Visitando pastores com Ruy Duarte de Carvalho: uma perspectiva africana sobre o progresso, a natureza e o nosso futuro comum

Ruy Duarte de Carvalho foi um antropólogo, ficcionista, ensaísta, poeta e cineasta de nacionalidade angolana, nascido em Portugal. Ao longo da sua vida, serviu-se sobretudo da escrita e do cinema para reflectir sobre temas como o colonialismo, o desenvolvimento, a sustentabilidade ambiental, a identidade e o nacionalismo, tendo como referência a realidade de Angola, o país que escolheu como seu. A partir deste enraizamento em África, desenvolveu um pensamento original e coerente a respeito dos processos de subordinação económica, política e ideológica decorrentes do que apelidou de expansão ocidental em curso. Uma atenção constante aos processos da longue durée afastou Ruy Duarte de Carvalho da tentação reducionista das ideologias em voga, desde logo a do progresso a qualquer custo, tendo denunciado os custos humanos e ambientais de tal projecto. Sendo um adepto da causa independentista, escapou também a um utopismo nacionalista muito difundido, iluminando as relações complexas que se estabelecem entre o Estado, os actores internacionais, as elites nacionais e os vários “outros” que subsistem numa nação angolana unificada, mas não una. Embora o seu trabalho académico tivesse por base a antropologia, Ruy Duarte de Carvalhou ultrapassou largamente os limites dessa área disciplinar, sendo possível reconhecer-lhe uma importante reflexão de contornos filosóficos sobre—para usar palavras suas—a “ideologia totalizante e totalitária do progresso e da complexificação tecnológica” (2008, p. 24).

Neste ensaio começamos por traçar uma resumida biografia de Ruy Duarte de Carvalho, situando-o no contexto do fim do Império português e da independência angolana. Faz-se referência a acontecimentos marcantes no campo político e sobretudo ao quadro cultural e mental, pois o que se procura é a inteligibilidade de um percurso de vida e académico singular, mas simultaneamente enraizado na realidade de Angola. Foca-se de seguida alguns dos conceitos propostos por Ruy Duarte de Carvalho, desde logo o de “processo de ocidentalização em curso”, de que criticava a adopção acrítica pelos dirigentes angolanos. A noção de “jogo do outro” leva-nos ao problema da destruição das práticas tradicionais em nome de uma modernização entendida como submissão à tecnociência, independentemente dos efeitos devastadores que esta produza sobre as populações. Finalmente, debruçamo-nos sobre a sua proposta de abandonar a velha base dualista da filosofia ocidental para abraçar um neo-animismo capaz de recolocar a humanidade em relação com a Natureza, onde vê a possibilidade de sanar os principais problemas do nosso tempo.

De agrónomo a poeta, a realizador, a antropólogo, a escritor: aspectos de um percurso angolano singular

Ruy Alberto Duarte Gomes de Carvalho nasceu a 22 de Abril de 1941 em Santarém. Portugal era então governado por António de Oliveira Salazar, a figura cimeira de um regime autoritário que impunha os princípios do corporativismo, do nacionalismo orgânico e do militarismo a um país pobre, fracamente industrializado e maioritariamente analfabeto. A população era alvo de uma eficaz e ubíqua máquina de propaganda que exaltava quer a ruralidade da “metrópole”, quer uma suposta vocação “civilizadora” dos portugueses relativamente aos habitantes dos domínios coloniais. Ainda criança, foi levado pela família para Angola, que era então considerada a mais promissora das colónias, o que não implicava que escapasse às dificuldades estruturais do colonialismo português. O estabelecimento de en- trepostos em partes do litoral angolano ainda no século XV permitia afirmar quinhentos anos de presença portuguesa naquele território, mas as fronteiras da colónia eram bastante mais recentes, datando somente da última década do século XIX. Afinal, foi muito lentamente que a colónia tomou a forma que seria a da Angola actual, alastrando a partir dos enclaves costeiros de Luanda e Benguela, que durante séculos constituíram sobretudo pontos de recolha e expedição de escravos para o Brasil, para as Caraíbas e para São Tomé. A passagem de um sistema esclavagista para uma economia baseada na produção intensiva de matérias primas para exportação (café, cana-de-açúcar, algodão e sisal) fora lenta e tardia, bem como a conquista efectiva do espaço angolano, que nalgumas regiões se concretizara em inícios do século XX.1 Entre os territórios mais tardiamente “pacificados” — para usar um eufemismo da época—contava-se o Sul semi-desértico. Foi nessa região de fronteira, na vila de Moçâmedes, que Ruy Duarte de Carvalho cresceu sob influência de um pai aventureiro, caçador de elefantes, o que constituiu um dos elementos determinantes do seu percurso de vida. A paisagem semi-desértica, o contacto com a natureza e a proximidade à população africana, sobretudo aos nómadas, causaram nele uma impressão profunda que marcaria o seu percurso pessoal e profissional, como amplamente assinalou em reflexões de natureza biográfica.2

Na adolescência, Ruy Duarte de Carvalho regressou à então chamada metrópole para prosseguir os estudos na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Quando voltou a Angola no final da década de 1950, estava já munido de um diploma de estudos médios que o habilitava a trabalhar como regente agrícola. Foram anos em que a colónia—então rebaptizada de “província ultramarina” para fins propagandísticos—registou um significativo crescimento económico, mas também assistiu ao desenvolvimento de uma consciência anti-colonial, patente no surgimento de movimentos culturais e de partidos políticos clandestinos favoráveis à independência. Como referiu Harold Macmillan num discurso célebre, ventos de mudança sopravam no continente africano — ventos que o regime de Salazar fez por ignorar, agarrando-se à suposta excepcionalidade do colonialismo português. Mas em vão. Em Março de 1961, na sequência de outros episódios de violência, uma insurreição de grandes proporções comandada pela União das Populações de Angola (UPA)3 alastrou no Norte de Angola, deixando um rasto de milhares de mortos.4 Trabalhando nessa altura ao serviço da Junta do Café, Ruy Duarte de Carvalho viu-se colocado no próprio terreno dos ataques violentos perpetrados pela UPA, que foram seguidos do contra-ataque mais violento ainda das autoridades coloniais e das milícias. Tinha início uma guerra anti-colonial que duraria mais de uma década (1961-1975) e faria de Portugal “o último reduto imperial da Europa” (Garcia et al, 2017, p. 13).

Isolados da opinião pública europeia por uma censura poderosa, muitos portugueses embarcaram na defesa do colonialismo—significativamente, um dos sucessos musicais de 1961 foi o hino bélico “Angola é nossa!”. Esse não foi o caso do jovem-adulto Ruy Duarte de Carvalho que, pelo contrário, tomou nesta ocasião consciência da sua “conversão à condição de angolano” (2008, p. 14). Chocado pelo “quadro de horror geral […], fruto quer da feroz insurgência quer da perversa e ainda mais feroz repressão à insurgência” (2011a, p. 13), tornou-se apoiante da causa nacionalista. Realizou algum trabalho clandestino a favor do intelectual e urbano Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),5 mas os postos de trabalho em zonas rurais motivaram o rompimento desses laços. Por isso, e ao contrário da maioria dos intelectuais da sua geração, Ruy Duarte de Carvalho construiu a sua identidade angolana, não pela via partidária, mas antes por via literária, através do contacto com alguma poesia que ia sendo publicada em Angola,6 assim como com a prosa de José Luandino Vieira, na qual descobriu a consciência de uma “alma Angolana”. Reconheceu paisagens e ambientes que lhe eram caros também na literatura brasileira que chegava a Angola contornando a censura, sobretudo no escritor João Guimarães Rosa, que é uma referência assídua nas suas obras.7

Naquela que foi a última década do império português, Ruy Duarte de Carvalho ocupou vários postos de regente agrícola no Sul de Angola e em Moçambique, enquanto começava a escrever poesia, publicando o primeiro livro, Chão de Oferta, em 1972. Viajou pela Europa na tentativa de integrar a luta de libertação, mas sem sucesso. Finalmente, largou a carreira de regente agrícola para estudar cinema em Londres. Devido a esta mudança de rumo, foi enquanto realizador de cinema que assistiu ao conturbado fim do Império português em Angola, cujas semanas finais filmou para o documentário “Uma Festa para Viver”.8 Apesar do clima de violência que provocou a fuga precipitada da quase totalidade dos colonos,9 Ruy Duarte de Carvalho, então com 34 anos, optou por permanecer em Angola e pedir a nacionalidade angolana. A situação tornara-se explosiva a partir do momento em que os princi- pais movimentos nacionalistas armados—a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA, uma versão remodelada da UPA), o MPLA e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA)10—desrespeitaram o acordo assinado em Janeiro de 1975 com a potência ainda colonizadora e iniciaram uma batalha pelo controlo da capital. A luta rapidamente escalou, dando lugar a uma guerra civil que havia de durar quase três décadas (1975-1991 e 1992-2002), durante as quais o MPLA manteve o controlo de Luanda, cidade onde Ruy Duarte de Carvalho passou a residir.

Na relativa paz da capital de Angola, a euforia da independência e da construção da nação combinava-se com o colapso das redes de prestação de serviços e de produção e distribuição de bens essenciais, num quadro de rápido afundamento dos vários sectores da economia, com excepção da extracção do petróleo. Do ponto de vista político, foi nessa época que o MPLA, que passara de movimento nacionalista armado a partido no poder, se assumiu oficialmente como marxista-leninista, num processo não isento de divergências e de tensões. A década que se seguiu à independência foi marcada pela tomada do poder por uma reduzida cúpula política, pelas purgas de inimigos internos,11 pela planificação económica de inspiração soviética e pelo alastramento da guerra civil a várias províncias do interior, mas também foi um tempo de empenho na construção do imaginário da nação. Meios como a literatura, o teatro, o cinema e a historiografia foram então chamados a enunciar a nação angolana que a luta nacionalista tinha como pressuposto, mas que carecia ainda de simbolização.12 Ruy Duarte de Carvalho notabilizou-se nessa fase como realizador de documentários para a televisão angolana (TPA) e para o Instituto de Cinema. Aproveitando o seu conhecimento do mundo rural, produziu filmes de carácter marcadamente documentarista e etnográfico, na “peregrina intenção de dar Angola a conhecer aos próprios angolanos”, como refere ironicamente na sua autobiografia (2011a, p. 15).13 Os modos de vida e as representações simbólicas das populações do interior foram o tema desses filmes, que escapavam à gramática do exoticismo típica das representações coloniais, mas que igualmente se afastavam do programa homogeneizante e “progressista” dos intelectuais angolanos revolucionários—o que chegou a valer-lhe a admoestação de uma comissão política (2003, pp. 239-240).

