Lost Lover: o que diríamos da história se a pudessemos contar

No texto “Os não-europeus pensam?”, Hamid Dabashi1 questiona a afirmação da superioridade epistemológica  europeia e a globalização do seu modo universal de pensar. Assim, pergunta o autor porque razão apenas consideramos a filosofia europeia como filosofia e a africana como etnofilosofia ou, mais ainda, o que acontece aos pensadores que operam fora do regime europeu, legitimado, da filosofia? Uma certa perspectiva totalitária e auto-confiante, constitui uma das formas da arrogância intelectual do Império que desqualifica tanto as múltiplas visões do mundo como os inúmeros lugares, em defesa desse crescente fracasso a que temos vindo a chamar “unidade das diferenças” .

Sobre estas e outras condições históricas e geo-políticas da produção e controle do conhecimento, nos fala a exposição Lost  Lover, com curadoria de Lara Koseff, originalmente apresentada no Rio de Janeiro, no exterior do espaço Lanchonete2. e agora no espaço Rampa, no Porto 3

Numa das salas, onze vídeos, projectados em loop, de artistas maioritariamente sul-africanos, confrontam-nos com o abandono do medo, assim convocando questões habitual e estrategicamente silenciadas.

The Purge, 2013, de Athi-Patra Ruga The Purge, 2013, de Athi-Patra Ruga

The Purge, 2013, de Athi-Patra Ruga apela à dimensão crítica de um tempo lento através do qual a construção de uma utopia da identidade se configura como heterogeneidade psicogeográfica. Na era pós-apartheid o corpo torna-se ferramenta de interrogação, estratégia de contra-poder e campo de luta. Enquanto lugar de desordem, o corpo afirma-se como um bem público, um bem comum, palco conceptual de contradições ideológicas, sociais, políticas e sexuais que o atravessam. Através de fortes explosões cromáticas, balões cheios de tinta líquida rebentam e dialogam com o aparente nascimento de uma flor tornando-se meio de significação da memória individual e colectiva. Ao longo do caminho, um gongo marca a ordem do trágico e a procura do sentido da unidade. Neste corpo político inscreve-se a nossa história, que é também a do erro e da catarse, da doença e da cura. A força das paixões não tem propriedade exclusiva e torna-se o poder escondido da intensidade do combate.

A partir das memórias vividas da sua infância, Lungiswa Gqunta volta a casa da irmã da sua avó para questionar a estrutura que sustenta o regime sul-africano. Em Feet Under Fire, 2017, ao som de uma canção de embalar, as suas pernas baloiçam repetidamente, dentro e fora do enquadramento, assim problematizando a fronteira entre o público e o privado. Sabemos que a repetição ajuda ao esquecimento. O espaço e os materiais de uso doméstico projectam-se como metáfora política do patriarcardo e do colonialismo. O eterno retorno do mesmo. Nos pés, escovas de polir o chão substituem os sapatos. Constituído por cascalho negro e pontuado por fósforos que se vão movimentando, enquanto o chão vai sendo raspado, subsiste a determinação para que a faísca se acenda. No fogo que queima os pés também pode ser encontrada a potência da transformação. Um país é uma casa, e apagar este incêndio para sobreviver é um acto colectivo. Este só pode ser global. 

Através do diálogo entre duas crianças, ambas do sexo feminino, Vitamin See, 2017, de Simnikiwe Buhlungu, aborda tanto a incapacidade de questionar narrativas interiorizadas e historicamente construídas, como a urgência de reagir à sua perpetuação. Considerando, ironicamente, a história eurocêntrica e colonial como uma espécie de “escrita criativa” e ficção, a artista problematiza o conhecimento produzido pelas estruturas objectivas e cognitivas do sistema social, equacionando, neste contexto, o papel da linguagem como instrumento normativo e meio de dominação ideológica. Tal como 95 por cento do oceano está por explorar, como nos é referido por uma das crianças, na mesma medida tudo está por fazer, tudo está por conhecer. É preciso fazer furos na história, como Beckett defendia para a língua. Talvez a tarefa das novas gerações seja a de tornar o discurso insubmisso . Neutralizar a história que eterniza é a mobilização que importa operar.  

