"Sei o que se passa na cabeça de um animal." - entrevista a Ruy Duarte de Carvalho

(2000)

Sabia tão pouco dele. Há muitos anos ouvi, pela primeira vez, o seu nome associado à realização de um longo filme documental, sobre Cabo Verde, em que La Sept e a RTP deram as mãos para o financiamento. Depois, esparsamente, chegavam-me novos ecos através de poemas com a sua assinatura. Por vezes, de difícil decifração. Como se o seu “habitat” de referência teimasse em não ser o meu. E ele teimasse em lembrar-me aquelas outras coordenadas. Até que, em 1999, caí de amores por uma nova obra sua, editada pelos livros Cotovia - “Vou lá Visitar Pastores”. 

O autor, antropólogo, explica-nos, em subtítulo, que se trata de uma “exploração epistolar de um percurso angolano em território kuvale (1992-1997)”. Uma crítica ao livro dera-me dele aviso. Iniciada a leitura, com a cautela de quem sabe estar a pisar terreno não familiar - o da Antropologia -, fui imediatamente apanhada pelo estratagema do escritor: aquela viagem, ou visita, aos pastores kuvale, era contada em forma de recados descritivos gravados em cassetes e destinados a um amigo que, estando para o acompanhar nesse roteiro, não chegara a horas de com ele partir. Vesti de imediato a pele do amigo e assumi-me como a destinatária da narração. Terminado o livro, dei-me conta da armadilha em que caíra e jurei procurar a oportunidade de saber se a intenção tinha sido essa. 

Com a Primavera a aquecer o ar, dizem-me que Ruy Duarte de Carvalho está em Lisboa, para o lançamento de mais um livro de poesia - “Observação Directa”. Não deixei fugir a ocasião. Ao aceitar o desafio desta conversa, confirmou-me, logo ao telefone e com uma amável serenidade, as minhas suspeitas sobre a ideia de narrativa dos “…Pastores”. Fui ter com ele à Graça, a casa de um amigo pintor. Na varanda envidraçada, aberta sobre um quintal lisboeta - batatas na terra, um limoeiro e ainda uma outra árvore, carregada de umas flores rosadas em forma de campânulas invertidas -, com o sol a ferir as cortinas brancas, esqueci o recorte, ao longe, dos Jardins do Patriarcado e pensei que podíamos estar em Luanda. Outro estratagema?

P: Dá-me a sua ficha?

R: O que me ocorre, assim de repente, refere-se à pessoa civil. O resto… eu próprio tenho dificuldade em apreender e situar. Ora bem, vou fazer 59 anos, sou cidadão angolano, o que marca completamente a minha vida, os meus trânsitos e a minha postura, a minha casa é em Luanda, o meu lugar nas grelhas institucionais é de professor de Antropologia numa Escola de Arquitectura da Universidade de Luanda. Antes de ser antropólogo, trabalhei como engenheiro técnico agrário. Entre a agronomia e a antropologia, fiz também incursões pelo cinema e continuo a viajar, sempre, pelo universo da poesia. O resto da pessoa que sou… é consigo. Está agora nas suas mãos a tentativa de colocação e de desvendamento.

P: É cidadão angolano de origem portuguesa?

R: Sou de origem portuguesa e nasci em Portugal. Quando me perguntam se sou angolano de opção, respondo que não, não é de opção, é de condição. Não se me pôs a necessidade de optar. Quando ocorreu a independência eu já estava de há muito implicado, tanto quanto era possível, numa causa - a causa do nacionalismo angolano. E continuo a estar. As razões que me motivam, me arrepiam, me determinam, são as razões de Angola. É o meu lugar no mundo. É lá que me situo, com todas as vicissitudes conhecidas. Digo-lhe já, antes que me pergunte, que é evidente que a realidade de Angola me confrange e me constrange. Mas ainda não desisti de perseguir de alguma forma aquilo que me motiva desde pequenino e, por outro lado, também não posso desistir de, com os recursos que tenho ao meu alcance, ir tentando ajudar a remediar a situação.

P: O facto de ser antropólogo não pesa bastante nessa forma de afirmar que Angola é o seu inequívoco lugar de pertença?