Ruy Duarte de Carvalho também continuou a publicar poesia, e lançou-se na prosa com Como se o Mundo não Tivesse Leste (1977), um livro de contos ambientado no interior rural de Angola. Este destaca-se, não tanto pela crítica ao colonialismo, que era de rigueur, como pela atitude de respeito pelas populações pastoris, nas quais descobre formas autóctones sustentáveis de relação com a natureza e com os outros. Como que antecipando o antropólogo que viria a ser, Ruy Duarte de Carvalho descreve modos de vida que reproduzem práticas ancestrais, recusando-se a aceitar o preconceito vigente contra a tradição e a hierarquização implícita que assume como irracionais todas as práticas que não pertençam ao universo cultural ocidental.14 Uma postura que o distanciava do programa modernizador e anti-tradicionalista do MPLA — vale a pena lembrar que, no âmbito das correntes de pensamento de cariz marxista-leninista, era a destruição das estruturas tradicionais que abria a possibilidade de ascender a um estágio superior da humanidade, pelo que qualquer tentativa de manter ou promover os modos de vida e as crenças tradicionais era, logicamente, repudiada ou, na melhor das hipóteses, remetida para o âmbito do folclore.15 Entre a vasta produção fílmica desses anos destaca-se Nelisita (1982), um filme realizado com populações nómadas do planalto sul, que lhe valeu vários prémios internacionais. A memória descritiva deste filme proporcionou ainda a Ruy Duarte de Carvalho um diploma da École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, e com este uma nova mudança de vida.

Bem pode dizer-se que na década de 1980 Ruy Duarte de Carvalho voltou a mudar de pele, sem mudar de substância.16 Ele, que já fora regente agrícola e realizador de cinema, deslizou então para o ofício de antropólogo. O trabalho etnográfico que realizou entre os pescadores da Ilha de Luanda, tema da tese de doutoramento em Antropologia Social e Etnologia na EHESS—publicado como Ana a Manda, os Filhos da Rede (1988) — , ainda foi acompanhado de um documentário, mas o cinema seria abandonado em detrimento da antropologia e de uma carreira de professor na Faculdade de Arquitectura de Luanda. A produção científica abriu-lhe então a porta de várias universidades, tendo sido professor convidado em Paris, São Paulo, Bordeaux e Coimbra.

Foi já como antropólogo que, a partir de inícios da década de 1990, Ruy Duarte de Carvalho passou a fazer longas estadias no Sul de Angola, aproveitando a reabertura das estradas proporcionada pelo Acordo de Bicesse, que levou às eleições de 1992, as primeiras desde a independência. Disputadas pelos dois principais movimentos armados, que nunca chegaram a desmantelar as suas estruturas militares, as eleições fracassaram quanto ao objectivo de pacificar Angola. A renhida primeira volta eleitoral terminou com a perseguição e assassinato de centenas de elementos da UNITA em Luanda e a retoma da luta armada, que atingiu a população civil com extrema brutalidade (Heywood, 2011)17. O quadro internacional, porém, era completamente distinto do anterior. A derrocada da URSS no final da década de 1990 e o consequente fim da Guerra Fria favoreceram a ascensão, um pouco por todo o mundo, de ideologias favoráveis ao liberalismo económico. Também o MPLA-partido, liderado por José Eduardo dos Santos18, deu por finda a experiência socialista, embarcando num processo de liberalização económica que foi muito apressado pela expectativa (não concretizada) de perder as eleições. No curto espaço de tempo que durou o acordo de paz, a nomenklatura do MPLA impulsionou o desmantelamento de grande parte do aparelho de Estado e colocou os bens públicos em mãos privadas, nomeadamente nas mãos dos seus próprio membros, dos detentores de altos postos militares e de outros fiéis, criando uma classe dominante rica, clientelar, cleptocrática, conspícua, fiel ao líder e imensamente poderosa.19 A instalação súbita de um regime de tipo capitalista não deixou de ser assinalada pelos intelectuais nacionais e estrangeiros, que denunciaram o aumento da desigualdade e a corrupção endémica num país assolado pela guerra e cada vez menos capaz de prover às necessidades das populações20. Um país pobre, onde o grupo dominante—do ponto de vista político e, desde então, também económico—ostenta a riqueza de forma despudorada. Se a crítica ao regime se generalizava, ela não deixava porém de estar centrada em Luanda, que prosseguia em acelerado crescimento demográfico e se consolidava como sede incontestada do poder em Angola, apesar da degradação progressiva das infraestruturas urbanas.

É esta tendência para reduzir a realidade angolana à da cidade de Luanda que Ruy Duarte de Carvalho contraria quando passa a rumar periodicamente ao Sul. Mais estranho ainda, tendo em conta os padrões angolanos, ele toma os pastores Cuvale,21 nómadas e, segundo a perspectiva urbana e centralista, “atrasados”, como objecto central de estudo, bem como de uma intervenção cívica intensa. Em resultado desse trabalho junto de “sistemas que a perspectiva modernista e evolucionista entende como dos mais ‘arcaicos’” (2008, p. 36), Ruy Duarte de Carvalho publicou na revista Lusotopie o artigo “O futuro já começou? Transições políticas e afirmação identitária entre os pastores kuvale (herero) do Sudoeste de Angola” (1995) e, dois anos depois, o livro Aviso à Navegação (1997). Nestes trabalhos, procura esclarecer as implicações da nova orientação económica do regime sobre os modos de vida, e a própria sobrevivência, das populações pastoris. Incidindo sobre aspectos só aparentemente banais, mostra que, ao seguir o credo liberal e deixar à iniciativa privada o abastecimento dos remotos postos de venda de que os nómadas necessitam para se proverem de cereais e para escoarem o excedente de gado, o governo agrava as condições já precárias de vida destes pastores. Pouco surpreendentemente, Aviso à Navegação não causou o impacto esperado junto dos decisores políticos angolanos a quem se destinava. De certa forma, pode dizer-se que faltava a Ruy Duarte de Carvalho criar o público capaz de o acolher, o que acabaria por acontecer em 1999, com a publicação de Vou Lá Visitar Pastores. Difícil de encaixar numa categoria específica, o livro constitui um misto de crónica de viagem, ficção, análise e relato etnográfico, guiando o leitor numa surpreendente viagem no espaço e no tempo através do território dos Cuvale, das suas tradições e modo de vida. Lançado em Portugal e no Brasil, o livro valeu ao antropólogo angolano o sucesso fora do país, e muito para além do relativamente restrito círculo académico.

O fim da guerra civil em Angola em 2002, conseguido através da derrota brutal da UNITA enquanto movimento armado e da morte do seu líder histórico Jonas Savimbi, foi recebido com euforia em Luanda, sendo dominante a ideia de que se inaugurava uma nova etapa na história do país.22 Para além da vitória sobre o inimigo, o MPLA-governo beneficiou então de um aumento sem precedentes das rendas do petróleo, em alta no mercado internacional, o que lhe abriu a possibilidade de embarcar num programa de reconstrução nacional de escala gigantesca — para alguns, faraónica. Entendido por muitos como um sucesso estrondoso, o plano de modernização de Angola foi encarado com cepticismo por Ruy Duarte de Carvalho, que viu nele uma tentativa de refazer o país à imagem da sua classe dirigente—urbanocêntrica, obcecada por uma aparência de modernidade concebida como adesão a padrões de consumo e lifestyle ocidentalizados, e desinteressada do destino das camadas rurais e pobres da população. Este choque com o projecto reformista encabeçado pela clique governamental de José Eduardo dos Santos motivou-o a uma forte intervenção pública a favor das populações nómadas de Angola, de que resultou a publicação de vários volumes de ensaio. Entre estes merece destaque Actas da Maianga, de 2003, livro onde Ruy Duarte de Carvalho mergulha no tema da guerra em Angola e procura compreender—situando-a na longa-duração e no contexto global—uma crise de tal modo “instalada, confirmada e sedimentada”, que chega a ser percebida e vivida pelos angolanos como “normalidade” (2003, p. 13). A publicação em 2008 de uma versão aumentada de A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita, onde reúne uma grande quantidade de textos destinados a apresentações orais, permite-nos entrever não apenas a variedade de temas a que se dedicou nessa época, como sobretudo a coerência das suas intervenções em defesa das vítimas do colapso angolano. Ambos os livros foram publicados em Lisboa pela editora Cotovia, que re-editou então parte da sua obra poética, para além de lançar a trilogia Os Filhos de Próspero, onde temas como as políticas da memória, a identidade angolana, a promoção da modernização e o seu reverso no encapsulamento em modos de vida tradicionais, são tratados num misto de ficção, etnografia e filosofia, recorrendo a uma linguagem que também balança entre a poesia, a escrita científica e o ensaio. Pelo meio, e num registo algo diferente, Ruy Duarte de Carvalho ainda publicou Desmedida em 2007, a narrativa de uma viagem erudita através do Brasil, onde a diferença da paisagem proporciona afinal uma reflexão sobre os trânsitos entre o continente sul-americano e o africano.

