"A palavra nómada", entrevista a Aida Gomes
Serie Viver e escrever em trânsito entre Angola e Portugal (parte 2)
Nascida em Lundimbale (Huambo, Angola) no ano de 1967, filha de mãe angolana e pai português, Aida Gomes veio a Portugal com o pai em 1975 fugindo de uma situação de iminente perigo e guerra. Aos dezoito anos muda-se a Holanda, para trabalhar como au pair e é também nesse país que estuda Ciências Sociais. A pesquisa para a sua dissertação de mestrado levou-a novamente a África, no entanto, não a Angola que ainda estava em guerra, mas a Moçambique. Aida Gomes andou por vários territórios do mundo: Guiné-Bissau, Camboja, Suriname, Sudão e Libéria, onde trabalhou em missões de paz da ONU. Os pretos de Pousaflores (2011), o seu romance de estreia, com quase dez anos de lançamento, continua a abrir algumas das feridas da memória coletiva portuguesa. Não sendo um romance autobiográfico, conta uma história polifónica, inspirada na realidade, que se prende com as experiências de um outro “retorno da África”, a chegada de crianças e jovens não-brancas a uma aldeia portuguesa.
Nesta entrevista, concedida em outubro de 2020, Aida Gomes conversa com Doris Wieser sobre o seu percurso, marcado por tantos trânsitos, a construção da sua identidade, impregnada por muitas confluências culturais, bem como sobre o seu romance.
Aida, viveste em muitos países em diferentes continentes. Como marcou este percurso o teu sentido de pertença a espaços, línguas e culturas?
A minha vida foi: oito anos em Angola; depois, entre os oito e os dezoito, dez anos em Portugal; depois, no total do tempo que estive na Holanda, foram nove anos. Nesse sentido, a palavra nómada talvez se aplique muito bem à vida que tive até agora.
Segundo o meu pai, eu falava umbundu em criança. Isto porque a minha mãe era angolana e falava comigo o umbundu. Ela deixou de estar presente na minha vida quando eu tinha quatorze meses. Mas, depois, havia sempre as meninas que tomavam conta de mim, e elas falavam-me em umbundu. Eu não me lembro, não sei uma única palavra. Há uma familiaridade no som, eu gosto do som, principalmente o cantar. Então, chego à Holanda e sou confrontada com uma outra língua, muito árida, muito dura, muito mais difícil. Comecei lá a escola secundária para poder ter o diploma do secundário. Lembro-me também de tentar escrever em holandês e da diferença que havia entre o holandês e o português: o português é como uma espécie de rio fluente, as palavras espalham-se, tem um ritmo que se larga, e o holandês são tijolos, são pedras sobrepostas, sobrepostas.
Mais tarde, fui estudar Sociologia, porque queria ser jornalista. Estamos a falar dos anos noventa, em que havia a guerra da Iugoslávia, havia o Ruanda, havia a guerra na Libéria, Angola estava em guerra, Moçambique estava quase a ter acordos de paz, mas ainda estava em guerra. Então, para mim, África estava completamente num caos. E a única coisa positiva naquela altura foi a libertação do Nelson Mandela e depois a sua eleição, mas, de resto, era um mundo terrível em termo de guerras e falta de esperança. Mas, nessa altura, também havia uma espécie de espírito, a nível mundial, de que era preciso fazer alguma coisa.
Durante os meus anos de estudo na universidade, um mundo se levantou para mim em termos de conhecimento, em termos de alegria de viver etc., abria-se todo um leque de possibilidades. Acabei por fazer o mestrado em Estudos do Desenvolvimento, porque tinha aquele sentimento de que tenho que voltar a Angola, a África, tenho que fazer alguma coisa pelo continente que me fez nascer e o continente com que realmente eu tinha muita afinidade em todos os sentidos, porque nunca deixei de ser angolana, tanto aqui em Portugal, quando vim aos oito anos, ou na Holanda, onde cheguei aos dezoito anos.
