Um inimigo público, no Theatro Circo

 Desde há um ano que começa a ser instantânea a ligação entre a rua do Benformoso e os imigrantes. A partir dos acontecimentos de 19 de dezembro de 2024, para um segmento estatisticamente importante da sociedade portuguesa — pensando apenas na dureza dos números —, incrementa-se uma perspetiva sobre os imigrantes, vistos como fonte aberta de todos os males da cidade.

Desde então, vai crescendo um discurso mais crispado, quase sempre generalizador, que faz equivaler a imigração, no caso de Portugal, à corrupção dos costumes, à depravação da religião do Estado, a uma pretensa insegurança permanente sentida pelos cidadãos, às dificuldades no Sistema Nacional de Saúde, ao encarecimento do custo de vida, à contínua precariedade dos salários, ao aumento dos preços dos consumíveis e aos problemas sentidos no setor da habitação. Os imigrantes passaram a ser o alvo mais facilmente encontrado para variadas questões. Esta é uma lista que pode ser alongada, normalmente discutida através do filtro das caixas de comentários nas redes sociais, sobre qualquer facto noticioso envolvendo uma das questões acima.

A maioria das pessoas que comenta vincula-se a um discurso que criminaliza quem chega de forma despudorada. Esta nova atitude sobre o imigrante é seletiva; para já, tem no ponto do cassetete cidadãos do subcontinente indiano (Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Butão).

Os episódios da rua do Benformoso chegaram ao conhecimento da maioria do público pelas imagens largamente difundidas nas redes sociais, onde 66 cidadãos — a maioria imigrantes do subcontinente indiano — aparecem com as mãos encostadas à parede, numa operação realizada por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP).

Todo o decurso da operação até essa imagem, que mais sobressai, é descrito como tendo sido composto por momentos bastante violentos, segundo os relatos de quem os viveu. A imagem acabou por ter grande circulação e por suscitar um profundo debate na sociedade portuguesa. Está, por isso, intimamente ligada ao espetáculo Um Inimigo Público, de Marco Martins. O espetáculo baseia-se na peça de teatro homónima, publicada em livro por Henrik Ibsen (1882).

De Henrik Ibsen a Marco Martins: como se constrói um inimigo?

O inimigo público de Ibsen

No cerne da trama de Ibsen temos uma disputa entre duas ideias: de um lado, o poder da ciência e da inovação, alcançados através do estudo, do método e do trabalho colaborativo, sustentados por valores éticos e comunitários; do outro, o corporativismo fascista, que afunda o interesse coletivo para fazer emergir os interesses económicos particulares de agentes do Estado e aspirantes ao lucro fácil, mesmo em prejuízo da população. Para tal, instrumentalizam os meios de comunicação públicos, manipulam e conquistam o apoio das massas, descredibilizando a ciência, a técnica e a inovação.

Emerge então o Dr. Thomas Stockmann, figura respeitada da comunidade, médico e proprietário de uma clínica, bem como autor do projeto mais rentável da cidade — a estação balnear. A partir de uma questão surgida na sua observação quotidiana, desenvolve uma investigação robusta sobre o estado das águas da estação. Os dados revelam que estas estão profundamente contaminadas, sendo urgentes reformas para evitar novas contaminações e garantir melhores condições aos utentes.

Do outro lado, surgem os interesses instalados, representados pelo presidente da câmara, Peter Stockmann (irmão de Thomas), que encabeça uma campanha para desacreditar a ciência, ridicularizar Thomas, acusando-o de pretensiosismo intelectual, e valorizar os lucros económicos da estação. A partir daí, inicia-se uma guerra contra Thomas: silenciamento da sua voz, destruição do seu caráter e, por fim, numa assembleia pública, é declarado inimigo da cidade por votação da maioria, sendo-lhe decretada a expulsão.