O próprio Ruy Duarte de Carvalho resumiu o seu percurso de vida como “partindo da poesia e entrando pela antropologia adentro pela porta do cinema, e deixando que a antropologia, por sua vez, me catapultasse para a ficção, que ando finalmente a arriscar” (2008, p. 22). Morreu a 12 de Agosto de 2010 em Swakopmund, na Namíbia, para onde se mudara dois anos antes para estudar e escrever.

Expansão ocidental e obstinação ocidentalizante

Durante as quase duas décadas em que visitou regularmente o sul de Angola e os pastores transumantes, Ruy Duarte de Carvalho foi um relator atento e crítico daquilo a que se referiu frequentemente como “expansão ocidental em curso” ou “processo de ocidentalização à escala planetária”. E pode dizer-se que a sua colocação no espaço e no tempo o tornou especialmente apto para este exercício de análise. Não é certamente por acaso que Ruy Duarte de Carvalho situa as origens do movimento expansionista, que entende como um processo de longa duração, nas viagens de exploração marítima impulsionadas pela coroa portuguesa a partir do século XV—viagens que tanto destaque recebiam nos manuais escolares da sua juventude. Mas, contrariamente ao que pretendiam esses livros, focados em heroicizar uma época considerada de ouro, Ruy Duarte de Carvalho vê a construção do império marítimo português como uma consequência do crescimento demográfico e económico europeu, e como uma primeira expressão da vocação expansionista do ocidente.23

Séculos após essas primeiras viagens e conquistas, e sob o impulso da revolução industrial, a vocação expansionista ter-se-ia consolidado no movimento imperialista e colonialista de oitocentos e novecentos. Também em relação a este aspecto, a situação de filho de colono instalado numa zona ainda de fronteira proporcionou a Ruy Duarte de Carvalho um ponto de vista privilegiado. Tardiamente em relação ao resto da colónia, assistiu à violenta integração das populações africanas num sistema que assumia tanto uma hierarquia cultural e de côr da pele, como uma hierarquia dos modos de produção: era valorizada a produção intensiva, destinada à exportação de matérias primas e baseada no conhecimento dito científico; eram desvalorizadas as práticas produtivas locais, de cariz extensivo, reguladas pela tradição. Esta hierarquização imposta pelo colonizador materializou-se no Sul de Angola através da introdução de monoculturas obrigatórias, bem como da instalação de grandes fazendas destinadas à agro-pecuária, que rapidamente entraram em choque com o estilo de produção dos pastores nómadas, baseado na transumância. O governo colonial, respaldado na modernidade do seu empreendimento “civilizador”, interveio militarmente em 1940 a favor dos grandes fazendeiros e contra os Cuvale. Foi então lançada a campanha militar que alguns consideram ter sido a última etapa da conquista de Angola, a chamada “guerra dos mucubais”, na sequência da qual milhares de pastores foram mortos e os sobreviventes desterrados para o arquipélago de São Tomé e Príncipe.24 Ruy Duarte de Carvalho escreveu várias passagens a respeito deste episódio, esclarecedor quanto ao modo como as ideologias modernizantes podem materializar-se em práticas de dominação, de exclusão, e até de extermínio.

A luta independentista foi apresentada amiúde como uma oportunidade de acabar com a dominação de África pelo ocidente e de devolver aos povos de Angola o controlo sobre o seu destino. Sem pôr em causa a validade da luta pela independência angolana, de que foi sempre apoiante, Ruy Duarte de Carvalho guardou uma distância crítica relativamente ao efectivo cumprimento destes objectivos pelo MPLA-governo—uma atitude possibilitada pela relativa independência que sempre manteve em relação ao partido no poder. A análise que fez da realidade angolana no pós-independência levou-o a considerar que a libertação do domínio colonial não constituiu de facto o fim do processo de ocidentalização em curso desde há vários séculos naquele território. Ciente das contradições entre a retórica da africanidade adoptada pelos independentistas e a matriz ocidental e ocidentalizante das ideologias que foram sendo adoptadas pelo Estado angolano, quer o nacionalismo, quer o marxismo-leninismo, quer mais tarde o neo-liberalismo, Ruy Duarte de Carvalho viu materializar-se o velho adágio segundo o qual é preciso que tudo mude para que tudo fique nas mesma — “Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi”, como refere Lampedusa na novela Il Gattopardo. Para Ruy Duarte de Carvalho, o processo de expansão ocidental, iniciado no Renascimento e impulsionado pelos imperialismos de oitocentos, terá resistido à vaga das descolonizações para chegar até aos nossos dias sob a forma da globalização. Esta consiste numa mundialização económica que se apoia fortemente na suposta superioridade da ciência, da técnica, mas também do modo de vida e da mentalidade ocidentais, um “processo único e planetário que a todos impõe os efeitos e as consequências das suas dinâmicas, das suas lógicas e da imposição do seu modelo de procedimentos e de resoluções” (2003, p. 38).

Ruy Duarte de Carvalho ressalta que esta “dinâmica da hegemonia ocidental” é fundamentada numa “ideologia do progresso autoritariamente linear, implacável e obstinadamente evolucionista, mascarada a maior parte das vezes por uma doutrina paternalista, humanitarista e populista” (2008, p. 43). Uma ideologia do progresso que subentende a existência de uma única possibilidade de percurso político, social e sobretudo económico para todos os países; que sugere que as diferenças entre países resultam de estarem em diferentes etapas de um trajecto único e teleologicamente orientado; que é cega às noções de centro e periferia e recusa considerar a reprodutibilidade dos processos de subordinação económica, política e cultural. A aceitação desta lógica, que considera perversa, não é apenas impulsionada pelos ocidentais, diz-nos Ruy Duarte de Carvalho, mas também pelos ocidentalizados que detêm o poder político e económico nas antigas colónias, os quais “herdaram dos poderes coloniais não só o lugar da decisão mas também o ângulo de visão” (2008, p. 43). E vale a pena lembrar que o grupo social de onde estes políticos foram maioritariamente cooptados—os historiadores referem-se-lhe como uma elite crioula—chegou ao poder graças a uma posição privilegiada dentro do sistema colonial, por muito que essa colocação seja repudiada pelas narrativas míticas que os justificam e que constroem no plano simbólico a nova nação.25 Em Angola, a identificação dos dirigentes políticos, mas também dos intelectuais, com os estilos de vida e com os padrões de consumo ocidentais (não tanto com o modelo político democrático) foi quase total, por contraste com o que aconteceu noutras partes do mundo, como na América do Sul, onde a herança pré-colombiana foi reclamada com orgulho por certos sectores da sociedade—pense-se nos exemplos de Frida Kahlo e Diego Rivera no México, ou no movimento “antropofágico” de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral no Brasil. Note-se ainda que estes grupos mais ocidentalizados baseiam o seu poder precisamente na adesão a modelos que consideram ontologicamente superiores, que os justificam, e que por sua vez impõem acriticamente às populações governadas através de um programa de modernização a qualquer custo.

Recorrendo a uma argumentação que se diria próxima à do activista da libertação africana Frantz Fanon—embora destituída da carga de radicalidade que caracteriza o autor de Peau Noire, Masques Blancs—Ruy Duarte de Carvalho intui que o processo “premente” e “implacável” de ocidentalização provoca no ocidentalizado um sentimento de inferioridade que este procura compensar adoptando de forma subserviente as práticas que mais facilmente ostentam aos olhos dos outros a sua ocidentalização. Isto enquanto, por outro lado, renega qualquer elemento que possa associá-lo ao que sente que o inferioriza, nomeadamente ao que ele próprio identifica como africano. Ou seja, a adopção dos modos e modelos ocidentais surge como uma tentativa de fazer esquecer, aos outros e a si próprio, uma africanidade que é motivo de embaraço e vergonha:

quem estranhará que o ‘ocidentalizado’, enquanto agente ‘desesperado’ da ocidentalização, […] se constitua como expressão de um fundamentalismo, de uma obstinação ocidentalizante entendida como a única via que o pode ‘libertar’, ‘distanciar’ da condição de Africano tal como o Ocidente o vê e ‘inferioriza’ perante os Ocidentais? A sua afirmação […] dificilmente pode conjecturar-se virada para os terrenos da contestação dos ‘valores’ que conferem ao Ocidental, precisamente, a evidência, os sinais e os resultados da sua ‘vantagem’ … Esse é um luxo reservado ao próprio Ocidental… O que resta ao ‘Ocidentalizado’ é, antes de mais, afirmar-se, redimir-se, visando um estatuto de paridade em relação ao Outro, adoptando e assumindo os modelos do Outro.

(Actas da Maianga, p. 159)

Desta atitude de subserviência em relação aos modelos ocidentais nasce um “fundamentalismo ocidentalizante”, que Ruy Duarte de Carvalho descreve como deixando de fora precisamente aquela parte do ocidente que “se confronta com a constatação da falência do redencionismo iluminista, universalista, positivista, e põe em causa as próprias dinâmicas e a fundamentação da ocidentalização geral” (2003, pp. 160-161). Trata-se de uma ocidentalização que não considera as correntes que no mundo ocidental se interrogam, que duvidam da bondade do “progresso”, e que por isso procuram soluções noutros modelos e noutras visões—abrindo-se por vezes ao que persiste fora da sua esfera de influência. O drama disto tudo, como diria Ruy Duarte de Carvalho, é que os proponentes angolanos da ocidentaliza- ção não deixam espaço para que se coloquem “hipóteses ‘outras’, ‘africanas’, ‘endógenas’, passíveis de convocação para ajudar a resolver os nossos próprios problemas.” (2003, pp. 160-161). Isto é, limitam a imaginação criadora e com ela a possibilidade de encontrar soluções adaptadas aos problemas específicos de Angola.