Untitled (Zimbabwean Queen of Rave), 2005, de Dan HalterUntitled (Zimbabwean Queen of Rave), 2005, de Dan Halter

Everybody’s free, título de uma canção mítica do início da década de 90, afirma-se como estratégia político-visual em Untitled (Zimbabwean Queen of Rave), 2005, de Dan Halter. A justaposição de imagens a que o artista recorre, confronta jovens brancos a dançar freneticamente em cima de camiões, festas rave e espaços abertos, registos documentais de massas que se divertem, com multidões colonizadas e empobrecidas em protesto e manifestações políticas de rua. Entre raves, consideradas pela ordem dominante festas de consagração do prazer, e as manifestações da população que reivindica direitos fundamentais, a obra mostra-nos o modo como estes movimentos, através da própria televisão, foram esvaziados do seu sentido político originário. Se a capacidade de revolta não poderá ser saqueada, é a polícia, no entanto, que marca a sua presença nas imagens. É ela que nos garante que nem sempre um corpo determinado e em movimento livre significa um corpo libertado. 

Mamoloyi Revival, 2017, de Melebona Maphtuse,Mamoloyi Revival, 2017, de Melebona Maphtuse,

Mamoloyi Revival, 2017, de Melebona Maphtuse, utiliza a colagem digital reforçando o seu efeito político de desfamiliarização. Tendo integrado  o colectivo Title in Transgression (com Simnikiwe Buhlungu, Dineo Diphofa e Boitumelo Motau), a artista opera uma crítica radical ao processo de colonização entendido como transversal aos diversos campo sociais. Assim, o território da arte, estruturas, discursos e agentes que o configuram, integram este processo de sujeição. Denunciando o binarismo construído entre as crenças tradicionais africanas e o cristianismo do Ocidente, a obra estabelece uma rede de correspondências espácio-temporais entre acontecimentos. A politização do espaço e dos corpos que nele circulam recorda o apartheid, mas este é apenas o ponto de partida para a construção de um ensaio visual cuja dimensão crítica se instala na recusa de uma história linear, providencial e eurocêntrica, nada mais que a concepção que subjaz à civilização ocidental. Fica-nos o tempo inteiro, uma espécie de tempo contraído, o da coexistência. 

End of History III, 2014, Thenjiwe Niki Nkosi End of History III, 2014, Thenjiwe Niki Nkosi

Diz Thenjiwe Niki Nkosi em várias entrevistas que a perspectiva do panafricanismo é um desejo seu profundamente enraizado, inclusive por razões familiares. End of History III, 2014, retoma a memória do mar, o oceano Atlântico que o pai atravessou para se exilar na África do Sul, as costas do Mar Negro onde viviam os avós maternos ou o mar que a própria artista teve que atravessar em criança. Conta o mito zulu, evocado pela artista, que todas as histórias vêm do mar. O mar que separa é o mar que une. É como o céu, como as fronteiras. Ambos se tornam lugares de passagem entre sucessivas partidas e regressos de avião. Nestas viagens, as densas nuvens brancas, que vão (des)cobrindo a realidade, parecem figurar o silenciamento ou a invisibilidade das narrativas e das forças ideológicas. Tudo é construído, sejam os  edifícios arquitectónicos, a paisagem ou a história. Com a história aprendemos que os fenómenos totalitários podem acabar no abismo. As tempestades também acontecem no mar.