R: Pesa, na medida em que me ajuda a continuar a viver a minha condição de angolano, sem me declarar tão completamente vítima dela e, também, sem ceder a tornar-me tão completamente beneficiário dela, condições para que estaria se calhar condenado, não fosse esta minha situação de observador específico. É verdade, este ofício tem-me ajudado, de alguma forma, a inscrever e a manter a minha actuação de angolano dentro de meia dúzia de parâmetros, éticos e cívicos, de que não quero abdicar. É uma extraordinária posição, um excelente alibi, não o nego, mesmo para expor preocupações de ordem política. Permite-me preservar distâncias que reputo de indispensáveis, sem me fazer ceder, por exemplo, a tentações e a urgências de exílio imediato. E continuo a acreditar que não está perdida a causa que nos mobilizou a vida inteira.

P: Insisto em me dirigir ao antropólogo - o riquíssimo património humano que constitui o povo angolano, na sua imensa variedade, é ou não um precioso estímulo para o manter agarrado aos moldes em que tem vivido a sua vida e a sua obra? 

R: É evidente que há zonas no mundo que fornecem expressões sociais e colectivas mais imediatamente apreensíveis que outras. Angola fornece quadros perfeitamente legíveis, mesmo para quem não disponha de nenhum dos instrumentos da análise social. Há ali contradições e aberrações que são logo evidentes. Há confrontos de lógicas, de sistemas, de leituras e de gestões do mundo, que só não vê quem não quiser ver. Depois, numa situação como a do meu país, tudo se confunde num movimento colectivo, que é o de assegurar a sobrevivência. Uma sobrevivência difícil, penosa e também tributária das relações com o exterior, em grande medida pelo facto de Angola não produzir quase nada do que consome. Uma parte significativa da população angolana (e o cidadão comum nem se dá conta de que sobre o que há para comer pesa o custo enorme ou das importações ou da ajuda internacional, a qual cobra, também e sempre, algo em troca!) continua a resolver o seu quotidiano, a sua reprodução social, o seu funcionamento social, através de sistemas de economia informal, muitas vezes doméstica, em que a reciprocidade e todos os sistemas de troca não passam, por exemplo, obrigatoriamente pela moeda. Isto, desde o princípio, nunca foi muito tido em conta pelas autoridades angolanas, porque realmente Angola, se quer sobreviver como país, tem que se aferir à dinâmica externa e a dinâmica externa é uma dinâmica accionada pelas economias do crescimento. Ora, a grande parte das economias que, ainda hoje, são as que, apesar de toda a situação de crise em Angola, têm assegurado que alguns grupos consigam subsistir e reproduzir-se, ou perseveraram nos sistemas de economia doméstica ou os readoptaram, face à desarticulação do sistema global. A maior parte dos nossos economistas são apenas gestores da matéria financeira. Não sendo eu especialista na matéria, sei que “economia” não é “finança”… E uma grande fatia da população angolana está hoje implicada em processos desestruturantes que fazem deles deslocados e sujeitos absolutamente dependentes da tal ajuda externa, bem como da improvisação interna.

P: A guerra é ou não um factor determinante desse processo e da situação em que se encontra o povo angolano?

R: A guerra e também a desestruturação do aparelho de Estado, que se inaugurou no dia da independência. É actuar em desfavor de Angola continuar a querer ignorar que há um processo de desarticulação institucional que tem a idade da independência. Como não podia deixar de ser. A administração portuguesa das colónias, mesmo no que se referia aos papéis do exercício mais modesto, foi sempre consignada a portugueses, que se vieram embora. Por que milagre ou por que determinação revolucionária ou ideológica é que isso não ia produzir efeitos?!! Estamos agora perante eles. Não é só a guerra. A guerra também é, em grande medida, uma consequência disso. Não me surpreende que Portugal continue a lidar mal com o passado e mesmo com o presente no que se refere às ex-colónias. Não quero, é evidente, reduzir tudo a causas tão remotas que acabemos por não discutir, nem perceber nada. Mas como não entender que a própria guerra é uma consequência de um processo que antecede o do exercício do poder pelos angolanos? Ao fim de 40 anos de guerra… Fez há pouco 40 anos.

P: Lembra-se com nitidez do dia exacto em que a guerra começou em Angola?

R: Tinha 19 anos. Foi talvez o dia em que estive mais perto da morte. Estava no Quitexe e tinha começado a trabalhar como regente agrícola numa grande fazenda. Não morri porque cheguei três minutos tarde de mais ao posto administrativo onde fora buscar o correio. Foi uma situação tão extrema, que os horrores que se lhe seguiram não me deixaram dúvidas sobre o lado em que passaria a colocar-me daí para a frente. Por isso é que digo ser angolano por condição e não por opção.