Nas malhas do jogo do outro

Para Ruy Duarte de Carvalho, a adopção acrítica dos modelos ocidentais tem como consequência a atitude que certeiramente apelida de cair nas malhas do “jogo do outro” (2003, p. 137) — um “jogo” metafórico que considera viciado desde o início, já que os países ditos “em desenvolvimento” não têm forma de se aproximarem de indicadores que valorizam processos produtivos e modos de vida muito distintos dos seus. Esta atitude manifesta-se de forma exuberante nas políticas que ironicamente apelida de “desenvolvimentistas”, pois o desenvolvimento que almejam traduz-se afinal num fino verniz de modernidade, espesso apenas o suficiente para produzir uma aparência de democracia, uma aparência de escolarização, uma aparência de eficiência administrativa, uma aparência de industrialização, e uma aparência de direitos humanos. Ruy Duarte de Carvalho salienta que as políticas de tipo desenvolvimentista se concretizam em medidas de cariz económico, educacional, sanitário e cultural que confundem modernização com ocidentalização, impondo às populações práticas exógenas que muitas vezes as prejudicam mais do que servem, produzindo aquilo que Ivan Illich chamava de pobreza modernizada (1977/2018). E isto sem sequer questionar tais práticas, ou compará-las com as soluções localmente enraizadas, as quais são assumidas como inerentemente “atrasadas”, “obscurantistas” e contrárias ao espírito do “progresso”—um progresso que é frequentemente equacionado como entrada na esfera do mercado. Se Ruy Duarte de Carvalho reconhece não ser permitido a países como Angola escusarem-se de “entrar no jogo”,26 também defende que estes talvez pudessem ser menos entusiastas, ou até mesmo críticos, relativamente a critérios que os colocam em perpétua desvantagem. Sempre cuidadoso em relação a excessos relativistas, Ruy Duarte de Carvalho esclarece não partilhar de um “radicalismo culturalista, relativista, segundo o qual todos os sistemas afinal se equivalem”, mas não deixa de assinalar que, ao optar sistematicamente pelas soluções exógenas, se cai na “atitude inversa, mais fundamentalista ainda, segundo a qual a solução há-de passar obrigatoriamente, não poderá deixar de passar, pela substituição radical de um sistema por outro” (2003, p. 169).

Remetendo à noção de “custos sociais do desenvolvimento” formulada pelo antro- pólogo e sociólogo francês Georges Balandier (1956, 1961), o fundador do influente Centre d’Études Africaines e da revista Cahiers d’Études Africaines, Ruy Duarte de Carvalho lembra os efeitos perversos das “incidências desenvolvimentistas” para questionar as vantagens da adopção irrestrita de toda e qualquer prática considerada “moderna”. Nesse sentido, sustenta a necessidade de conter, em vez de acelerar, o ritmo dessa modernização, de modo a evitar a desestruturação geral (social, económica, ética) e a decorrente miséria das populações que se vêem impedidas de aceder aos seus meios de sustento ancestrais:

Outra das noções que entretanto se banalizou mas parece continuar a não produzir qualquer eco, junto sobretudo dos decididores da acção, é a de que toda a perturbação desenvolvimentista comporta os seus custos sociais. Será talvez dizer o mesmo de outra maneira, está escrito e ouve-se por toda a parte, até no mais comum dos noticiários internacionais, e eu mesmo já o terei dito noutras ocasiões: não é indiferente a maneira de atingir o desenvolvimento. Populações, sociedades inteiras, vêem-se condenadas, em nome do progresso, a abdicar dos seus sistemas de relação com o meio e a colaborar em perfeitas campanhas de destruição das suas defesas a favor de interesses, lógicas, objectivos, estratégias que não os seus e em nome, às vezes, da proposta abstracta, impro- vável e quiça mesmo sem qualquer espécie de fundamento, de um bem geral que só se revelaria a longo termo e a troco do sacrifício de gerações sucessivas de “atrasados”… Haverá mais alguém interessado ainda em sacrificar-se? E a redenção aguardada, será a da desestruturação total e a da colocação de todos na dependência directa e sem remédio de um programa universal de crescimento ao serviço do império da finança? (Actas da Maianga, p. 168)

Não é despropositado ver nesta perspectiva afinidades com a noção de agroecologia proposta pelo investigador e activista chileno Miguel Altieri—também ele engenheiro agró- nomo de formação—que, entre outros cargos, dirigiu o programa da ONU para a Agricultura Sustentável. Este defende que a implantação de políticas agrícolas deve considerar, não ape- nas a produtividade imediata, mas os vários aspectos sócio-económicos, tais como o forta- lecimento da organização social e a diminuição da pobreza, assim como a sustentabilidade no longo prazo (Altieri, 1989 e Altieri et al, 1995). Tal como Altieri, Ruy Duarte de Carva- lho sustenta a importância de preservar, não apenas o equilíbrio ecológico, mas também o equilíbrio social de comunidades que resistiram quase “milagrosamente” (2003, p. 170) quer ao colonialismo, quer aos anos de guerra civil. Comunidades que vêem a sua sobrevivência ameaçada pela crescente apropriação de terras de pastagem comunitárias, que têm vindo a ser transformadas em “fazendas” e “ranchos” cercados. Cria-se assim uma situação permanente de insegurança alimentar que em períodos de seca se agrava consideravelmente, o que tem vindo a ser denunciado por instituições como a Amnistia Internacional.27

Crítico da introdução irreflectida de práticas exógenas, Ruy Duarte de Carvalho é favorável à preservação de certas práticas ancestrais, assentes num património de conhecimentos locais. Mais ainda, propõe que que estas sejam tidas em consideração nos processos de decisão, no que entende como um “programa de criatividade democrática que fosse além do lugar quase sempre caricatural e muito cínico que se confere e atribui a essas mesmas autoridades tradicionais. Tentar assim fazer intervir as experiências locais, e não apenas os ditames globais, para conjecturar futuros favoráveis ao interesse comum de todos e não apenas, ou sobretudo, para justificar certos presentes e interesses privados das elites” (2008, p. 32). Tal programa implicaria que as práticas e conhecimentos locais fossem estudados de for- ma não preconceituosa, sem serem caricaturados ou reduzidos a folclore pelos “especialistas” no exótico.28 Ou seja, seria importante “ter desses sistema endógenos um conhecimento adequado que fosse além dos lugares-comuns tão agilmente brandidos pelos decididores” (2003, pp. 167-170). No fundo, tratar-se-ia de “garantir a abertura para a contribuição de outras culturas, que não somente a ocidental, na programação do nosso presente com vista ao nosso futuro e não só em termos de adequação económica mas também de adequações ao modelo democrático e de direitos do homem, das sociedades e das minorias” (2008, p. 32).

Namibe, fotografia de Marta LançaNamibe, fotografia de Marta Lança

Esta perspectiva opõe significativamente Ruy Duarte de Carvalho ao “senso-comum ocidentalizado” adoptado pela classe dirigente angolana (2003, p. 160), e isto de várias formas. Desde logo, porque contraria uma noção de “atraso” fortemente infiltrada, ao mostrar os resultados produtivos vantajosos de certas práticas ditas tradicionais que, pela sua perfeita adaptação ao meio, permiram às populações que vivem da pastorícia transumante prosperar. Por outro lado, porque põe em causa o próprio sistema usado pelos decisores políticos angolanos para classificar, quer as populações, quer os territórios, quer a fauna que deles retira o seu sustento, no qual vê um triplo preconceito. Em primeiro lugar um preconceito muito arreigado contra os Cuvale, que Ruy Duarte de Carvalho insere num processo de longa duração que oporia desde há milénios sendentários a nómadas.29 Em segundo lugar um preconceito relativamente aos espaços semi-desérticos onde se movem os pastores, que são vistos como desolados e inférteis, apesar da sua capacidade para sustentarem grandes rebanhos em regime de transumância. E, finalmente, um preconceito em relação aos próprios animais pastoreados, que os agentes governamentais olham através das lentes de uma educação televisiva as vacas gordas por estes consideradas ideais, ironiza Ruy Duarte de Carvalho, seriam incapazes de sobreviver no sul de Angola sem cuidados especiais, cujo custo seria incomportável para os pastores. O tratamento jornalístico da situação de seca severa que assola o Sul de Angola desde 2019 exemplifica cabalmente o preconceito denunciado por Ruy Duarte de Carvalho—enquadrando a situação das populações rurais a partir do ângulo jornalístico do assistencialismo, assume-se a sua incapacidade para lidarem com um evento climático que no entanto é recorrente, omitindo por outro lado qualquer referência à apropriação ilegal das terras de pastagem comunitárias e à instalação de cercas que impedem a transumância, acções identificadas por várias ONG angolanas como sendo a causa da actual fome.

Deslumbrados pelo brilho de uma tecnociência ocidentalizada e ocidentalizante, os de- cisores angolanos submetem-se à “ideologia ocidental expansionista” (2003, p. 170) quando tentam erradicar práticas ancestrais como a transumância, apesar de esta, no caso das populações Cuvale, se ter mostrado capaz de assegurar a sua sobrevivência durante a longa guerra civil, quando os pastores foram dos que melhor conseguiram alimentar-se no país. Ruy Duarte de Carvalho desvenda assim o carácter ideológico da orientação política para o desmantelamento do modo de vida nómada, uma orientação que rejeita o próprio pragmatismo que supostamente seria o seu apanágio ao insistir na “modernização”, independentemente dos resultados catastróficos que esta possa produzir:

Custa a entender que uma racionalidade que se pretende pragmática e ajustada assuma com grande frequência tonalidades de uma irracionalidade leviana e presunçosa, alargada não só ao senso comum como também associada a argumentações pretensamente técnicas e científicas, e se aplique a combater e a tentar desactivar a pastorícia transumante, aparentemente alheia à evidência de se estar assim a promover a inviabilidade de sociedades inteiras, para não falarmos em milhões de indivíduos, sem lhes garantir ou sequer propor qualquer alternativa válida ou mesmo só inte- ressante, e a votar a um aproveitamento quase sempre desajustado às realidades do meio natural extensões notáveis às quais a pastorícia transumante está perfeitamente adaptada. Lê acerca do que se tem passado no Kénia, ou na Nigéria e na África do Sul, por exemplo, onde as incidências políticas, administrativas e técnicas sobre as pastorícias tradicionais se têm saldado sempre pela desestruturação das economias, pela delapidação dos recursos, pela desactivação das energias humanas, pela anomia, pela proletarização alternativa e circunstancial e pela miséria.

