Ar de férias. Argel: Panaf ou a ilusão de uma situação

Chego ao aeroporto de Argel e enquanto procuro o meu amigo um senhor aproxima-se e pergunta-me se eu procurava os Jesuítas. Um outro pergunta-me se eu era a Rosa. A partir desse momento soube que a minha mochila era um indício de estrangeirismo, encontrava-me numa terra de não-turistas.
O caminho que vai do aeroporto ao centro de Argel encontrava-se para o meu regozijo decorado com milhares de bandeiras, três por cada candeeiro. Duas argelinas e uma cubana ao centro. A combinação entre as três resultava numa espécie de Cocktail Molotov tendo em conta o imaginário ainda hoje activo sobre a revolução cubana e a guerra de independência da Argélia contra o jugo colonialista francês.


Procurei saber o objectivo da visita oficial de um dos Castros à Argélia, não obtive resposta. Não cheguei a saber se era Fidel ou Raúl, os jornais nada disseram… A única resposta que obtive foi três dias mais tarde quando uns quantos funcionários retiravam as bandeiras dos candeeiros. Um dentre eles abanava impulsivamente uma das bandeiras cubanas no sentido dos carros que passavam, como se o socialismo de Castro tivesse ganho o aparente socialismo argelino, numa simples partida de xadrês.
Por sorte de amador, a minha estadia inseriu-se optimalmente no II Festival Panafricano (Panaf) de Argel . O primeiro decorreu há 40 anos, em 1969, o terceiro é possível que se realize em 2049, 40 anos depois do segundo, em 2009. Os grandes nomes dos palcos africanos estavam presentes, descobri Ismael Lo, dançei ao ritmo de Salif Keita, aplaudi o som de Manu Dibango e entrei em orgasmo colectivo com o resto do público no concerto de Cheb khaled! Assisti pela primeira e talvez a minha última vez a uma peça de teatro vinda da Guiné Conacry.


Conheci as salas de cinema argelinas, com os comentários em directo dos espectadores e o choro das crianças presentes na sala. Diria destas sessões um espectáculo interactivo, uma nova abordagem para mim das sessões cinematográficas. Só faltou o fumo dos cigarros que presenciei um dia num festival de cinema em Marrakesh… J’adore. A capacidade de abstração do que se passa na sala é assim uma pista sobre se o filme é horrível, mau, bom ou exelente. Limitei-me ao cinema clássico árabe… Vi “Alexandrie, pourquoi?” de Youssef Chahine (Egipto), “Aziza” de Abdellatif Ben Ammar (Tunísia) e « Chronique des années de Braise » de Mohamed Lakhedar-Hamine (Argélia). Este último trata da guerra pela independência da Argélia fora das grandes cidades, uma descoberta para mim uma vez que as minhas referências sobre a guerra limitavam-se à “Bataille d’Alger”. Quando o personagem principal enfrenta fisicamente o carrasco francês ouço repentinamente uma voz atrás de mim que diz: “C’est magnífique!”.
E se a guerra de independência e os seus martíres é ainda bem presente no espírito de todos os argelinos, alimentada continuamente pela instituição FLN (Front de Libération National), uma outra guerra entra nos costumes de uma margem da sociedade, nomeadamente aquela com quem tive oportunidade de trocar duas ou três palavras. O terror islâmico paira no ar. É deste tema que a curta metragem de Khaled Benaïssa (“Sektou” 2009) desenvolve num esquema onírico. No debate final sobre esta mesma curta, o realizador cita o seu avô para responder a uma das questões do público: “On s’est débarrassé du colonialisme francês, ce n’est pas toi (mouvement islamique) qui va me coloniser à nouveau”.

Entre os actos desta grandiosa festa panafricana, não me foi difícil ouvir o que atrás dela se diz, contesta e gangrena. Tal como no Euro 2004 em Portugal, os meios investidos no Panaf parecem não ser justificados perante as condições de vida às quais uma grande parte da população argelina se submete. No entanto, eu diria que mais vale financiar a gratuitidade de espectáculos artísticos de qualidade com o dinheiro do petróleo que estádios de futebol com o dinheiro dos impostos. Noutros modos, disse-me uma rapariga: “pois de facto prefiro um bom concerto à construcção de uma mesquita com um orçamento desmesurado”. Em consequência: Estádio = Mesquita! O que é que é mais alienatório? Um espectáculo de dança tribal do sul do Niger, um jogo de futebol entre a Argélia e o Egipto ou uma missa dada pelo padre António em Tarouca? Simmmm… os gostos não se discutem.