Exquisite Corpse, 2015, de Jonah Sack Exquisite Corpse, 2015, de Jonah Sack

Um homem sem cabeça comete um assassínio, conduz um tractor e dança ao som de uma jukebox. Tomando como referência um jogo abundantemente praticado pelos surrealistas, o cadavre exquis, Jonah Sack mostra-nos o vídeo de animação, Exquisite Corpse, 2015. Utilizando múltiplos desenhos que se vão substituindo a um ritmo sincopado e criando um espaço em forma de grelha, este corpo, em movimento animado, procura divertir-se num bar cheio de gente. Gráfica e visualmente, a obra aproxima-se da ideia do desenho colectivo que o cadavre exquis implicava, bem como da libertação de uma qualquer intencionalidade moral. Sendo a cabeça, ortodoxamente, o lugar da razão, este homem sem cabeça e em automatismo psíquico não representa um qualquer acto de liberdade, mas antes, o exercício da violência na sua forma mais arbitrária. Este diálogo visual estabelece que o bem e o mal são miragens ilusórias à medida que os pensamos ter compreendido. Assim se escreve a nossa fragilidade.

Love, unrequited' de Nkiruka OparahLove, unrequited' de Nkiruka Oparah

Nkiruka Oparah, membro fundador do 5/5 Collective 5/5, apresenta Love, unrequited, 2014, explorando as interacções entre a memória cultural e as representações cosmológicas do seu País, a Nigéria, bem como questões de subalternidade racial, identidade e pertença. Através de uma expressiva linguagem visual, com particular relevância para o uso da colagem, o artista recorre a vários materiais, de fontes diversas, para construir retratos multimédia que assumem múltiplas configurações semânticas. A desnaturalização da realidade representada, que a colagem possibilita enquanto ferramenta, confere à obra a sua força política. Justapondo imagens de sugestivas ilhas paradisíacas, naturezas idealizadas, alucinações da mente e corpos que sobrevivem a outros lugares, estes fragmentos ou retratos-assemblage, procuram correspondência entre si. Procuram o(s)sentido(s). São como as histórias de amor que ocultam sempre outras histórias. Esta noite é negra e faz parte de uma história de terror. 

Afirmar radicalmente a liberdade de ser feminista, desconstruir a linguagem do patriarcado e do falocentrismo constitui o programa artístico de Lunga Ntila. A artista, partindo do corpo como espaço político, instaura a discussão em torno do controle corporal como expressão do controle social. Em Ode to my lover, 2018, cada fragmento-ícone (re)cortado e (re)colado torna-se num forma de acção directa, filiando-se na tradição dos movimentos feministas, minorias étnicas e homossexuais, que reivindicam os direitos civis e assumem a identidade e a individualidade como problemas centrais. As reflexões desenvolvidas por mulheres, artistas e não artistas, exprimem a invisibilidade a que secularmente estavam condenadas. Enquanto manifesto contra a opressão, este corpo comprometido afirma-se como palco conceptual das contradições ideológicas, sociais, políticas e sexuais que o atravessam. E quinze segundos bastam para fazer significar a liberdade.

An Indigestible Desert, 2008, de Reza Farkondeh e Ghada AmerAn Indigestible Desert, 2008, de Reza Farkondeh e Ghada Amer

An Indigestible Desert, 2008, de Reza Farkondeh e Ghada Amer, trata-se de um vídeo que regista uma performance durante a qual assistimos à criação de um bolo com as imagens dos corpos de Tony Blair e George W. Bush. As cabeças, mãos e pés dos dois políticos são ocas e feitas de chocolate. Chocolate branco. O recheio é vermelho. Vermelho-sangue. Enquanto a performance decorre, ouve-se música árabe, os convidados entram e sentam-se. Após uma espécie de oração ritualizada consagrada àqueles líderes, Amer começa a bater-lhes na cabeça com um martelo. Continua esta acção pelo resto do corpo. Todos começam a  servir-se e a comer. Esta atitude como que, simbolicamente, antropofágica, parece transformar-se num rito iniciático que tanto tem de catártico como de solene. Heróis que se tornam, duplamente, objecto de identificação e de instinto de morte. Conta-se que algumas tribos comiam a carne de alguns prisioneiros de outras tribos de forma a vingar os seus antepassados que tinham sido mortos por elas. A história não tem ponto final.