(Vou lá visitar pastores, 117)
Na tentativa de contrariar os preconceitos arreigados, Ruy Duarte de Carvalho embarca em descrições das práticas dos pastores Cuvale, acompanhadas de pormenorizadas explicações que recorrem a conhecimentos que vão da botânica, à antropologia, à zoologia, à meteorologia e à geologia. O pastor cuvale, explica, observa “com grande rigor todos os factos que condicionam a pastorícia possível numa região tão árida: a disponibilidade de pastos, nomeadamente, e as condições de abeberamento.” Ele tira o melhor partido “da diversidade entre as diferentes sub-regiões da zona” (1999, p. 116); “ele conhece, interpreta, sabe lidar com o meio em que está integrado, digo bem, integrado. Não leu Cruz de Carvalho30 nem fez as contas que este apresenta a partir das suas experiências e de outras comprovadas pela África fora sobre índices de rentabilidade que dão vantagem à pastorícia sobre a pecuária, mas está ciente que as técnicas que utiliza são as mais aptas a aproveitar os recursos naturais e a extrair-lhes o mais equilibrado equilíbrio energético” (1999, pp. 123-124).

Subjaz a esta e outras descrições uma proposta de reconhecimento e valorização das formas de conhecimento colectivas e tradicionais. Neste sentido, pode falar-se da afinidade de Ruy Duarte de Carvalho com o pensamento de Vandana Shiva, uma figura-chave do movimento ambientalista, que tem denunciado o preconceito relativamente aos conhecimentos preservados, usados e transmitidos pelos camponeses, que é considerado ontologicamente inferior àquele adquirido através de métodos laboratoriais e experimentais31. Tal como a teórica e activista indiana, Ruy Duarte de Carvalho denuncia os esforços sistemáticos para desacreditar e destruir as formas de conhecimento enraizadas localmente, baseadas na experiência e de cariz colectivo, que frequentemente não são reconhecidas como válidas pelos detentores do poder. Este é um tema que se encontra hoje no centro de importantes debates, sobretudo no subcontinente indiano e na América Latina, desde que os avanços das biotecnociências permitiram a privatização e a exploração de recursos naturais a uma escala antes inimaginável. Como tem vindo a ser denunciado por organizações campesinas e ambientalistas, a disseminação de produtos biotecnológicos tais como os OGM (organismos geneticamente modificados), gera enormes lucros para as corporações biotecnológicas ao mesmo tempo que desapropria milhões de agricultores dos seus meios de sustento. Filósofos e soció- logos como Jack Kloppenburg (1988), Hugh Lacey (2005) e José Luís Garcia (2009) têm vindo a mostrar como, no centro deste empreendimento de apropriação da vida em larga escala, está uma concepção reducionista de ciência, que se articula na perfeição com os interesses do mercado, relegando para último plano preocupações de tipo ético e cívico, nomeadamen- te com a preservação das comunidades, com a segurança alimentar, com a biodiversidade, com o esgotamento de recursos naturais e com a destruição de ecossistemas.

Bem pode dizer-se que o projecto de Ruy Duarte de Carvalho está alinhado com estas preocupações, na medida em que o seu esforço analítico se concentra, desde os primeiros trabalhos, no reconhecimento da racionalidade das práticas tradicionais dos pastores do Sul de Angola. Uma racionalidade que não é apenas mercantil e económica—embora também o seja—, mas antes toma em consideração todos os aspectos da vida humana, e até do meio ambiente que enquadra essa vida, já que se preocupa com o equilibrio ecológico de vastas áreas. A esta racionalidade dos pastores, baseada nos conceitos de sustentabilidade, equilíbrio e integração no meio, Ruy Duarte de Carvalho opõe o que considera uma pseudo-racionalidade dos decisores políticos, focada numa produtividade desembutida da realidade natural e social envolvente.

A proposta neo-animista

Vimos até aqui como Ruy Duarte de Carvalho situa Angola, e os desafios de subsistência e desenvolvimento que Angola enfrenta, no quadro de um processo de expansão do mundo ocidental que coopta o mundo inteiro para um projecto que beneficia desmesuradamente os detentores do poder político, financeiro, industrial, científico e militar colocados, por razões históricas e geopolíticas, no centro dessa expansão, relativamente às periferias cooptadas. Este processo de ocidentalização assenta na crença na própria superioridade ideológica e evita confrontar-se com as consequências não-planeadas dos avanços tecno-económico-científicos, desde o aumento das desigualdades, à falta de segurança alimentar, ao aquecimento global e à destruição veloz de espécies e habitats—todos estes problemas agudamente presentes em Angola. Se outros intelectuais angolanos, porventura nostálgicos do socialismo “científico” da época da independência, viram na difícil situação de Angola uma consequência directa do avanço do capitalismo de mercado, Ruy Duarte de Carvalho não partilhava de uma tal abordagem. Na sua visão, se o liberalismo económico promove uma visão do mundo fechada sobre si própria e auto-validada, não se distingue nesse ponto da suposta alternativa socialista, sendo ambas as ideologias caracterizadas pelo universalismo, pelo deslumbramento pela técnica e pela indiferença aos particularismos. Como refere amiúde, liberalismo e socialismo são apenas variantes de uma mesma matriz ocidental e ocidentalizante, ou seja, ambas as ideologias resultam da expansão do ocidente, ao mesmo tempo que impulsionam essa expansão.

A sequência lógica desta ideia é que, para identificar as raízes comuns ao liberalismo e ao socialismo, é necessário recuar até certas matrizes do pensamento ocidental, que Ruy Duarte de Carvalho situa no que designa por “paradigma humanista”. No cerne deste paradigma estaria a atitude que consiste em colocar os humanos no centro do mundo, separados da natureza, dando primazia à nossa espécie relativamente às restantes criaturas. Naqueles que seriam os seus últimos textos, Ruy Duarte de Carvalho defende que tal atitude é profundamente problemática, desde logo porque, “ao procurar garantir, no seio da criação, um lugar de eleição e privilégio para o homem, produz necessária e obrigatoriamente lugares de eleição e de privilégio para certos homens e grupos de pessoas e promove incessantemente impasses que põem em causa a sorte e o destino da espécie inteira e até quiçá da criação total” (2009b). Dito de outra forma, Ruy Duarte de Carvalho opõe-se àquele dualismo que afirma uma separação radical entre humanidade e natureza, desvalorizando esta última. Um dualismo que desde há séculos subjaz às correntes de pensamento que moldam a que se tem mantido como a atitude ocidental dominante, sendo indiferente aos avanços da própria ciência, nomeadamente de uma biologia evolucionista que, ao postular a origem comum de toda a vida, deita por terra os fundamentos em que se apoia a própria ideia da singularidade humana.32

Namibe, fotografia de Marta LançaNamibe, fotografia de Marta Lança

Nos seus últimos escritos, Ruy Duarte de Carvalho responde ao próprio apelo por uma “universalidade não fosse só feita de humanismo europeu, ocidental” (2009a, p. 349) e avança numa direcção que é consistente com a sua defesa das formas de pensamento localmente enraizadas: propõe nada menos que substituir o humanismo por um neo-animismo, capaz de perceber que “o lugar do homem não é necessariamente preponderante ou central, mas lhe atribui uma função relativa de manutenção do equilíbrio geral” (1999, p. 125). No Decálogo Neo-Animista, que é um dos seus últimos textos, publicado apenas online, somos confrontados com um sumário das suas reflexões sob a forma de um programa de acção, um irónico Decálogo de onze mandamentos. Aí identifica, no denominado paradigma humanista, a raiz, tanto dos problemas que o mundo atravessa, como da incapacidade para resolver esses problemas, e defende a necessidade de abandonar esse paradigma centrado na nossa espécie e nos nossos interesses, para atingir uma visão mais alargada que tenha em consideração a sobrevivência e bem-estar de todos os seres vivos e dos ecossistemas—daí o uso do termo neo-animismo. Este é cunhado a partir de uma modalidade de pensamento baseada na ideia de que “tudo no mundo detém uma alma igual que cada existência exprime conforme o corpo que tem e a substância que o sustém” (2009b). Propõe no fundo um deslocamento filosófico para fora da esfera dualista do conhecimento ocidental e ocidentalizado, e uma aproximação corajosa a propostas de outras esferas culturais e filosóficas, a “outros paradigmas postos de parte e arredados de consideração por advirem de culturas dominadas ou anuladas pelo oci- dente”, que “poderão ser recuperados e adaptados a situações relidas agora, ou inventados a partir da reconsideração dos seus fundamentais estigmatizados como arcaicos pelo processo de imposição da civilização ocidental” (2009b). O objectivo é atingir uma forma diferente de pensar e de agir, centrada no interesse comum, comum das pessoas e comum da natureza; por outras palavras, restabelecer uma mediação entre o humano e o elemento cosmológico. Vale a pena finalizar com o poético 11o mandamento:

Estamos juntos todos, todos no mesmo barco, os homens todos e tudo quanto existe no universo inteiro. E se existirem outros universos, também eles, ainda, estarão junto connosco no mesmo barco. E deus não é uma entidade… É o total de um processo criativo e indecifrável em devir do qual cada um de nós, pessoa, animal, pedra, capim, astro, asteróide, vento, sopro e suspiro, desgos- to e dor, euforia e glória, faz parte integrante e inalienável……

(Decálogo Neo-Animista)

Ruy Duarte de Carvalho, se tivesse tido a oportunidade de viver no contexto da pande- mia de Covid 19, talvez fosse tentado a acrescentar o novo coronavírus SARS Cov-2 à lista dos seres vivos e substâncias referidas no final do seu 11o Mandamento (pessoa, animal, pedra, capim…). Embora geralmente considerados não-vivos, os vírus são parte do nosso material genético, são produtores de vida desde há milhões de anos, integram o todo e o tudo em que a vida humana está incluída. O coronavírus SARS Cov-2 está a revelar o quanto a vida dos seres humanos é vulnerável e como pode ser ameaçada por esse todo e tudo que a versão dominante da cosmovisão dualista descura, recalcando a ameaça que sempre sentiu pelo lado selvagem do chamado mundo natural, embalada na crença — filha da hubris — de que o tinha suficientemente domado com a ciência e tecnologia que julga ser o seu maior feito e de que tanto se orgulha.

