A terceira diáspora, Hermano Vianna

Gosto de ver gente diferente em contato, colaborando para implodir guetos e identidades. Há uma década, Goli Guerreiro lançou A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador (Editora 34), leitura obrigatória para quem quiser falar qualquer coisa menos óbvia sobre o sucesso da revolução estética/industrial/social que ficou conhecida, primeiro pejorativamente, como axé music. Agora ela amplia e radicaliza sua análise dessa impressionante transformação com dois novos livros irmãos: Terceira diáspora: o porto da Bahia e Terceira diáspora: culturas negras no mundo atlântico, originados no blog Terceira Diáspora. São lançamentos, os livros, da editora Corrupio, que já nos brindou com, além de muita coisa essencial de Pierre Verger, alguns clássicos como Carnaval ijexá, de Antonio Risério, e O país do carnaval elétrico, de Fred de Góes. É preciso sempre saudar sua resistência editorialregional, fato raro (e a raridade é lamentável) em outros lugares do Brasil “fora do Eixo”.

Terceira diáspora é conceito para tentar entender o estado mutante das trocas culturais das culturas negras pós-internet. A primeira diáspora foi criada pelo tráfico negreiro. A segunda aconteceu quando populações descendentes de africanos negros se deslocaram novamente por vários continentes, mudando a cara de muitas cidades do mundo: haitianos em Nova York, senegaleses em Paris, surinameses em Roterdã e assim por diante. A terceira diáspora aconteceria agora, quando a comunicação entre todos esses mundos negros é facilitada por vídeos no YouTube, programas da rádio 1Xtra da BBC, arquivos torrent de cinema nigeriano, e muitos outros bytes.
Goli Guerreiro, mestre e doutora em Antropologia pela USP, pós-doutora pela UFBA, percorre as infovias e os caminhos “reais” entre os portos da terceira diáspora com voracidade antropofágica, produzindo novas informações (em textos e imagens), sampleando pensamentos, compondo um panorama ricamente fragmentado de links transculturais recém estabelecidos. Os livros não têm exatamente capítulos; são mais coleções de posts, todos com palavras-chave, remetendo uns aos outros, incentivando o(a) leitor( a)/usuário(a) a continuar a navegação em outras mídias.
No Culturas negras no mundo atlântico, podemos nos transportar do carnaval no casario Ginger Bread de Port of Spain, em Trinidad e Tobago, para o Festival de Vodun, em Uidá, no Benin, antes de mergulhar num maremoto de citações, com falas/escritos (muitas vezes saborosamente contraditórios) de gente como Cornel West e o DJ Thaíde.

“O porto da Bahia” é guia para a produção contemporânea, depois de Neguinho do Samba, de arte e ideologia negras em Salvador. Tem a união de big band com candomblé do Rumpilezz, tem o hip-hopsambade-roda do DJ Bandido, tem o design de carrinhos ambulantes e sonorizados de café, tem os programas de TV de Jorge Portugal.
Gosto dessa mistura, adoraria ver outras cidades do Brasil de hoje retratadas assim, de forma tão potente.
Porém, já fico buscando novos navios ou servidores partindo/chegando/transmitindo dos portos mapeados por Goli Guerreiro. Dentro da terceira diáspora, com sua base na informática, não consegui parar de pensar, ao navegar alegre pelos livros e pelo blog, no pioneirismo baiano em termos de filosofia tecnocultural, com a formação de turma que inventou uma CiberBahia paralela, incluindo André Lemos, Marcos Palácios (lembro seus estudos sobre MOOs, os avós do Second Life, lá no início dos anos 90, até antes da web), Cláudio Manoel, Gilberto Monte, Messias Bandeira, André T, André Stangl e tanta gente boa mais.
Acho que é deformação de personalidade: gosto de ver gente diferente, com muitos tons de pele, em contato, colaborando para implodir guetos e identidades fixas. Sou discípulo de Édouard Glissant, um dos heróis do livro “Culturas negras no mundo atlântico”. Outro dia li mais uma de suas entrevistas sensacionais, desta vez publicada numa revista do “Le Monde”, sobre o “OutreMèr” francês.
Contra a fixidez identitária, ele propõe sempre a “identidade-relação”: devemos construir nossa personalidade na encruzilhada de nós mesmos com os outros. Essa é a receita para estarmos atentos ao incompreensível e à poesia que não é nossa.
Glissant declara que só crê “nos pensamentos incertos de sua potência” — pensamentos do “tremor”, pensamentos mestiços, nunca fechados no seu mundo, por mais “atlântico” que seja. A mestiçagem das artes, e mesmo das línguas, produz o inesperado — não a uniformização, mas a difusão de novos sentidos, “maneiras de se transformar de modo contínuo, sem se perder”.
Claro, afirmar a negritude baiana, e reforçar suas conexões com o mais vibrante da terceira diáspora, é passo fundamental.
Mas nunca ficar no mesmo circuito. Lembro sempre daquela música excelente da Sarajane: “abre a rodinha”.
Chegamos ao limite do processo descrito por Agnes Mariano, no livro “A invenção da baianidade” (Editora Annablume).
Ser baiano adquiriu outros sentidos. É preciso conectar, também e cada vez mais, a trama dos tambores da terceira diáspora com outros núcleos importantes de inovação cultural que não se situam dentro dos limites, mesmo fractais (como quer Paul Gilroy), do mundo negro.
Só assim poderemos inventar novas maneiras de sermos dignos daquilo que Glissant, com Patrick Chamoiseau, chamou, em carta aberta para Barack Obama, da “intratável beleza do mundo” — todo o mundo.

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21.02.2011 | par martalanca | África-Brasil, Bahía, diáspora