Enlaces: artes periféricas, artivismo e pós-memória

Mural de Vhils em homenagem a Marielle Franco
Brave Walls initiative, Panorâmico de Monsanto, Lisboa

O espaço urbano das grandes capitais europeias abarca pessoas de diversas origens geográficas que habitam sobretudo suas periferias. Dessa relação social e geográfica desigual emergem demandas que devem ser tratadas com urgência para evitarmos a (re)produção de novas formas de colonialidade.

Na Europa contemporânea, os artistas cujas famílias são provenientes de territórios antigamente colonizados contestam a maneira subalterna como são tratados. É a geração a que chamamos da pós-memória: pessoas que herdaram histórias familiares de períodos que não viveram. Os artistas dessa pós-memória colonial expressam-se de diversas maneiras e por diversos meios. Dentre eles sobressai uma arte engajada politicamente, mas que hoje encontra novos meios e plataformas a que conveio chamar de “Artivismo”.

O neologismo “artivismo” terá sido introduzido nos anos 1960 para dar conta das manifestações contra a guerra do Vietname, assim como dos movimentos estudantis e de contra-cultura. Nesse sentido, Guy Debord teorizou sobre o situacionismo em seu livro A Sociedade do Espetáculo (1967), onde apontava para a necessidade da superação da política e da arte, para sabotar as diretrizes do capitalismo e, assim, dar um novo saber a arte e, por conseguinte, à vida. É apenas em meados de 1990, com a revolução da internet, que o termo volta a aparecer no vocabulário crítico para ilustrar não apenas uma prática de arte política, mas para reavaliar o que se considera política e arte, numa reactualização do conceito de Debord. Nesse contexto, é importante ressaltar que a questão de fundo é a transformação do capital em espetáculo, de onde deriva em seguida a problemática da arte.
O artista ativista situa-se no interior de uma relação social em que é fundamental o reconhecimento do Outro e também a crítica das condições que produzem a contemporaneidade. Na dualidade entre arte e ativismo, a relação entre ética e estética amplia-se e, dessa maneira, o uso de métodos colaborativos e de disseminação dos resultados obtidos permite fazer emergir novas subjetividades e discursos renovados no campo da política. Esse modus operandi possibilita a entrada no debate público de temas que não constam ou têm pouca relevância na agenda dos países europeus: racismo estrutural, gentrificação de partes da cidade, combate à precariedade, habitação e acolhida de imigrantes e refugiados, dentre outros temas1.
Os projetos artivísticos pensam a dimensão política da arte e cruzam os territórios do protesto social, baseados numa crença de que validade da arte só é possível se esta for capaz de transformar situações sociais e históricas politicamente significantes. É o caso da poesia slam, arte urbana e democrática praticada em diversos lugares do mundo. Se a transmissão oral da poesia é prática corrente de muitas sociedades não ocidentais, é por meio do slam que alguns artistas urbanos expressam seu engajamento. Na Bélgica, a poeta e colagista Lisette Lombé criou sua primeira performance depois de ter sofrido uma agressão racista num trem: “Neguinha suja, vá aprender a escrever”. Ela, que já era professora de francês, fez da ferida uma arma e, utilizando o famoso discurso de independência de Patrice Lumumba, escreveu o poema slam “Qui oubliera?”Poema traduzido no encarte do jornal Público produzido pelo grupo de pesquisa MEMOIRS. Pode ser lido em português aqui. (Quem esquecerá?). Nesse momento ela não dava voz apenas ao seu sofrer, mas falava em nome de toda uma diáspora colonial que respondeu ao final de sua performance “Pas nous!” (Nós não!). O slam permite que se fale em nome de um grupo, a partir de experiências pessoais, e que se compartilhe, no presente e em presença, assuntos que devem entrar na ordem do dia.
Apesar de toda sua indisciplina, os artivistas sabem que não é o mundo que será mudado, mas sim a consciência individual de que nossas ações diárias podem mudar hábitos da sociedade. É por isso que geralmente o artivismo oferece espaços de criação. Atualmente, junto à escritora e slammer Joëlle Sambi, Lisette oferece oficinas de escrita slam, sobretudo para mulheres, reinvidicando um gesto artivista que conjuga feminismo, anti-colonialismo e a voz dos LGBTQ+2.
Nesse contexto urbano e contemporâneo, a arte e o ativismo encontram-se para desafiar as narrativas dominantes e ocupar espaços que permitem dar aso aos anseios de mudanças sociais e políticas de diversos grupos marginalizados. Ao tomar um espaço para amplificar, sensibilizar e problematizar, para a sociedade, suas causas e reivindicações sociais, as/os artivistas fazem emergir novos cenários e possibilidades de fruição, de participação e de criação artística. Por exemplo, o artista muralista português Vhils, sensibilizado com o deslocamento de populações fragilizadas no Rio de Janeiro para execuções de obras de “revitalização”, afixou nos muros os retratos dos moradores do Morro da Providência que perderiam seus lares. Um protesto artivista que permitiu criar compaixão ao dar rostos àqueles que seriam despejados. Mais recentemente, o mesmo artista, como consequência do assassinato brutal da vereadora Marielle Franco e de seu motorista no Rio de Janeiro, criou um mural com seu retrato em Lisboa no quadro do projeto “Brave Walls”, da organização de defesa dos Direitos Humanos da Amnistia Internacional, para que o crime não seja esquecido e que os responsáveis não saiam impunes.
A conexão3 entre arte e ativismo possibilita aos sectores estigmatizados da sociedade uma intervenção política criativa, poética e sensorial. Ao mesmo tempo em que vai além das formas tradicionais de ativismo e desobediência, o artivismo abala nossas representações do que é a arte no seu circuito, visibilidade e participação na esfera pública. Para enfrentar os problemas de circulação da arte, sobretudo devido ao racismo de omissão, o artivismo utiliza inúmeras linguagens e recursos tais como a arte de rua, o vídeo, a música, a performance, a poesia, a net art e a intervenção não apenas para representar a realidade, mas para engajar transformações, mobilizando e inspirando o espectador.
No intuito de mobilizar o conhecimento daquele que observa um quadro num museu, duas artistas plásticas francesas de origem argelina, Sophie Anou e Dalila Dalléas Bouzar, foram interpeladas pela mesma obra de Delacroix “Femmes d’Alger dans leur appartement” (que também já havia sensibilizado Picasso e a escritora Assia Djebar). As artistas interrogaram o quadro e deram-lhe novos significados. Sophie Anou realizou uma performance “Beurettes d’Alger dans leur appartement”, em que além de problematizar a palavra beurette, interroga as fantasias coloniais que ainda persistem na sociedade.  Já Dalila fez desse quadro uma obsessão, e o revisita regularmente, para pensar o lugar dessa mulher na sociedade de hoje, entre África do Norte e Europa. Nesses dois exemplos vemos como as pinturas orientalistas do século XIX, e em especial as representações de Delacroix, fazem parte da construção do nosso presente e, por isso, devem ser interrogadas pelo olhar desse mesmo “Outro” que foi afixado nas paredes da memória. A ação das artistas entra numa ótica de descolonização das artes, isto é, do questionamento incessante de práticas coloniais e sua reavaliação no contexto presente4.
Nesse sentido, o artivismo é uma expressão que prolonga o sentido de cidadania. Nos casos francês e belga citados, trata-se de artistas que normalmente não são vistas como europeias. As suas obras expressam esse mal estar e interrogam o olhar do espectador a partir de um outro ponto de vista: no gesto das herdeiras de uma memória franco-argelina, ao questionarem o fantasma colonial evocado por Delacroix, as artistas conseguem representar-se a si próprias e interrogar seu lugar na sociedade. Já Lisette incorpora um texto para desafiar a construção racista do  lugar do “Outro” e da mulher negra e mestiça na sociedade belga, onde a história colonial do Congo começou a ser debatida apenas nos últimos vinte anos.
O artivismo no contexto da pósmemória é um instrumento de descolonização do olhar e das artes, além de ser terreno que inaugura novas possibilidades de debates a partir do olhar do sujeito que reclama sua visibilidade e reconhecimento. Nem toda arte feita por artistas da pós-memória colonial é artivismo. Vários afro-descendentes fazem, porém, de sua arte um manifesto. Pelo artivismo instala-se o campo do combArte: uma possibilidade de exigir ao presente que atualize seu discurso sobre o passado para então definir um plano de futuro com mais inclusão e respeito.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu.