 

Referências

Agualusa, J. E. (1996). Estação das Chuvas. Dom Quixote.

Altieri, M. A. (1989). Agroecology: a new research and de- velopment paradigm for world agriculture. Agriculture, Ecosystems and Environment, 27(1-4), 37–46. https://doi.org/10.1016/0167-8809(89)90070-4

Altieri, M., Farrell, J., Hecht, S., Liebman, M., Magdoff, F., Murphy, B., Norgaard, R., & Sikor, T. (1995). Agroecology: the science of sustainable agriculture. CRC Press. Amnesty International (2019). The End of Cattle’s Paradise: How Land Diversion for Ranches Eroded Food Security in the Gambos, Angola. https://www.amnesty.org/en/documents/afr12/1020/2019/en/

Amnesty International (2021). The End of Cattle’s Paradise: Severe Drought and Food Insecurity in Southern Angola. https://www.amnesty.org/en/documents/ afr12/4452/2021/en/

Balandier, G. (1956). Déséquilibres socio-culturels et modernisation des ‘pays sous-développés’. Cahiers internationaux de sociologie, 20, 30–44. https://www.jstor. org/stable/40688949

Balandier, G. (1961). Le contexte socio-culturel et le coût social du progrès. Le ‘Tiers-Monde’. Sous-développement et développement, (39), 289–303. http://classiques.uqac. ca/contemporains/balandier_ georges/contexte_soc_ culturel_cout/contexte_soc_culturel_cout.html

Bittencourt, M. (1999). Dos jornais às armas: trajectórias da contestação angolana. Vega Editora.

Castelo, C. (1998). ‘O Modo Português de Estar no Mundo’: O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933–1961). Afrontamento.

Castelo, C. (2014). ‘Novos Brasis’ em África: desenvolvi- mento e colonialismo português tardio. Varia História, 30(53), 507–532. https://doi.org/10.1590/S0104- 87752014000200009

Carvalho, E. C. (1974). ‘Traditional’ and ‘Modern’ Patter- ns of Cattle Raising in Southwestern Angola: A Critical Evaluation of Change. The Journal of Developing Areas, 8(2), 199–226. https://www.jstor.org/stable/4190121

Carvalho, R. D. (1977). Como se o Mundo não Tivesse Leste. UEA & Limiar 2.

Carvalho, R. D. (1995). O futuro já começou? Transições políticas e afirmação identitária entre os pastores kuvale (herero) do Sudoeste de Angola. Lusotopie, (2), 221–237. https://www.persee.fr/doc/luso_1257- 0273_1995_num_2_1_988

Carvalho, R. D. (1997). Aviso à Navegação—olhar sucinto e preliminar sobre os pastores Kuvale…. INALD.

Carvalho, R. D. (1999). Vou lá visitar pastores. Cotovia. Carvalho, R. D. (2003). Actas da Maianga. Cotovia. Carvalho, R. D. (2008). A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita: Fitas, Textos e Palestras. Cotovia.

Carvalho, R. D. (2009a). A Terceira Metade. Cotovia. Carvalho, R. D. (2009b). Decálogo Neo-Animista. Buala. https://www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-carvalho/

decalogo-neo-animista-ruy-duarte-de-carvalho Carvalho, R. D. (2011a). Uma Espécie de Habilidade Autobiográfica. Em N. Vidal (Ed.), O Que não Ficou por Dizer (pp. 11–16). Associação Cultural Chá de Caxinde. Carvalho, R. D. (2011b). Tempo de ouvir o ‘outro’ enquan- to o ‘outro’ existe, antes que haja só o outro… Ou pré- -manifesto neo-animista. Em N. Vidal (Ed.), O Que não Ficou por Dizer (pp. 59–72). Associação Cultural Chá de Caxinde. 

Chabal, P., & Vidal, N. (Eds.). (2008). Angola: The Weight of History. Columbia University Press.

Chabal, P. (Ed.). (1996). The Postcolonial Literature of Lusophone Africa. Hurst & Company.

Chatwin, B. (1995). Canto Nómada. Quetzal. (Trabalho original publicado em 1987)

Chatwin, B. (1998). Na Patagónia. Quetzal. (Trabalho original publicado em 1977)

Dunem, J. V. (2001). O MPLA–Governo. Encontros de Divulgação e Debate em Estudos Sociais (Angola 40 anos de guerra), 6(2), 95–99. Sociedade de Estudos e Inter- venção Patrimonial.

Ferreira, M. E. (1995). La Reconversion Economique de la Nomenklatura Pétrolière. Politique Africaine, (57), 11– 26. https://www.persee.fr/doc/polaf_0244-7827_1995_ num_ 57_1_ 5843

Ferreira, M. E., & Rocha, M. (2019). Angola. Dois Olhares Cruzados. Universidade Católica de Angola.

Freudenthal, A., Magalhães, R., Pedro, H., & Pereira, C. (Eds.). (1994). Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império 1951-1963. Associação Casa dos Estudantes do Império.

Garcia, J. L., Kaul, C., Subtil, F., & Santos, A. (2017). The Portuguese Empire: an Introduction. In J.L. Garcia, C. Kaul, F. Subtil, & A. Santos (Eds.), Media and the Por- tuguese Empire (pp. 1–27). Palgrave Macmillan. https:// doi.org/10.1007/978-3-319-61792-3_1

Garcia, J. L. (2009). Biocapital et nouvelle économie poli- tique de la vie. Revue de l’Institut de Sociologie, 14, 7–38. https://repositorio.ul.pt/handle/10451/6010

Heimer, F.-W. (1979). The Decolonization Conflict in Angola 1974-76. An Essay in Political Sociology. Institut Univer- sitaire de Hautes Etudes Internationales.

Heywood, L.M. (2011), Angola and the Violent Years 1975– 2008: Civilian Casualties. Portuguese Studies Review, 19(1), 311–322.

Hodges, T. (2003). Angola: Anatomy of an Oil State. James Currey & Indiana University Press.

Illich, I. (2018). Para Uma História das Necessidades. Sem- pre-em-Pé. (Trabalho original publicado em 1977) Jerónimo, M. B., & Pinto, A. C. (Eds.).(2015). The Ends of European Colonial Empires: Cases and Comparisons. Palgrave Macmillan.

Jonas, H. (2020). A Religião Gnóstica. Imprensa da ULisboa. (Trabalho original publicado em 1958) Kloppenburg, J. R. (1988). First the Seed: the Political Eco- nomy of Plant Biology, 1492-2000. Cambridge University Press.

Lacey, H. (2005). Values and Objectivity in Science: The Current Controversy about Transgenic Crops. Lexington

Books.
Lara, L. (2000). Documentos e Comentários para a História do MPLA. Dom Quixote.

Laranjeira, P. (2001). Ensaios Afro Literários. Novo Imbondeiro.

Leite, A. M. (1995). A Modalização Épica nas Literaturas Africanas. Vega.

Léonard, Y. (2000). O Império Colonial Salazarista. Em F.Bethencourt & K. Chaudhuri (Eds.), História da Expansão Portuguesa (5o Vol., pp. 10-30). Temas e Debates. Marques, J. P. (1999). Os Sons do Silêncio: o Portugal de Oitocentos e a Abolição do Tráfico de Escravos. Imprensa de Ciências Sociais.

Mateus, D., &; Mateus, A. (2007). Purga em Angola. O 27 de Maio de 1977. Edições Asa.

Messiant, C. (2008). L’Angola postcolonial: Guerre et paix sans démocratisation. Karthala Éditions.

Moorman, M. (2001). Of Westerns, Women, and War: Re-Situating Angolan Cinema. Research in African Literatures, 32(3), 103-123. https://www.jstor.org/stab- le/3820427

Moorman, M. (2008). Intonations: A social history of music and nation in Luanda, Angola, from 1945 to recent times. Ohio University Press.

Morais, R. M. (2018). The Spectacle of Guns and Hope. Kronos, 45(1), 84-88.

Oliveira, R. S. (2015). Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil. Tinta da China.

Pacheco, C. (1997). MPLA, um nascimento polémico (as fal- sificações da História). Veja

Pawson, L. (2014). Em Nome do Povo: o Massacre que Angola Silenciou. Tinta da China.

Pélissier, R. (1977). Les Guerres Grises: Résistance et Révoltes en Angola (1845-1941). Éditions Pélissier.

Pepetela (1980). Mayombe. Dom Quixote.
Pepetela. (1995). O Desejo de Kianda. Dom Quixote. Piçarra, M. C. (2018). Angola:(re-) imaginar o nascimento

de uma nação no cinema militante. Journal of Lusophone Studies, 3(1), 168-194. https://doi.org/10.21471/jls. v3i1.177

Santos, A., & Subtil, F. (2017). Literature against the Empi- re: narratives of the nation in the textbook História de Angola and in the novel Yaka. In J.L. Garcia, C. Kaul, F. Subtil, & A. Santos (Eds.), Media and the Portuguese Empire (pp. 309-326). Palgrave Macmillan. https://doi. org/10.1007/978-3-319-61792-3

Santos, A. (2019a). Angola Imaginada: Nação, Guerra e Utopia na Ficção de Pepetela (1071-1996). Imprensa de Ciências Sociais.

Santos, A. (2019b). Estórias de pastores: duas perspectivas angolanas sobre a Identidade nacional e as outras. Em M. Lança (Ed.), Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (pp. 83-91). BUALA e Centro de Estudos Comparatis- tas FL-UL.

