Le Frére

Mas são brancos? Estás perdido numa sexta-feira a querer invadir a madrugada de sábado, num desses templos contemporâneos que vendem comida rápida e barata. 

Local sagrado para afugentar fomes, amortalhar solidões urbanas. Continuas à espera do teu pedido, os braços cruzados, tens o pé direito sob a perna de uma cadeira, numa sala de tecto transparente. A chuva cai mas não te molha. Do lado de fora, consegues ver humanos correrem no passeio fugidio. Alguns de fato e gravata, outros de fato de treino, aspirando ao homem mais saudável do cemitério.

Lá dentro, à direita vês homens cansados, à esquerda homens baixos e duas pessoas de óculos de massa escura com um livro nas mãos. Ao centro um ecrã onde surgem os números dos pedidos. A cozinhar/ prontos a levantar. Um chão de mosaico branco reverbera o som metalizado que vem das colunas por onde também saem uns tímidos acordes de jazz de elevador. Daí a segundos, vais chupar os dedos com os restos de pedaços de cancro frito servidos a partir de dois euros, mega poupança, embrulhados em gorduras que preferes ignorar, respeitando escrupulosamente as melhores práticas e todas as normas internacionais, intergeracionais dos mais reputados institutos de segurança e de higiene alimentar.

O silêncio divide-vos. A noite de Paris é violenta, canta o nevoeiro lá fora que se abate pela cidade. O espaço é frio, cheira a abandono, e a voz monocórdica a anunciar os números de cada pedido pronto, separa-vos ainda mais. Um dos homens a teu lado parece falar para ninguém, mas o auricular bluetooth esclarece: não é um louco. No nosso século não o devemos considerar assim. Hoje, um auricular e a voz de outra pessoa exigem outro diagnóstico. Longe da nossa realidade, noutro século, talvez um livro e a voz do narrador tivessem o mesmo poder. 

Sentes-te inapto para apanhar o comboio da velocidade actual. A tua vida inteira perdido noutro tempo, noutras questões, os autores e os livros errados. És mais um incompetente na arte de prever o que de bom e mau estará por vir. Não querias estar ali, sem sequer ter tempo para preparar uma refeição, mas sobrevives. Neste momento, amarrado ao presente, dói-te o estômago e não é fome, mas aquilo que presencias. Podes comprovar qual a carne mais barata do mercado.

Vês um homem flébil, um molho de ossos boiando dentro das próprias roupas coloridas, entrar no “restaurante”. Achas que só tu te apercebes daquela presença encurvada, tolhida, envergonhada de uma vida descumprida até aí. O homem demasiado magro, demasiado barba esfarelada também te ignora, enquanto se aproxima do ouvido de outro homem que considera um frére. Um velho que também já quis ter outra cor, que também já quis ser outra pele, que também escutara o conselho europeu para voltar a uma terra onde afinal nunca tinha pisado. Mon frére, começa. Percebes que apesar das semelhanças no percurso eles não se conhecem. E não se encontram. O velho pede-lhe para repetir o que dissera. Agora em alto e bom francês, N´est pas possible. Parlez vous! Vês o homem em modo poupança de esforços, usando palavras anãs, que não chegam sequer aos teus ouvidos, nem aos do velho. O homem flébil sustém-se apoiado na força das memórias de um violão, do milho, do calor distante e tenta por fim indicar-lhe o evidente. 

Tu entendes: Fome há dezenas de horas/ humano frágil/ perdido numa grande cidade. A resposta negativa do seu frére vem em forma de mão a varrê-lo dali. Não o surpreende, habituou-se a tal rejeição nas primeiras horas parisienses. Cede. A carne mais barata do mercado deve ceder. Quando chegou à Cidade-Luz o homem flébil apagou-se. Agradeceu ao pseudo-frére, e sem ser ouvido encolheu-se ainda mais. Entrara naquele restaurante para se alimentar, saíra ainda mais esfomeado. Tu testemunhas toda a humilhação, que não pára por aqui, anotas, o homem flébil não consegue sair dali. Enquanto a porta e o seu estômago rodopiam, a gente mais ágil, mais competente, com mais firmeza, confiança e poder de decisão (e todas essas características que nos permitem vencer neste mundo do excel) continua a entrar. Estás no canto da sala e observas como a miséria do outro é apenas um formalismo incómodo, deve ser ignorado durante as conversas, no fundo é uma chatice, para os que entram, se sentam à mesa e se alimentam.

Ainda sem ter despido a camisola da vulnerabilidade o homem flébil via a porta girando, soprando no seu nariz, e a gente, tal como o Governo, num furacão veloz ignorando esse corpo demasiado faminto, invísivel. O homem ainda não aprendera como bailar o euro sem a delicatesse do mercado francês. Toda a dificuldade, quase pueril, daquele homem, exposta perante a sala inteira de afortunados, que continuava a encher-se de corpos sem respostas para este problema tão estúpido. 

 the sum of all evil the sum of all evil

Tu não tens resposta para um problema tão estúpido. 

Mas a fome não é estupidez. 

Deve ser a pior sensação que o corpo pode descobrir. 

O vazio dos vazios. 

 

A estupidez deste problema, que parece apenas preocupar os que com ela desesperam com tanta vergonha, é não ser resolvido. Mas tu preocupas-te e pensas, Como não pode ser resolvida a fome num mundo (que se considera) tão desenvolvido? Agora olhavas para Paris (mas também Nova Iorque, Berlim) como aquelas casas que se deixam construir pelo telhado esquecendo como a base as aguenta. Perdido pelas divagações da tua mente, largas de vista o homem ferido, por fora e por dentro. Mais uma vez o l´esprit de l´escalier a assaltar-te a vida. Quantas palavras escondidas, pensamentos humanistas e o homem lá se fora de estômago vazio, longe da poesia de Mário Lúcio e da dança morna, rumo à sua tenda, talvez destas que estão colocadas à frente do Eliseu, como te informa o jovem moderador do debate político na TF1. Dentro da tela que ilumina o teu corpo saciado, deitado numa cama individual, hotel de três estrelas, miniaturas de bebidas alcoólicas e chocolates no minibar prontos para qualquer hora, um tudólogo, desses que abrem os telejornais e incendeiam redes sociais, irrompe: Mas são brancos? 

Confirmas a figura do comentador: cabelo loiro, do alto do seu fato de três mil euros, desengatilhando sobre as tendas e os migrantes, tal qual o homem flébil:

Espero, a bem da economia e do turismo, que o Governo os expulse a todos até amanhã de manhã. 

 

 

(ainda consegues ouvir palmas em fundo)

por Francisco Mouta Rúbio
A ler | 4 Janeiro 2023 | conto, fast food, humanidade, noite, Paris, solidão