Tango for Page Turning, 2012-2013, de William KentridgeTango for Page Turning, 2012-2013, de William Kentridge

Tango for Page Turning, de William Kentridge, 2012-2013, que integra a obra Refuse the Hour, situa-nos no centro da herança política do colonialismo através de um livro antigo de Química Aplicada, cujas páginas, sucessiva e velozmente, vão girando. Durante esta história da melancolia, enquanto o tempo, o som, a imagem e a dança comunicam entre si e mutuamente se afectam, o texto vai reconfigurando espacialmente a composição visual. Entre fragmentos e constantes remontagens que constituem metáforas processuais da nossa memória, da percepção e da metamorfose do mundo, esta narrativa fílmica opera, também, uma reflexão sobre os processos colaborativos. Pequenas manchas, frases, símbolos, desenhos, acidentes, levitam e colidem sobre o texto esbatido, enquanto o som repetitivo, manipulado e, também ele, fragmentado, vai interrompendo, e assim impossibilitando, uma qualquer ordem linear. Aprendemos com este livro e, digamos assim, com a edição revista das experiências de Edward Muybridge sobre locomoção animal, que a história é essa força bruta que está aí para ser dançada.

A instalação de Grada Kilomba, Illusions Vol. II, Oedipus, 2018, criada para a 10ª Bienal de Berlim, embora não integre a exposição Lost Lover, enquadra-se no programa curatorial de Lara Koseff. Apresentada autonomamente numa das salas da galeria, a obra retoma o mito de Édipo, articulando as gramáticas do vídeo, performance e texto. Nesta narrativa, o destino trágico situa-se no território da contínua repressão do patriarcado colonial, nessa espécie de falha ontológica original tornada castigadora. Substituir a profecia torna-se uma reivindicação  ética. Aqui, onde importa quem fala, é a lição de Bertolt Brecht que imediatamente nos ocorre. A estratégia da distanciação e estranhamento, que subjaz conceptual e formalmente a toda a obra, opera a necessária desnaturalização e denuncia a ideologização da realidade. Estamos perante um teatro dramático não-aristotélico. Já não há problema metafísico, o Édipo é social mas também uma representação histórica, politicamente construída. Desconstruir a palavra, usando-a contra si mesma,  constitui o exercício maior.

Se no início deste texto perguntamos o que acontece a todos os que pensam fora das estruturas legitimadas e europeias da filosofia, de igual forma perguntamos o que acontece aos artistas que trabalham afastados dos cânones e do marketing global. Lost Lover não é apenas um cartaz afixado nas paredes e postes eléctricos das ruas de Joanesburgo. Lost Lover é o nosso tempo. 

  • 1. Hamid Dabashi - Can non- Europeans think? In, Al Jazeera, Janeiro, 2013.[https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2013/01/2013114142638797542.ht...].
  • 2. A exposição poderá ser vista até 16.06.19 no espaço RAMPA - Pátio do Bolhão, 125, Porto. [+ info: https://www.rampa.pt/].
  • 3. Como refere o texto de apresentação do programa, este espaço é “um velho café em Gamboa, uma zona da cidade onde chegavam escravos de África, e que muitos anos depois, na história mais recente foi brutalmente gentrificada para acolher os visitantes de grandes eventos desportivos. Aconteceu no lugar onde seres humanos foram brutalmente transacionados e oprimidos, e os seus descendentes são agora marginalizados e ignorados em benefício de turistas e grupos endinheirados. Foi apresentado a estas comunidades um programa de imagens, música e luz, que aclarou várias vertentes deste sentimento, evocando realidades entretanto perdidas, do lado de lá do mar, e aflorando a necessidade de novas rotas de afirmação. A exposição emerge num novo território, num contexto diferente, mas historicamente ligado: Portugal, o país que teve um papel central no tráfico de escravos do Atlântico e que mantem uma ligação complexa e bifurcada com o Brasil e com África.”

por Eduarda Neves
Vou lá visitar | 12 Junho 2019 | Africa do Sul, arte contemporânea, Lara Koseff, Lost Lover, Rampa