Shiva, V. (1993). Monocultures of the mind: Perspectives on biodiversity and biotechnology. Zed Books.

Shiva, V. (1997). Biopiracy: The plunder of knowledge and nature. South End Press.

Shiva, V. (2016). The violence of the green revolution: Third world agriculture, ecology, and politics. University Press of Kentucky.

Schubert, J. (2018). Working the System: A Political Ethno- graphy of the New Angola. Cornell University Press. Tali, J.-M. (2001). Dissidências e Poder de Estado. O MPLA

Perante Si Próprio. 1962-1977 (2o vol.). Nzila.
Venâncio, J. C. (1992). Literatura e Poder na África Lusó- fona. Ministério da Educação e Instituto da Cultura e Língua Portuguesa.

Vidal, N. (2011a). Introdução. Em N. Vidal (Ed.), O Que não Ficou por Dizer (pp. 3–8). Associação Cultural Chá de Caxinde.

Vidal, N. (2011b). Entrevista a Ruy Duarte de Carvalho. A construção da nação e a consciência nacional. Proces- sos políticos e exercício do poder. Em N. Vidal (Ed.), O Que não Ficou por Dizer (pp. 19–40). Associação Cultu- ral Chá de Caxinde.

Wheeler, D. L., & Pélissier, R. (2009). História de Angola. Tinta da China. (Trabalho original publicado em 1971)

 

Este texto constitui a versão portuguesa de um capítulo intítulado “Critique of the Western Technological Hegemony and Neo-Animism in Ruy Duarte de Carvalho”, que foi publicado no livro Portuguese Philosophy of Technology, editado por Helena Mateus Jerónimo para a Springer (2022).

 

Este artigo foi publicado em 

2024: Ruy Guerra e Ruy Duarte de Carvalho – entre escritas e imaginários, Rita Chaves e Maria do Carmo Piçarra (eds.) Doi: https://doi.org/10.34619/3r4a-ehp4