Saltam vozes na assembleia: “A maioria tem sempre razão! A maioria tem sempre razão!”. Ao que o Dr. Stockmann rebate:
“Que sentido têm as verdades proclamadas pela massa, massa esta que é manobrada pelos jornais e pelos poderosos? (…) São verdades caducas, de uma magreza espantosa. E são justamente essas que a maioria recomenda à sociedade, como sendo um alimento saudável. (…) Como médico, devo dizer-lhes: todas essas verdades universais não podem ser comparadas senão com velhas conservas… daí provém o escorbuto moral que invade a sociedade.”

Quem constitui a maioria dos cidadãos de um país? Que razão tem essa maioria?

O inimigo público de Marco Martins

No espetáculo de Marco Martins, o inimigo público não é retirado diretamente de Ibsen. É um ente coletivo, conjugado com os acontecimentos da rua do Benformoso. São os imigrantes, julgados a partir daquela imagem — tirada de um ângulo proibitivo — em posição humilhante, mãos levantadas contra a parede, expostos a um julgamento popular que os desumaniza. São os outros que chegam de longe, de culturas vistas como inferiores, que invadem o espaço público, ameaçam as formas de estar nas cidades, impõem a sua cultura, perturbam a paz social e vivem à custa dos impostos. Esses outros que se tornam incómodos por, alegadamente, não conseguirem integrar-se, não falarem a língua. O imigrante é o inimigo. É preciso expurgá-lo.

Num cenário de caos, instala-se o medo do outro, daquele que não conhecemos — ou não queremos conhecer.

– “O mundo nunca experimentou tanta imigração.”
– “Nós somos o inimigo.”

No espetáculo, a maioria legitima plataformas que amplificam discursos de ódio. Das palavras ditas em lugares de privilégio, onde os imigrantes não têm voz, passa-se para práticas de humilhação sistemática, expressas nos sistemas burocráticos, que exigem um vocabulário técnico inacessível a quem chega. Isso coloca o imigrante em situações piores do que as que enfrentava no seu país de origem, em clara contradição com as expectativas de dignidade que o fizeram partir:

– Tem comprovativo de morada…?
– Fala português…?
– Qual é a sua morada fiscal…?
– Não fala português…?

Os métodos de silenciamento do imigrante são vários, desde a escassa representatividade política, ao desinteresse pelas suas circunstâncias — independentemente de serem médicos, engenheiros ou pacifistas —, culminando em julgamentos automatizados que os tornam invisíveis, suprimem os seus traumas e anseios, desumanizando-os.

Este olhar generalizador é transportado para as instituições, influenciando práticas administrativas. Assim, o imigrante é configurado como inimigo público, exigindo-se uma atuação proporcional ao “perigo” que representa.

Dar rosto às pessoas encostadas à parede.

I am not a monster!

O espetáculo de Marco Martins é profundamente positivo, não apenas por colocar os protagonistas da rua Benformoso de frente para a cidade, com o rosto descoberto, como protagonistas da sua história, mas também por permitir que quem os encontra os encare diretamente. A sua narrativa provoca reflexão sobre a sobrevivência desde a partida, à chegada e nos dias que se seguem. É um convite ao diálogo real com os imigrantes.

O espetáculo traça imagens fortes da fragilidade em que vivem muitos imigrantes em Portugal, sujeitos à exploração por parte de patrões que tiram proveito da sua vulnerabilidade, sem lhes garantir condições mínimas de trabalho, salário, saúde ou cumprimento contratual.

Para muitos, a Europa era o continente dos direitos humanos, da segurança, da prosperidade através do trabalho. Mas o que encontram é uma parede difícil de ultrapassar.

Um Inimigo Público, de Marco Martins, expõe a violência que começa nos países de origem e se prolonga, mesmo depois da legalização ou da obtenção da nacionalidade.

É narrado nas línguas maternas dos protagonistas, promovendo conexão emocional com cada palavra, continuada na expressão física dos atores, que se entregam emocionalmente. O espetáculo é falado em português (pelos dois atores portugueses), em inglês e em nepalês. Termina onde começa: numa nave afastada do palco principal, em festa, representando a esperança num futuro coletivo.

por Zezé Nguellekka
Palcos | 20 Dezembro 2025 | Benformoso, Ibsen, imigrantes, Marco Martins