P: O primeiro ataque foi da UPA (depois-FNLA), se bem me lembro. Quando diz que a partir do dia em que a guerra rebentou soube inequivocamente de que lado estava, quer isso dizer que estava do lado desse movimento de libertação? 

R: Não, o que eu sabia é que estava do lado da razão de Angola. E que isso implicava um nacionalismo angolano. Só mais tarde é que me apercebi dos contornos do MPLA, em que poderia situar-me. Mais tarde ainda foi forjado um terceiro movimento. A razão de um nacionalismo angolano é que foi a determinante. E muitos de nós souberam imediatamente que era essa a razão fundamental das suas vidas, mesmo sabendo, quer individualmente, quer em termos de constituição de um futuro país, que íamos ter que pagar um preço muito elevado. Isso torna-nos co-responsáveis e é também isso que nos ajuda a superar os momentos de maior “détresse”, perante os disparates que se vão cometendo e as aberrações que se vão revelando. Essa é a nossa condição de protagonistas ou de figurantes da História. E não podemos aliviar-nos da carga da co-responsabilidade.

P: Poder-se-á dizer que existe no povo angolano, em toda a diversidade da sua composição, um sentimento de nacionalismo angolano?

R: Ocorre-me dividir a resposta de duas maneiras. Por um lado, que mesmo esta história penosa de Angola age também como um factor de identificação. Mesmo em campos diversos e com razões diversas, estamos todos implicados no mesmo processo. Todos nós nos referimos às mesmas figuras, às mesmas instituições. Mesmo pela negativa, estamos todos implicados no mesmo processo. Comum de todos. Como sabe, e situando-me no campo da mera análise política e antropológica, não são só os factores positivos que actuam no sentido de uma implicação dos sujeitos. Por outro lado, se eu me atrevesse… se eu quiser introduzir aqui uma perspectiva de longa duração, para não me perder, para não cair para o lado perante um presente tão devastador, não lhe garanto que daqui a cem anos a Angola que houver (porque vai haver sempre uma Angola!), corresponda, quer no que respeita aos seus contornos políticos, quer aos contornos geográficos, quer aos contornos sociológicos, àqueles de que este presente dá notícia. Poderá corresponder a outra coisa. Mas que o futuro, mais ou menos dilatado, há-de comportar uma Angola, há-de! A própria África não vai dispensar a existência de uma Angola. O que eu não lhe garanto é que corresponda a esta configuração actual. Vai ser o resultado de um longo processo, que há-de implicar toda a África. De um passado que não é assim tão remoto, mas que diz respeito a toda a África. Repare, os portugueses começaram a expandir-se há 500 anos. Mas a expansão europeia ainda está em curso. Até mesmo esse processo tem que ser entendido na longa duração, se quisermos perceber o que se está a passar. A globalização não é senão a fase mais recente de uma expansão europeia.

P: Digamos que ocidental!

R: Sim, ocidental. Mas que está em pleno curso, em termos de imposição de modelos culturais, de modelos económicos. De resto, os franceses e os ingleses sempre perceberam, ao contrário dos portugueses, que não precisavam de manter nas colónias uma administração colonial para continuar a dominar os territórios! Bastar-lhes-ia assegurar o controlo, sobretudo através de uma certa formação das elites nacionais.

P: Não conservou em si nenhuma mancha de mestiçagem portuguesa?

R: Mais do que isso. Transporto uma enorme carga cultural que não é senão portuguesa. O que me leva a estar implicado numa configuração portuguesa pela negativa. Recusando-a. Hoje já não sei o que dessa recusa é consciente ou inconsciente. Sei é que as razões angolanas continuam a arrepiar-me e as razões portuguesas me deixam perfeitamente indiferente, desde que não impliquem as razões angolanas. Isto, para mim, é uma evidência. Não decorre de nenhuma elaboração mental, ou de uma qualquer afirmação de ordem política.

P: Portanto, e se bem o entendi, Portugal não constitui uma fenda divisória em relação à sua pertença a Angola.

R: Entendeu bem.

P: Falou-me, antes de começarmos a gravar, na sua “teoria do arrepio”, ou seja, de como o “arrepio”, relativamente a qualquer causa, pode ser um factor determinante da consciencialização. O que é que, relativamente à causa angolana, lhe causou esse “arrepio”?

R: No meu caso, foi a poesia. Alguns poemas de autores angolanos que um amigo me leu, era eu muito, muito novo. Não eram sequer bons poemas, mas revelaram-me, de um modo muito exaltante, uma “alma” angolana, a tal que viria a ajudar a “razão” angolana a vencer o colonialismo português.