Mas, as críticas vão muito mais além do que estas discussões impulsivas. A evolução da sociedade argelina em 40 anos é o tema que emerge a partir do momento que se fala do contexto socio-político no qual os dois festivais se inserem. Em 1969 a Argélia era o território onde se encontravam vários revolucionários africanos para organizar a luta pela independência de países ainda sob o jugo colonialista, entre outros Amílcar Cabral. Embora num Estado fechado e dictatorial, Boumediene conseguira criar o seu grupo de fans através do seu modelo económico terceiro-mondista. O Panaf 69 inscreveu-se assim, segundo alguns, num clima de abertura ao “outro” e de curiosidade intelectual por culturas diferentes, a festa fazia-se em todos os cantos de rua. Não estava presente no Panaf 69 para o confirmar ou infirmar, no entanto, no Panaf 09 foram assinalados alguns actos agressivos contra as vestimentas “demasiado” ligeiras de certas dançarinas africanas. Foi com esta notícia no jornal que cheguei a Argel. A apreensão de ver repetir actos desta natureza foi o ganha pão da segurança do festival. Paradoxal é assim o Estado de um país que organiza um Festival Panafricano mas que paralelamente deixa florescer no seu antro e às suas custas e costas a intolerância religiosa contra o “outro” diferente. Sobre isto, sim, posso testemunhar em 2009.

Num outro âmbito ainda, o dos poetas castrados na Argélia, tive a oportunidade de acompanhar Mustafa Benfodil numa acção político-cultural de oposição. Autor de alguns romances como “Clandestinoplis”, “Archéologie du chaos amoureux”, entre outros, Mustafa é também autor de peças de teatro, a última delas chamada “Les Borgnes ou le colonialisme intérieur brut”. Enquanto no estrangeiro esta peça é encenada, na Argélia é censurada. Mustafa decidiu assim convidar-se a si próprio ao Panaf, começando um movimento chamado “pièces détachées – lectures sauvages”. Este movimento consiste em fazer leituras de extratos da peça “les Borgnes” em lugares públicos sem autorização. Nesta primeira representação que assisti fomos presenteados com o Manifesto do Chkoupisme, que traduzido em português daria o Manifesto do foda-se, ou seja, do fodismo.

Mais do que em Damasco, Nablouse ou em Fez, senti-me completamente perdida em Argel. As fronteiras sociais não são explícitas mas implícitas, não as conhecendo corremos o risco de as ultrapassar e acarretar com as consequências. Senti-me mulher como num balneário de homens, senti-me estrangeira como no Bronx. Há muito que me deixei de orientalismos, não procurei esse oriente dos quadros, sabia que não o ia encontrar. Não obstante, assumo, que compreender certas conversas na medida em que o francês encontra-se incrustado na linguagem dos habitantes de Argel pareceu-me algo estranho. Aprendi uma lição….Constatar que o colonialismo deixou as suas marcas culturais é uma necessidade, aceitar que as sociedades colonizadas outrora se desenvolvem com base nesse passado é outra necessidade, reconhecer e sobretudo RECONHECER que essas mesmas sociedades podem inventar novas formas de linguagem é uma evidência e uma urgência.
Em todos os cantos de Argel fui obrigada a digerir a frase avassaladora: “l’Etat de droit commence dans la police”, para relativizar a coisa, quando cheguei a Marselha engoli em seco um grande mural que afirmava: “Christ est mort pour nos pêchés”. Poucas são as palavras que ouvi de optimismo em relação ao futuro da Argélia, mas guardarei na minha memória os belos momentos que passei com os jovens com quem tive oportunidade de passar algum tempo. Guardarei na memória que falar da kabilia na Argélia não é a mesma coisa que falar do Curdistão na Turquia, encontrei assim facilmente Aït Menguelet numa loja de Argel. Nunca esquecerei a dança harmoniosa dos arrumadores voluntaristas de carros em toda a cidade. Sorri como nunca com o humor argelino.

por Inês Espírito Santo
Vou lá visitar | 21 Dezembro 2011 | argéliam, festival panafricano, norte de áfrica, panafricanismo