  • 1. Sobre a ideologia colonial durante o Estado Novo português veja-se ‘O Modo Português de Estar no Mundo’: O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933–1961), de Cláudia Castelo (1998); um texto mais resumido sobre o mesmo tema é o de Yves Léonard para a História da Expansão Portuguesa (2000). O estudo mais detalhado sobre as campanhas militares de conquista de Angola é o de René Pélissier, Les Guerres Grises (1977), traduzido para português como História das Campanhas de Angola. Sobre o comércio de escravos nas colónias portuguesas veja-se o trabalho de síntese de João Pedro Marques (1999).
  • 2. Vários aspectos biográficos são explorados por Ruy Duarte de Carvalho em “Uma espécie de habilidade autobiográfica”, disponível on-line no site Buala (www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-carvalho). O site disponibiliza ainda outros textos sobre e do autor, alguns dos quais inéditos, bem como uma entrevista conduzida por Maria João Seixas, que aborda aspectos biográficos, e não só.
  • 3. A União das Populações de Angola (UPA) tomou forma a partir de uma anterior União das Populações do Norte de Angola (UPNA), um movimento etnonacionalista que se havia formado em meados da década de 1950 para reclamar a independência de parte do Reino do Congo. Na sequência da revolta de 1961, a UPA mudou de nome para Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Desde o início da década de 1990 que a FNLA existe enquanto partido político, estando representada na Assembleia Nacional de Angola.
  • 4. Sobre a insurreição dirigida pela UPA recomenda-se a leitura de História de Angola (1971/2009) dos historiadores Douglas Wheeler e René Pélissier, um livro já antigo mas ainda esclarecedor.
  • 5. Depois de mais de uma década de luta armada, o MPLA assumiu o poder em Angola em 1975, mantendo-o até aos dias de hoje, o que torna difícil distingui-lo do próprio Estado angolano. A versão oficial mantém que o MPLA foi criado em 1956, mas esta data é veementemente contestada pelo historiador Carlos Pacheco (1997), entre outros. Lúcio Lara, um dos seus fundadores, esclarece que uma das bases para a criação do MPLA foi o Movimento Anti-Colonialista, uma organização fundada em 1957 por estudantes africanos que frequentavam as Casas dos Estudantes do Império de Lisboa e de Coimbra. Este grupo estaria articulado às organizações clandestinas que actuavam em Luanda desde 1955, bem como aos grupos que se exprimiam nas revistas literárias Mensagem e Cultura (Lara, 2000, p. 64 e 73-78). A origem urbana e intelectual do MPLA foi muito explorada pelos seus adversários, a FNLA e a UNITA, para contestar a sua legitimidade, apesar de este movimento ter alargado substancialmente a sua base social de apoio com a luta armada. Este e outros aspectos da primeira década de história do MPLA são detalhados por Jean-Michel Mabeko Tali em Dissidências e Poder de Estado. O MPLA Perante Si Próprio (2001).
  • 6. Ruy Duarte de Carvalho refere especificamente o impacto da poesia de Viriato da Cruz e de Aires de Almeida Santos (2008, p. 13). Muita da poesia angolana das décadas de 1950-1960 está disponível através da reedição das antologias que foram publicadas em Lisboa e Coimbra pela Casa dos Estudantes do Império (Freudenthal, Magalhães, Pedro & Pereira, 1994), uma organização que foi essencial para a divulgação do ideário independentista entre os jovens africanos intelectuais.
  • 7. Veja-se especiamente o texto “Falas & vozes, fronteiras & paisagens… escritas, literaturas e entendimentos” (2008, p. 11-26), um misto de autobiografia e teorização literária, onde Ruy Duarte de Carvalho discorre aacerca dos seus livros de eleição, entre outros temas.
  • 8. Este documentário está disponível no acervo RDC Virtual (https://vimeo.com/157407906).
  • 9. Uma obra de referência sobre a independência de Angola é o ensaio de F. W. Heimer (1979). Mais recente e abrangente é o estudo comparativo levado a cabo por Miguel Bandeira Jerónimo e António Costa Pinto (2015). Também se recomenda a leitura do romance Estação das Chuvas, de José Eduardo Agualusa, que apresenta uma versão ficcionada do ambiente político angolano nessa época, sobretudo nos meios ligados ao MPLA.
  • 10. A UNITA foi criada em 1966 por Jonas Malheiros Savimbi, um dissidente da FNLA. Graças a algum apoio da China maoísta, a UNITA iniciou a sua actuação militar no Leste de Angola, mas sem grande impacto. Esta falta de protagonismo militar e político alterou-se após 1974, quando Savimbi passou a dirigir um discurso de cariz etnonacionalista à população Ovimbundu, o maior grupo étnico de Angola. Também nessa época, e à medida que aumentava o apoio do bloco soviético ao MPLA, a UNITA começou a receber ajuda militar norte-americana e sul-africana. Após uma aliança de curta duração com a FNLA, a UNITA tornou-se o grande opositor do MPLA, numa guerra civil que se prolongou até 2002.
  • 11. A repressão política em Angola atingiu o ponto máximo na reacção ao golpe encabeçado por Nito Alves em 27 de Maio de 1977. Sobre os intervenientes no golpe e as respectivas motivações veja-se o trabalho de Dalila e Álvaro Mateus (2007), assim como a análise mais ponderada da jornalista Laura Pawson (2014). As consequências do golpe para a política interna angolana são exploradas por João Van Dunem (2001).
  • 12. Sobre a contribuição da literatura, sobretudo da poesia, para o desenvolvimento do nacionalismo angolano há uma vasta literatura. Apenas a título de exemplo, veja-se os trabalhos pioneiros de José Carlos Venâncio (1992), de Ana Mafalda Leite (1995), de Marcelo Bittencourt (1999) e de Pires Laranjeira (2001), assim como o volume dirigido por Patrick Chabal (1996). Sobre a relação entre nacionalismo e cinema veja-se os trabalhos de Marisa Moorman (2001, 2008) e de Maria do Carmo Piçarra (2018). Menos explorado é o papel da historiografia nacionalista para a constru- ção do imaginário nacional, que é tratado por Alexandra Santos e Filipa Subtil (2017).
  • 13. Se os seus primeiros filmes, realizados em 1975 e 1976 para a TPA, tinham por tema a celebração da independência de Angola, a partir de 1979 Ruy Duarte de Carvalho passou para um registo mais etnográfico. São dessa época Presente Angolano, Tempo Mumuíla, uma série de 10 episódios produzida pela TPA e O Balanço do Tempo na Cena de Angola, que recebeu o prémio para a melhor média metragem no Festival de Cinema de Países de Língua Oficial Portuguesa, em Aveiro. Alguns episódios da série podem ser vistos no acervo RDC Digital, a partir do endereço electrónico https://vimeo.com/rdcvirtual.
  • 14. Este assunto é desenvolvido por mim num ensaio onde analiso um dos contos de Como se o Mundo não Tivesse Leste (Santos, 2019b).
  • 15. Um exemplo da hostilidade dos ideólogos angolanos do MPLA relativamente às práticas e pensamento tradicionais encontra-se no popular romance Mayombe, escrito por Pepetela na década de 1970, vencedor em 1980 do Prémio Nacional de Literatura de Angola. Nessa narrativa, o enraizamento das personagens nas suas culturas de origem é criticado como “tribalismo” e considerado um entrave à criação da nação angolana e do cidadão modelo socialista, designado como Homem Novo—o homem que se cria a si próprio através da violência. Este tema é discutido em Angola Imaginada (Santos, 2019a).
  • 16. Nas palavras do próprio Ruy Duarte de Carvalho: “Não me lembro de ter vindo ao mundo, evidentemente, mas em compensação lembro-me muito bem de ter mudado inteiramente, tanto de alma como de pele, uma meia dúzia de vezes ao longo da vida” (2011a, p. 12).
  • 17. Este episódio, conhecido como “massacre do Halloween” por ter tido início a 31 de Outubro, foi excluído da narrativa oficial sobre as eleições de 1992, que atribui a culpa do recomeço das hostilidades exclusivamente a Jonas Savimbi. Veja-se a este respeito Working the System, de Jon Schubert (2018), bem como o relato em primeira mão do conhecido jornalista angolano Rafael Marques de Morais (2018).
  • 18. Formado em Engenharia de Petróleos na antiga URSS, José Eduardo dos Santos assumiu a Presidência de Angola em 1979, após a morte do primeiro presidente do país, Agostinho Neto. Acumulou a chefia do Estado com a liderança do MPLA, das Forças Armadas Angolanas e, igualmente importante, com o controlo da empresa estatal de petróleos, a Sonangol. Saiu do poder quase quarenta anos depois, em Setembro de 2017. Sobre esta figura, escreve certeiramente Ennes Ferreira (2019) que ele não se limitou a assumir a máxima do estado absolutista, L’État c’est moi (o Estado sou eu), aproximando-se de uma visão que poderia sintetizar-se na fórmula l’ État c’est a moi (o Estado é meu).
  • 19. Os indicadores de corrupção colocam sistematicamente Angola entre os 10 países mais corruptos do Mundo; ao mesmo tempo, o país também tem um dos mais elevados índices de pobreza, apesar dos ganhos colossais da exploração do petróleo. Sobre os aspectos políticos, sociais e económicos da situação de Angola no pós-independência, veja-se o esclarecedor Angola: the Weight of History (Chabal & Vidal, 2008), bem como Angola: Anatomy of an Oil State (Hodges, 2003). Estes trabalhos dão seguimento às análises críticas realizadas na década de 1990 por académicos tão atentos como o economista Manuel Ennes Ferreira (1995) e a socióloga Christine Messiant (2008), que denunciaram os abusos dos dirigentes políticos que se tornaram detentores do poder económico graças à apropriação dos bens públicos.
  • 20. A viragem crítica da intelectualidade angolana na década de 1990 é exemplificada na obra de Pepetela, um dos autores angolanos mais lidos e premiados. Se os seus romances da década de 1980 justificam a tomada de poder pelo MPLA, já na novela O Desejo de Kianda (1995) Pepetela critica o processo de transição de uma economia planificada de inspiração socialista para uma economia de mercado distorcida, controlada pelos dirigentes políticos, através da biografia ficcionada de uma dirigente partidária que enriquece graças ao desmantelamento do Estado.
  • 21. Os Cuvale, ou Kuvale, conhecidos na literatura colonial como Mucubais, são pastores nómadas que habitam a Província do Namibe, no Sul de Angola — RDC evita explicitamente a imputação de “etnia” a este grupo, pelas implicações essencialistas que o termo comporta. Pertencem, juntamente com os Himba, ao grupo Herero, “os da carne e do leite e do gado sagrado”, que ocupa hoje porções do território de Angola, da Namíbia e do Botswana, procedendo aparentemente de populações Bantas que migraram tardiamente da costa oriental do continente africano (2008, p. 356). Sobre a historicidade da designação de Cuvale e sobre os equívocos provocados pelas imputações de etnicidade a este e a outros grupos, ver o capítulo ‘Fontes, correntes e sujeitos: metáforas e equívocos do passado aplicados à interpretação do presente do sudoeste de Angola’ (2008, pp. 189-225).
  • 22. Sobre este período da história angolana, recomenda-se a leitura de Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil (Oliveira, 2015). Muitos dos esquemas de corrupção aí mencionados vieram recentemente a público através da investigação Luanda Leaks, conduzida pelo International Consortium of Investigative Journalists, que pode ser consultada na página www.icij.org/investigations/luanda-leaks/ (consultada a 20 de Agosto de 2021).
  • 23. A ideia de que Angola não é uma criação portuguesa é claramente afirmada por Ruy Duarte de Carvalho. Para o antropólogo angolano, ”tanto Angola como Portugal, nas suas actuais colocações, serão, antes, emanações de um processo, o mesmo, aquele processo de expansão europeia que Portugal terá, enfim, introduzido pelos mares fora mas para a breve trecho vir a ver-se colocado nele numa posição que a planetarização dos modelos ocidentais e a modernidade universalista vieram a relativizar em absoluto” (2003, p. 43). Sobre este tema, veja-se “Colonização e globalização, continuidades e contiguidades colocadas no presente de Angola”, publicado em 2004 na revista de Estudos Afro-Asiáticos e incluído em A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita… (2008, pp. 36-46).
  • 24. O historiador francês René Pélissier dedica ao tema da repressão dos Cuvale em 1940-41 um capítulo independente da sua História das Campanhas de Angola, que intitula “Um Anacronismo” (1986, vol. II, pp. 267-275). Ruy Duarte de Carvalho trata este tema em vários textos, quer académicos quer ficcionais. A título de exemplo, em Vou Lá Visitar Pastores, traça as linhas gerais do conflito endémico entre colonos e populações Cuvale que havia de culminar na sangrenta repressão (1999, pp. 46-54).
  • 25. As narrativas etnohistóricas angolanas constituem o objecto de estudo de Angola Imaginada (Santos, 2019a), onde mostro como certos romances considerados fundadores da nação angolana estabelecem genealogias fictícias para o MPLA, as quais minimizam a proveniência urbana e intelectual do partido no governo, ao mesmo tempo que procuram situar as suas origens no passado combativo das populações do interior, numa tentativa de o legitimar, tanto internamente como no plano internacional. É revelador que a vasta obra de ficcional de José Eduardo Agualusa, um escritor que sublinha as ambiguidades das camadas sociais designadas de crioulas, não seja colocado pelos especialistas no grupo restrito dos construtores simbólicos da angolanidade.
  • 26. No texto “Colonização e globalização…”, Ruy Duarte de Carvalho afirma: “não temos maneira de não entrar no jogo, quer dizer, entender a indetenibilidade da dinâmica da hegemonia ocidental e de que maneira as nossas próprias posturas, mesmo as que pretendem fazer-lhe face, são determinadas por ela” (2008, p. 43).
  • 27. Relatórios recentes da Amnesty International (2019, 2021) chamam a atenção para a situação grave de insegurança alimentar nas províncias do Sul de Angola, nomeadamente na Huíla, Cunene e Namibe, em seca severa desde 2019. O efeito da seca é muito agravado pela instalação de fazendas de criação de gado ao longo das duas últimas décadas. Na região dos Gambos, por exemplo, essas fazendas já ocupam 67% das terras comunais (2019, p. 11), segundo dados recolhidos por essa instituição. A ocupação das pastagens de uso comum pelos “fazendeiros” é especialmente grave, já que estes cercaram precisamente as áreas húmidas para onde o gado transumante era levado na estação seca, permitindo-lhe sobreviver às secas prolongadas. O que os relatórios da Amnesty International omitem, é que muitas destas fazendas, cuja instalação viola a lei angolana, são propriedade de figuras poderosas ligadas ao governo, que usam a sua influência para contornar a lei nacional.
  • 28. Ruy Duarte de Carvalho mostra o seu desagrado pela figura que apelida de “especialista” no exótico que, ao identi- ficar como “arcaicas” as sociedades tradicionais, não faz mais do que torná-las “integráveis como tal nas ideologias do progresso que imperiosamente orientam os programas dos sujeitos e dos grupos que dominam todas as políticas” (2003, p. 104).
  • 29. Ruy Duarte de Carvalho refere que os sedentários naturalizaram a ideia de que a terra e os recursos naturais são passíveis de apropriação e de exploração privadas, o que os leva a sentirem como uma ameaça a mobilidade dos nómadas e como sacrílego o seu desrespeito face à propriedade (1999, p. 25-27). Esta sua visão sobre o nomadismo aproxima-se muito das ideias de Bruce Chatwin, um escritor da sua predilecção. Em A Terceira Metade (2009a, p. 17) Ruy Duarte de Carvalho elogia enfaticamente o famoso livro de viagens Na Patagónia (1977/1998), embora a obra deste viajante e aventureiro que melhor trate o nomadismo seja talvez Canto Nómada (1987/1995).
  • 30. São várias as referências de RDC ao trabalho de Eduardo Cruz de Carvalho, o agrónomo que na década de 1960 dirigiu a agência que fez o levantamento da realidade rural da então colónia, a Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola. Como refere a historiadora Cláudia Castelo, este agrónomo distinguiu-se não apenas pelo “conhecimento notável do território angolano e da sua diversidade regional”, mas sobretudo pela “visão do desenvolvimento da agricultura tradicional sustentado em critérios ecológicos” (2014, p. 529). De Angola, Cruz de Carvalho passou para os EUA, tendo assumido o cargo de Associate Research Economist no African Studies Center da UCLA. Entre os seus estudos dessa época destaca-se um artigo em que questiona os grandes projectos agrícolas em África e afirma que a modernização é “erroneamente interpretada como desenvolvimento” (1974, p. 200).
  • 31. A já denominada “biopirataria” constitui um exemplo desse preconceito contra as formas de conhecimento tradicionais. Esta prática consiste no registo abusivo de patentes sobre sementes das quais se sequenciou o genoma, ainda que estes organismos resultem do trabalho de gerações de agricultores. O que significa que os agricultores podem ver-se obrigados a pagar direitos para exportarem a sementes que eles próprios, e os seus antepassados, desenvolveram. O que está aqui em causa é uma concepção de ciência que privilegia a actividade laboratorial baseada em tecnologia de ponta, em detrimento do conhecimento acumulado pelas colectividades ao longo do tempo. Ver a este respeito Biopiracy (Shiva 1997), entre outros títulos da mesma autora, como Monocultures of the Mind (1993) e The Violence of the Green Revolution (2016).
  • 32. Sobre o dualismo, as suas origens no mazdeísmo iraniano e a sua passagem para o pensamento ocidental, veja-se o estudo clássico de Hans Jonas (1958/2020).

por Alexandra Santos
Ruy Duarte de Carvalho | 25 Setembro 2024 | modernização, neo-amismo, ocidentalização, progresso