As últimas neves do Kilimanjaro

Perdeu 85 por cento da sua cobertura branca no último século e tudo indica que, dentro de dez anos, não terá neve alguma. Culpa do aquecimento global, mas não só. Chama-se Kilimanjaro e é o pico mais alto de África.

Surge num claro recorte no horizonte, mesmo ainda a quilómetros de ser alcançado. Imponente, esmagador, numa paisagem dominada pela savana. No Norte da Tanzânia, junto à fronteira com o Quénia, foi um vulcão e é hoje um dos ícones de África, para o que também contribuiu esse notável conto de Ernest Hemingway, intitulado precisamente As neves do Kilimanjaro. O Monte ainda lá está. As neves também, mas são hoje menos 85% do que em 1900. E desde 2000 até hoje, a sua redução foi de 26%. Segundo diversos estudos, dentro de dez anos simplesmente vão desaparecer.

Em 1900 o seu cume apresentava 12 quilómetros quadrados de neve. Hoje são apenas dois. Rapidamente o fenómeno do aquecimento global apareceu como o grande culpado pela situação. Mas o desenvolvimento de mais estudos, as análises ao gelo e às rochas permitiram levantar outras hipóteses que também podem ter contribuído para este resultado, como a sua atividade vulcânica ou mesmo o abate de árvores.

Uma das conclusões mais recentes a que se chegou foi a de que a cobertura de neve nunca foi tão pequena nos últimos 11.700 anos, inclusive nas épocas de seca severa, que duraram mais de 300 anos – há quatro mil anos houve um período de três séculos de seca, mas nunca a neve ficou reduzida aos níveis atuais. E um dos glaciares do Kilimanjaro, o Furtwangler, perdeu nos últimos dez anos metade da sua espessura, facto que preocupa seriamente os cientistas.

Mas a grande explicação para o sucedido é mesmo remetida ao aumento das temperaturas junto à superfície, bem como a aumentos ainda maiores na atmosfera interior. Tem sido esta a razão, documentada nas últimas décadas, que tem provocado o degelo. «O facto de tantos glaciares nos trópicos e subtrópicos estarem a sofrer os mesmos efeitos sugere uma causa comum», avança ao jornal inglês The Guardian Lonnie Thompson, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, um dos cientistas que investigou o problema. «No futuro haverá um ano em que veremos o Furtwangler e no ano seguinte terá desaparecido completamente», adianta.

As neves atraem, todos os anos, cerca de 40 mil turistas

No topo, de telemóvel

O monte é constituído por uma cadeia de vulcões, com os três principais denominados Shira, Mawenzi e Kibo. Hoje sabe-se que o Kilimanjaro tem 5891,8 metros de altura. Certinhos. Em 2008, uma equipa liderada pelo português Rui Fernandes, investigador do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa, efetuou a medição mais precisa de sempre, através de GPS. É também, curiosamente, o ponto mais alto do mundo com cobertura GSM para telemóveis.

O seu simbolismo, a sua imponência e as florestas circundantes, que possuem uma fauna rica, incluindo diversas espécies ameaçadas de extinção, levam ao Kilimanjaro cerca de 40 mil turistas por ano. Alguns milhares tentam subir ao topo, utilizando no percurso vários postos para acampamento. Embora as consequências do frio e da falta de ar provocados pela altitude sejam um problema a enfrentar, não é propriamente necessário ser-se um alpinista para atingir o cume. É desde 1973 um Parque Nacional e desde 1987 Património da Humanidade, depois de já ter sido considerado pelo Governo colonial alemão uma reserva de caça, nos princípios do século XX.

Ernest Hemingway tem em As Neves do Kilimanjaro um dos seus mais bonitos e entusiasmantes livros. Publicado pela primeira vez em 1936, as suas páginas revelam-nos diversos contos, entre os quais o que dá título ao livro, e que também já foi adaptado, em 1952, ao cinema, com as envolventes interpretações de Gregory Peck e Ava Gardner. Harry Street, um escritor, é gravemente ferido durante um safari. Uma gangrena deixa-o numa situação desesperada, e é junto da sua mulher da altura que vai recordando os seus antigos amores e os livros que escreveu. É numa luta pela própria sobrevivência que Streeet nos faz chegar, entre delírios e quase sempre de uma forma intensa, vários episódios da sua vida.

Uma luta pela sobrevivência que hoje é das neves do Kilimanjaro, e que tudo indica está condenada ao fracasso. Caso Hemingway escrevesse a sua obra em 2020, o seu título seria outro, ou o mais certo era nem ter tido inspiração para o escrever, tão fascinante se torna aquela visão branca em plano continente africano. Resta agora esperar que um qualquer fator improvável inverta a tendência natural e os prognósticos dos cientistas. Missão impossível, diz quem sabe.

 

Artigo originalmente publicado no nº 50, edição de Março 2011 do Africa 21

por Miguel Correia
Vou lá visitar | 7 Abril 2011 | kilimanjaro, natureza, Quénia, tanzania, viagem