 

  • 1. Cabe lembrar várias heranças artísticas das quais se deve destacar a performance, nomeadamente a austríaca e a francesa, e todo o trabalho das vanguardas nova iorquinas e californianas e o pós-modernismo coreográfico de Nova Iorque, cuja genealogia não cabe nesse texto.
  • 2. As temáticas LGBTQ+ são levadas a cabo sobretudo por Joëlle Sambi, que produz nesse momento um documentário sobre a diáspora africana belga LGBTQ+ e para isso recolhe fundos a partir de plataformas digitais.
  • 3. Conexão é a palavra chave para essa criação que transborda o mundo físico e se instala também nos espaços cibernéticos devido as inúmeras possibilidades de manifestações (quase gratuitas) e alcances transfronteiriços.
  • 4. Cabe mencionar como ação decolonial e anti-racista em França o trabalho da fundação criada pelo ex-jogador da seleção francesa de futebol Lilian Thuram. Uma de suas ações ocorre nos museus no intuito de questionar as obras a partir de quem olha. Por exemplo, no museu Delacroix, Lilian foi o mediador da exposição “Imaginaires et représentations de l’Orient” em que os quadros foram apresentados de maneira diferente, visando questionar a maneira como o “Outro” foi construído a partir de um olhar eurocêntrico. Nesse contexto, alunos do ensino médio foram convidados a intervir no museu e criar seu discurso a partir de um olhar descentrado das obras de arte, provocando assim uma abertura ao mundo do artivismo a partir de um olhar decolonial enquadrado pelo projeto.

por Fernanda Vilar
A ler | 12 Fevereiro 2019 | artivismo, Memoirs, memória