P: Um mau poema pode revelar uma “alma”?

R: Como é que lhe hei-de dizer?!! Em relação à produção literária, o que me interessa na escrita são os seus elementos detonativos. E a poesia militante é, quase sempre, conotativa e, muitas vezes (o que sempre a diminui!), demonstrativa. Mas pode de facto acontecer que através dela se produza, por diversas razões, conjunturais e não só, um tal grau de exaltação no leitor que lhe assegure o efeito de “revelação” sobre a “causa” que o poeta, independentemente da qualidade do poema, quis cantar e apoiar. Foi o que aconteceu comigo. 

P: A Angola independente e soberana nunca lhe causou “arrepios” que o levassem a pegar na pena, detonativa ou demonstrativamente? 

R: Quer um exemplo? Antes do “Vou lá Visitar Pastores”, cujo terreno seria “a priori” o da escrita demonstrativa, mas onde, por um artifício literário, introduzi elementos da escrita criativa, eu já tinha escrito o “Aviso à navegação”, dirigido a interventores, a políticos, a ONG, etc… Foi a minha resposta cívica, se quiser, feita em termos demonstrativos, sobre os mesmos kuvale (ou mucubais, como toda a gente lhes chama) e sobre as sociedades angolanas de economia doméstica em geral, para que técnicos e executores políticos pudessem servir-se do livro como um instrumento de consulta. Está implícita em todo o livro a crítica ao poder, às práticas mais reprováveis dos poderes. Fiz questão que o livro fosse editado em Angola. Infelizmente o “Aviso…” provou ser inócuo, já que muito poucos se interessaram por ele, muito poucos o terão lido. Talvez por isso nunca fui incomodado. A actividade política “stricto sensu” não me interessa, mas analiso a realidade e produzo matéria que constitui crítica, tão objectiva e normalmente até mais fundamentada quanto a crítica política. 

P: Considera-se um “marginal de luxo” no contexto da sociedade angolana?

R: Nunca tinha pensado nisso, assim, nesses termos… Digamos que tenho investido e tenho gerido o meu percurso e a minha vida de forma a, de algum modo, assegurar esse estatuto. Mesmo as recusas a alguns convites que me foram dirigidos correspondem a isso. Eu não saberia estar de outra maneira. O preço que tenho a pagar por esta atitude, daria outra conversa. Não é, evidentemente, fácil.

P: Não é fácil? Existencialmente?

R: Existencialmente, também. Corresponde a um grande isolamento, de relações, de troca. A maior parte dos meus interlocutores e amigos está longe. Saíram. Constituem a diáspora angolana, que é a forma mais elegante de se lhe dar nome.

P: A diáspora tem qualquer coisa de herança portuguesa!

R: De alguma forma. E alguns sectores angolanos bem tentam recuperar essa tradição!… A diáspora, como lhe chamo, é uma atitude susceptível de várias leituras. Que não são unívocas. É uma outra forma de risco que também nos une. Mas eu, repito-lhe - sou angolano, vivo em Angola, sem família, sem etnia, sem enquadramento institucional que preencha todas as necessidades políticas e de cidadania e, sobretudo, sem ambição pessoal que se enquadre no quadro das ambições possíveis em Angola.

P: A carreira académica não é uma referência institucional em Angola? É respeitada? Ignorada?

R: É uma referência, sim. Respeitada, também. Mas, na verdade, é marginal. Uma carreira em Angola não se faz tanto a partir de uma prestação académica, como de prestações de outra ordem. Aí, estou outra vez de fora. Mas, nas minhas aulas, o discurso é meu. 

P: Tem mais alunas ou alunos?

R: Embora sinta que está a haver uma ligeira inversão, a percentagem dominante em todos os cursos na universidade angolana ainda é masculina.

P: Passemos agora para a sua paixão pelos pastores, pelos nómadas. Há ciganos em Angola?

R: Hoje, que eu saiba, não. Já os houve, no tempo colonial, implicados num pequeno comércio. Havia muitos ciganos em Luanda, vindos de Portugal. Mas, no meu caso, embora todos os nómadas me interessem, são os pastores que mais me fascinam. É da ordem da paixão. Talvez pela relação que tenho com os animais. Trabalhei muito com gado. Sei o que se passa na cabeça de um animal. Tenho uma relação intuitiva, criativa mesmo, com os animais. Mesmo aqui, em Portugal, se vejo um rebanho de ovelhas passar, sei quantas lá estão, com uma margem de erro pequena, sei se daí a duas semanas estão mais gordas ou mais magras… É preciso gostar muito, saber sentir os animais. Trabalhar numa fazenda de 25 mil hectares, ajudou-me muito na pesquisa a que entretanto me entreguei. Quando para lá fui, não havia água, imagine. E três anos depois havia cinco mil ovelhas e doze furos a jorrar água. Uma glória! 

