Em África é difícil viver sem Deus

Para o mô pai,

Para o Tio Chico (em memória), companheiro de vida do mô pai, 

Para os amigos e irmãos da Igreja do mô pai

Nos últimos meses, tenho dormido menos. São muitas as horas que fico desacordado, a sondar espaços, pensamentos, lembranças e pessoas que tenho na vida. Uma das lembranças por esses dias e que me meteu um medo pequeno, é de estar a me aproximar da fase em que vi o meu pai passar mal pela falta de sono, a gerir bué de makas sobre várias coisas. 

As razões do meu velho na altura eram mais fortes que as minhas actuais. Era mais ou menos um homem solitário, com uma relação complicada com a cidade e com o contexto político vivido em Angola (maka generalizada), portanto, a situação era mais lixada, se somarmos que o meu velho arrastava uma carrada de outros problemas, especialmente para quem como ele era um pai-grande da família e com um número de filhos considerável. Pai-grande na sua situação era o equivalente de pilar familiar (famílias africanas, uma multidão), ponto de apoio na cidade para as suas pessoas que provinham de meios com grandes carências humanitárias. Não é que vivêssemos melhor, só estávamos em lugar mais seguro. 

Vendo bem, a situação do meu velho tem pouquíssimo a ver com a minha, insónia por excesso de cafeína ou alteração de rotinas nas horas de ir para cama, mas ela também me passa isto, este divagar por vários pontos, muitas vezes desconectados de sentido. 

Continuando… eu vi o meu velho a prolongar a noite, absorvido por leituras bíblicas em umbundu e em português. O meu velho é como a maioria das pessoas do seu tempo: comunicam melhor em umbundu do que em português. Faz parte da geração de falantes das línguas nacionais em fluência superior do que  em português. Dos velhos que, para os assuntos sérios em reuniões familiares, situações de expressão da dor, ou em circunstâncias de grande satisfação, ou para dizer as suas preces em orações, preferem as línguas nacionais. Há aqui a tal grande diferença, pelo menos em números, com as gerações mais novas, sobretudo o people crescido na cidade. Aqui e ali dizemos coisas nas línguas mas ficamos mesmo por esse aqui e ali. Falo em termos de números e de tendência.

O velho tinha então rotinas de idas para a cama mais ou menos no mesmo horário todos os dias, depois das orações em casa e mais essa hora ou hora e meia em que se dobrava para ler capítulos bíblicos. Todos os dias rezávamos o terço com ele, muitas vezes com a parte da ladainha a ser repetida em umbundu. Os nomes dos santos eram lidos num livro de capa vermelha, a Assembleia do Senhor. Lembro-me bem deste nome porque é daquelas coisas que ficaram na parte das minhas memórias mais nubladas, e desgostosas, porque quase sempre ia contrariado. Talvez por isso os cânticos nos saíam arrastados, nas vozes e na vontade. 

O horário era péssimo, se não a coincidisse com o TV Desporto (programa para ver os golos do fim-de-semana dos jogos na Europa), era a chocar com a hora da novela. O velho era impiedoso, tínhamos de nos juntar às ondas de oração que aconteciam em todas as outras casas do nosso bairro, orações pela paz e pela saúde de umas pessoas conhecidas e de outras desconhecidas, por pessoas de Angola e de outras de terras só de ouvir na televisão, terras que andavam em problemas e outras que viviam em paz. 

- Vamos agora pedir à Nossa Senhora por intercessão dos Três Pastorinhos de Fátima…

e eu, - meu Deus, mais três Avé-Marias? - Pai, não podemos saltar esta parte? - Nem uma resposta. O velho aí parado, nem um olhar sequer. O velho sabia a hora exacta de usar os silêncios como resposta. Era um homem que levava a oração como o último ponto de resguarda para o mais precioso na sua vida: a sua relação com Deus. 

Ficávamos desencorajados, e era seguir, o rogai por nós, rogai por nós, rogai por nós… A minha irmã, coitada, a levar a parte mais dura, a da responsabilidade de fazer a leitura dos santos a quem pedíamos intercessão. Acabávamos, finalmente. Quando já íamos levantar, o velho punha mais um ou dois cânticos e eu a martelar nas palavras com violência, a disparar cada sílaba para os ouvidos do velho, que me sentisse farto, mas era o processo e um rito de iniciação que se devia manter. Acabávamos, muitas vezes quando não havia mais nada para ver na tv, íamos directo para a cama no meio da sala. Andávamos nessas orações, eu, a minha irmã do meio e o meu irmão mais novo, os três, os outros de casa, já andavam, em alturas de maior independência, podiam não ser chamados. 