Num certo sentido, senti-me sempre angolana, tanto por mim própria quanto pela reação externa à minha presença neste mundo. Lembro-me quando foi para fazer a pesquisa para a tese de mestrado, eu queria muito ir a Angola, mas nessa altura tinha arrebentado a guerra outra vez e não era possível voltar. Então escolhi Moçambique para fazer a minha pesquisa de mestrado. Fiquei lá um tempo, e vim. E depois nunca mais parei num sítio certo.
Tendo em conta a tua vida de nómada, como te relacionas com o termo identidade nacional?
Em qualquer sítio onde eu estive absorvi qualquer coisa. Mas, quando estou em mim, quando penso sobre quem sou, de certeza que haverá talvez dois ou três países que de uma maneira ou outra determinam aquilo que sou. E foi por essa razão que escrevi Os pretos de Pousaflores, por estas andanças que eu tinha feito pelo mundo. Foi também essa curiosidade de tentar perceber como é que dois países – Angola e Portugal – se cruzaram na história que me fez escrever Os pretos de Pousaflores, para me perceber melhor, para perceber determinados trajetos.
O que posso dizer da minha identidade? Há uma parte angolana; também assumo uma parte portuguesa, porque o meu pai era português, porque tenho aqui algumas origens. Mas, de certeza, Angola, como eu disse, é o meu berço. E é claro que, por circunstâncias históricas, houve (e haverá sempre no mundo) pessoas que tiveram que sair do berço delas; e são atiradas pelo mundo.
Nesse sentido, acho que a memória é o que, de uma ou outra forma, recompõe aquilo que seria uma parte da minha identidade, porque eu recomponho, reconstruo no momento em que estou a escrever. É o momento em que pego em assuntos ou impressões que me marcaram. E, na escrita, a memória é sempre inventada, tal como a identidade. Voltamos sempre àquelas sensações da infância, porque aí aprendemos a sentir. É sendo criança que aprendemos a sentir o vento, ouvimos o vento, vemos os rios, vemos as flores, vemos os bichos, os pássaros… E é isso que faz parte da escrita: estamos constantemente a redefinir e a definir o mundo a partir daquilo que é a nossa memória e os nossos focos identitários.
O que podemos ver nesta fotografia?
Esta foto é com a minha mãe. Eu também estou na foto e foi a minha filha que a tirou. Foi no dia em que ela pegou o avião em Lubango, do sul de Angola, e veio para Luanda. Eu estava a viver em Luanda e ela foi para ficar meio ano comigo. Encontrei a minha mãe no meio da guerra, em 2000, 2001. A paz só veio no ano 2002 em Angola. Foi um momento muito emocionante, porque eu já tinha estado com ela em Lubango. Foi quando combinamos tudo. Era preciso tratar dela, porque ela estava mais ou menos como refugiada. E finalmente veio o dia em que ela conseguiu pegar o avião e veio para Luanda.
Eu e a minha mãe fomos separadas quando eu tinha quatorze meses. Significa, portanto, que não tenho memória consciente dela. Mas foi bom reencontrá-la naquele sentido de que me reconheci muito nela, não só no sorriso, mas também na estatura dela, e também no sentir. Já me tinham dito que ela era uma andarilha, nunca parava num sítio. E durante a guerra andou sempre dum lado para o outro. Depois, ela tinha histórias. Nunca foi aquela pessoa vitimista. Sempre falava do que passou durante os anos de guerra com uma enorme lucidez, sem chorar. Contou partes da guerra que eram dilacerantes, de gente queimada, de casas, cubatas queimadas. Mas a única coisa que me disse para realmente mostrar o quão horrível isto tudo foi, foi que ela, durante muitos anos, não conseguiu comer carne grelhada. Não suportava esse cheiro. E, nesse sentido, lembro-me de sentir que era uma mulher muito forte. Para além disso, tinha um sentido de humor muito grande. E esse sentido de humor é o que eu relaciono muito com ser angolano.
Passando agora ao teu romance, Os pretos de Pousaflores, querias abordar o tema do “retorno da África” de uma forma diferente?