P: As célebres ovelhas caraculo, cujas crias, mal nascem, são abatidas para se obter as encaracoladíssimas peles astracã?

R: Essas mesmas, oriundas das estepes da Ásia Central.

P: Ainda há essa criação em Angola?

R: Já não. Na Namíbia, sim. A aventura da produção de astracã em Angola começou já no fim do tempo colonial. Mas era uma aventura excessivamente cara, sobretudo porque as condições de humidade relativa do ar (a média anual é de 70% no Sul de Angola e de 40% nos “plateaux” namíbios) obrigavam a processos de desparasitação e a outras medidas e cuidados que encareciam demasiado a criação, não justificando os investimentos.

P: Falou-me de ovelhas. Mas… como é a sua relação com os bois e com as vacas, património dos kuvale?

R: Ah, as vacas e os bois! Nem imagina como me tem facilitado a minha relação com os pastores o facto de eu olhar para uma vaca e saber quantos filhos já teve e quantos vai ainda ter. 

P: Só de olhar? Ruy, isso para mim é feitiçaria.

R: Como queira, já que é um saber que não se aprende nos livros. Falo imenso de bois, horas a fio, com os pastores. Não é de implicações antropológicas, é de bois!!

P: Fala a língua dos pastores que visita?

R: Não sou muito dotado para línguas, mas sei o suficiente para me fazer entender e para os entender. Também é preciso descobrir a eloquência do silêncio e dos gestos. Depois, arranjam-se intérpretes que se transformam em amigos. Passo horas com eles, criam-se relações de simpatia, outras são mais contidas…

P: De que raça são os bois que os kuvale pastoreiam?

R: A raça dos bois dos kuvale corresponde a uma matriz dos bovinos de toda a África. São os sanga, descendentes em linha directa do “Bos primogenitus”, que dá o “Bos taurus” (bois sem bossa) e o “Bos indicus” (com bossa).

P: Está-me a conduzir até ao Ápis?

R: O Ápis já sai de lá. É de certeza sanga, saído do mais europeu de todos os bois, o “primogenitus” dos tempos do Neolítico. 

P: Os seus queridos mucubais vão conseguir sobreviver durante muito mais tempo, com as especificidades próprias da sua cultura?

R: Não. Como é que vão poder? Só que eles têm uma notável capacidade de reconversão e vão de certeza inventar novas fórmulas indispensáveis para a sobrevivência. Eles e os do seu grupo, os herero, de que uma grande parte vive do outro lado da fronteira. Daí o meu interesse em estender os estudos e as investigações que faço também à Namíbia.

P: O reino dos pescadores e da pesca, essa outra fabulosa riqueza de Angola e da sua costa, deixou de interessar ao antropólogo?

R: Fiz a minha tese de doutoramento sobre pescadores, os pescadores da faixa costeira de Luanda. Cheguei na altura a saber tanto de peixes como antes sabia de ovelhas! Embora nem sequer vá à pesca, conservei amigos no meio desses pescadores. Só que agora, a minha paixão tem de facto a ver com os pastores.

P: Qual é a etnia desses pescadores que estudou? 

R: São os axiluanda, de um subgrupo de língua quimbumdo, que seriam os habitantes da ilha de Luanda quando os portugueses lá chegaram e aí pescavam e daí enviavam as moedas que o reino do Congo utilizava nesse tempo. Moedas que eram… búzios, o “n’zimbo”.

P: Fazendo o peixe parte da dieta angolana, pergunto, voltando aos pastores da sua paixão - os mucubais comem peixe?

R: Jamais. Mas essa é uma história antiquíssima, de muitos milhares de anos, muitas migrações…

P: Tem uma palavra de eleição, para nos despedirmos?

R: Sul. E o sentimento de angústia de poder chegar ao Sul do Sul, de saber que, a partir dali, não há mais Sul e de reconhecer que a devoção ao Sul pode acabar por apontar ao Norte!…

Originalmente publicado no Público, 2000.  

por Maria João Seixas
Ruy Duarte de Carvalho | 24 Setembro 2024 | angola, axiluandas, biografia, gado, kuvale, nacionalismos, ovelhas