Fico perdido agora a rever essas memórias. Não falo bem umbundu como o meu pai, nem tenho essa constância nem nenhuma outra de orações para fora de mim. Sou sacudido, às vezes, pela minha fé das horas difíceis, por lembranças de cânticos bonitos, de alguns salmos repetidos até saber de cor, que se misturam com notícias do futebol, de episódios de livros que ando a ler, muitas vezes a saírem distorcidos, sai uma metade de um, mistura-se com outra metade, mais tarde já misturados com pedaços de cenas de filmes ou de acontecimentos pontuais que terei visto na rua ou imaginado, depois vem-me o sono e depois sem dar por nada, só me volta a noção naquelas vezes sempre incómodas de levantar para ir à casa de banho. Todas as pessoas que se levantam à noite para ir à casa de banho têm um pouco de infelicidade nos seus dias, é pá, eis uma grande revelação.

Assusta-me essa perspectiva de reprodução do comportamento que costumava identificar nas pessoas mais velhas de casa, normalmente o pai e a mãe, a quem ouvia depois de madrugada numas conversas faladas baixinho. As tais conversas que só aconteciam em umbundu (na nossa variedade do umbundu – zona de Quilengues, de onde ambos vieram, que assume diferenças, sobretudo de pronúncia com o umbundu mais central do Planalto). Às vezes, os velhos convocavam uma terceira pessoa, um irmão com makas por resolver ou outras pessoas do resto da família, que vinha fazer anúncios de tristezas ou com outras makas. 

As palavras passavam-me por cima do sono, eu a não querer acordar, a teimar sono profundo, isso era sempre antes do sol nascer, entre as 5h00 e as 5h30. 

As idas à capela são formas de socialização para o pessoal mais velho da nossa comunidade. As nossas vidas giravam em torno dessa vivência cristã, as festas, as cenas ordinárias (dia-a-dia), os óbitos, tudo. 

Depois chegava a hora das orações na capela do bairro, onde iam todos os mais velhos do bairro e umas crianças. Nem sei bem como tinham paciência para aquilo. Os velhos bazavam para a capela, e era outra vez o terço, mais meditação bíblica regida por um catequista e cantos, de vez em quando lá aparecia um senhor padre. Os dias que antecediam essa visita eram de grande tensão, os putos mais eruditos (os que liam melhor) eram chamados para fazer as leituras em português. Havia um espírito geral de orgulho partilhado pela comunidade porque um filho daí lia bem. Era uma mensagem importante para o exterior. Toda a gente ficava a saber dos pormenores, se a pessoa escolhida não gaguejara e de como levantou a cabeça do papel como os jornalistas faziam. Prendiam-me, esses comentários. Essas idas à capela são formas de socialização para o pessoal mais velho da nossa comunidade. Muito das nossas vidas girava em torno dessa vivência cristã, as festas, as cenas ordinárias (dia-a-dia), os óbitos, quase tudo.  

“É muito difícil viver sem Deus”, escreveu Pepetela, no Planalto e a Estepe. Captei esta frase na primeira leitura que fiz deste livro, nunca mais me esqueci. Reaviva-se na minha memória todos os anos. O Pepetela é africano. Ao criar esta frase certamente se inspirou no que via à sua volta, nas manifestações espontâneas das pessoas africanas que a todo momento se voltam para Deus, mesmo quando estão em protesto e se afirmam ateus. Essa frase lembra-me o meu velho e as pessoas do meu bairro que acompanham com sofrimento, o movimento dos seus filhos para fora da igreja. Tenho a certeza que por estes dias de natal o centro das suas vidas gira em torno do que vai acontecer na missa ou nos cultos de natal das suas paróquias e assembleias. Em África é difícil viver sem Deus.    

por Zezé Nguellekka
Mukanda | 17 Dezembro 2024 | África, Bíblia, deus, família,