Os pretos de Pousaflores era uma versão mais complexa de um outro livro que eu escrevi aos 23 anos e que era uma reflexão minha sobre o que foi sair de Angola, ir para Portugal e estar na Holanda. Essa versão chamava-se O meu nome é Elis. Tinha um amigo tradutor da literatura portuguesa e infantojuvenil e ele gostou muito. Vinha regularmente a Portugal – estamos a falar do princípio dos anos 90 – e trouxe uma cópia do livro para falar com vários editores. Mas a resposta que obteve de toda a gente foi: “Aaaah, isso dos retornados e dos africanos, ninguém está interessado nisso. Nem pensar!” E quando comecei a escrever Os pretos de Pousaflores, peguei outra vez naquela versão e vi que não era exatamente aquilo que eu queria escrever.
E o retorno não será a palavra mais adequada para classificar o que significou a vinda, a revolução portuguesa, as independências de Angola, de Moçambique e dos outros países que estavam sob o domínio português. Eu não utilizaria a palavra retorno. Acho que a palavra retorno ficou um bocadinho em voga para identificar um determinado tipo de portugueses. Acho que as vagas de colonização do século XX realmente sentiram que Angola estava a crescer, que era o paraíso, que era maravilhoso para estes portugueses que ali estavam e tinham uma vida maravilhosa, de reis, tudo a rolar como devia ser… e, de repente, acabou-se o paraíso deles e voltaram a Portugal… e eles também dizem: “Deixamos tudo…”. Ali ficou um sentimento de perda, um sentimento de saudosismo, que representa o tal retorno, os tais retornados. Há, na palavra retorno, nuances que se perdem. E essas nuances se perderam porque o discurso dominante do retorno sempre foi expresso, articulado por uma classe de portugueses, a maior parte brancos, que falavam duma África mística, maravilhosa etc.
O que queria mostrar no romance é que a reinserção dos angolanos negros, mestiços ou famílias misturadas foi uma história diferente daquilo que era o retorno, porque aqueles que realmente se inseriram muito bem na sociedade portuguesa o fizeram porque tinham vínculos na sociedade ou tinham poder econômico e até social. Houve, portanto, uma parte esquecida, da qual não se falou e que continuou a ser uma presença na sociedade portuguesa e que se traduziu nas mulheres da limpeza, nas assistentes… A ascensão social em Portugal é muito difícil: há vários mecanismos de exclusão. A pobreza é um mecanismo de exclusão; o racismo é outro; mesmo o nortenho e o rural português é também excluído.
A teu ver, em que estado se encontra o diálogo entre Angola e Portugal?
Eu acho que não houve um debate entre as duas partes. Uma parte ficou-se mais pelas perdas e a outra parte ficou-se mais pelo júbilo de ter-se tornado independente. Muito menos se falou, por exemplo, do significado do encontro entre as culturas e também diria da violência que foi a imposição duma ordem colonial. Falou-se muito pouco da integração daqueles que não eram brancos, mas eram negros ou mestiços e que ficaram pela marginalidade urbana, ao redor de Lisboa. Falou-se muito pouco da maneira como os portugueses olham o Outro, o negro. Sinto que em Portugal há muitas opiniões, mas não há uma reflexão, um conhecimento do Outro. Há ainda muito preconceito e muito saber opinativo. As discussões reduzem-se a expressar opiniões.
Desde os anos 90, lembro-me que, na Holanda, na França e nos Estados Unidos já se falava disso abertamente. E em Portugal abre-se, de vez em quando, um véu… são alguns assuntos ou episódios doloridos da História. Mas suponho que não existe muito interesse em aprofundar o conhecimento, porque há imensos temas que acabam por não ser tratados ou serem tratados muito superficialmente. Por exemplo, a questão do racismo. Este ano o debate sobre o racismo ficou, vamos dizer, em voga, por causa do George Floyd e das várias manifestações que houve nos Estados Unidos. E aqui em Portugal também houve manifestações e, portanto, uma visibilidade maior da questão do racismo. Mas como é que, depois, pegam nessa questão? Não houve um tratamento do facto de que o racismo é presente na sociedade portuguesa. Em janeiro um moço cabo-verdiano foi morto com barras de ferro em Bragança… Mas quando esses episódios acontecem, não geram um debate. Sinto que aqui as elites pensadoras não gostam muito de pensar… gostam de dar opiniões. E essas opiniões são ou do cunho progressista da esquerda que dizem sempre “Fora o racismo! Fora isto, fora aquilo!” ou dos conservadores, que dizem “Ah, mas não…”! Mas nenhuma das partes aprofunda os temas.
