articulação entre sistema textual específico em que se configura e os elementos de recepção que a sustentam e legitimam, de onde não se podem ausentar conceitos como valor, comunidade, instituições culturais e história.11

 

Publicado em Fátima Mendonça, Literatura moçambicana: as dobras da escrita. Maputo:Ndjira, 2010 (a sair) 

 

Fotografias de Marta Lança em Moçambique.

  

 

  • 1. “A colonização foi o acontecimento histórico mais importante da nossa história , sob todos os aspectos (…) a maior parte dos problemas com que nos deparamos na nossa vida política derivam do momento em que perdemos a nossa iniciativa a favor dos outros, dos colonizadores.” Interview with Chinua Achebe, by Anthony Appiah, John Ryle and D.A.N.Jones, Times Literary Supplement, February 26, 1982. Citado por Gikandi, 1991, p. 4.
  • 2. Arjun Appadurai. Après le colonialisme. Les conséquences culturelles de la globalisation. Paris:Payot, 1996, p.139. [tit.original Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization, University of Minnesota Press.]
  • 3. Homi Bhabha (Ed.). Nation and Narration. New York: Routledge, 1990, p. 292.
  • 4. Benedict Anderson. Imagined Communities: Reflections on Origin and Spread of Nationalism. London: Verso, 1983.
  • 5. Refiro-me a “imaginação” colonial no sentido em que Rosemary Jolly utiliza este termo para referir as categorias ideológicas que o campo de estudos designado como literatura pós-colonial arrasta consigo ao definir, por exemplo, a literatura sul-africana, a partir da par colonizado/colonizador como oposição racial, o que impede em sua opinião o projecto emancipatório do pós-colonialismo. Linda Hutcheon retoma o termo para se referir às estratégias de dominação das academias do Primeiro Mundo sobre a produção cultural do Terceiro Mundo, que inclui entre outras as a-historização e despolitização do uso do conceito de pós-colonial. Cf. Rosemary Jolly, “Rehearsals of Liberation: Contemporary Postcolonial Discourse and the New South Africa”. PMLA Publications of the Modern Language Association of America 110 (1),1995,p.17-29. Linda Hutcheon, “Introduction. Colonialism and the Postcolonial Condition: Complexities Abounding”. PMLA Publications of the Modern Language Association of America 110 (1),1995,p .7-16.
  • 6. Esta questão é abordada com perspicácia por Pires Laranjeira (1995) p. 216-217. Embora sustente a oposição entre as práticas utópicas e as ideológicas, o autor admite o carácter de meia-utopia à Negritude. Creio ser possível aproximar o meu argumento da passagem de um momento utópico (o das utopias pan-raciais) para um momento ideológico (o da Negritude) à tese de meia-utopia defendida por Laranjeira. Atendendo às variadas origens dos poetas que cito, creio ser útil voltar a invocar o argumento de Rosemary Jolly (1995) quanto às distorções que as oposições literatura do colonizador vs literaturas do colonizado podem operar, na análise das literaturas nacionais produzidas em contexto colonial.
  • 7. Notícias. Suplemento Cultural (Maputo), 18/04/07, p.6.
  • 8. Luís Bernardo Honwana. Nós matámos o cão tinhoso. Lourenço Marques: Sociedade de Imprensa de Moçambique, 1964. Esta colectânea de narrativas, viria a ser editada sucessivamente dentro e fora de Moçambique e a sua recepção veio determinar o lugar que ocupa como obra canónica da literatura moçambicana. Cf. Abudo Machude. A recepção de Nós matámos o cão tinhoso. Maputo: UEM [Dissertação de licenciatura ], 2004.
  • 9. Suplemento cultural da revista semanal Tempo, fundado por Luís Carlos Patraquim em 25.03.84. Teve durante algum tempo coordenação conjunta de L.C.Patraquim, Calane da Silva e Gulamo Khan. De 22.06.86 a 03.07.88 foi coordenado por Gilberto Matusse e posteriormente por Nelson Saúte seguido de Daniel da Costa, tendo este deixado a coordenação no início da década de 90. A partir daí perdeu o dinamismo anterior.
  • 10. O debate amplificado pela televisão e sms, provocado pelo aparecimento em 2007 na cena do hip hop de uma cantora - Dama do Bling - protagonizando grande irreverência verbal e gestual, sugere que, no campo da recepção das formas artísticas, se instalou uma forte dinâmica entre o que é percebido como certo (nacional, ético, exemplar) e errado (estrangeiro, anti-ético, condenável).
  • 11. Utilizo para este efeito os conceitos propostos por Szégédy-Moszák-Mihály em “The illusion of (un)certainty: canon formation in a postmodern age”. Dedalus (1), 1991, p.377- 402.

por Fátima Mendonça
A ler | 6 Julho 2010 | identidade, Literatura, moçambique