No teu romance, o colono português Silvério é violento com as suas três mulheres africanas, abandona-as e foge, em 1975, com os três filhos/as para Portugal. No entanto, a última das suas mulheres, Deodata, decide ir atrás dele e da filha e chega a Portugal como mulher autodeterminada, disposta a enfrentar-se ao que for.
Silvério realmente representa o colonizador. E não é por nada que ele teve três filhos com três mulheres angolanas em três períodos distintos da colonização de Angola. Em cada um desses períodos houve uma certa forma de estar, de colonizar e de abordar principalmente as mulheres. Portanto, a história que ele conta é a narrativa de como viveu e como é que ele também teve relações íntimas com a população local. Mas, por outro lado, Silvério é contraditório porque não é uma pessoa dura; é uma pessoa até com uma certa sensibilidade… no momento que chega a Portugal, é a primeira vez que começa a refletir e a fazer um ato de autoexpiação sobre o papel que teve como colonizador.
A Deodata, como angolana, tem uma filha com um homem branco e isso determina a sua vida. Ama a filha e faz tudo para vir para Portugal e encontrá-la. Ela é a personagem que melhor se adapta a Portugal porque, talvez, como colonizada, também já interiorizou uma certa maneira de adaptação. Mas, ao mesmo tempo, tem a força que é dela, a força que lhe vem por ser angolana… ela sabe o que quer como mulher, como mãe e como companheira do Silvério.
Os três filhos de Silvério representam uma nova geração. No entanto, Justino, sendo rapaz, lida com outro tipo de problemas que as suas irmãs mais novas, Belmira e Ercília. Essas veem-se sobretudo confrontadas por diferentes formas de abuso sexual.
As três crianças têm que fazer o caminho delas. O Justino chega a Portugal com 18 ou 19 anos, vindo duma juventude angolana dos anos 70 que era muito mais cosmopolita do que a juventude portuguesa. Portugal era um país fechado e o Justino chega com o cabelo a Jimi Hendrix, ele sabia que música se escutava nos Estados Unidos, no Brasil, e isso era, possivelmente uma certa diferença entre quem era jovem em Angola nos anos 70 e quem era jovem aqui em Portugal. Ele é o contraste disso tudo, já que vem com aquela insegurança e, ao mesmo tempo, com aquela força cosmopolita dos grandes sonhos, com uma certa mentalidade hippie e libertária que é emperrada e parada à chegada a Portugal.
As meninas, Ercília e Belmira, representam o que foi este encontro entre Angola e Portugal, entre o colonizado ou a colonizada e o colonizador, entre o negro e o branco. Elas são duas meninas e, de uma certa forma, representam a vulnerabilidade de ser menina e de crescer num Portugal em que é muito mais fácil ser-se espezinhado, maltratado como ser humano vulnerável. Espero que isso tenha mudado desde a publicação do livro, mas naquele tempo era assim. Além disso, elas representam também aquele exotismo da mulher negra, mulata, supostamente sempre pronta para o sexo. Há uma sexualização muito forte de quem tem uma cor, de quem é mestiço ou negro e é essa a vulnerabilidade que elas representam.
Esta entrevista é a segunda de uma série de entrevistas com escritores/as que transitam entre Angola e Portugal. Pertencendo a diferentes gerações, tornam-se testemunhas das relações culturais e políticas entre estes países, e da herança do colonialismo que os une e os separa. A série faz parte do projeto “Identidades Nacionais em Diálogo: Construções de Identidades Políticas e Literárias em Portugal, Angola e Moçambique (1961-presente)”, coordenado por Doris Wieser, financiado pela FCT e sediado no Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
24 de outubro de 2020.
Transcrição e edição de vídeo: Paulo Geovane e Silva